Estaríamos cutucando o fascismo com vara curta?

por Jane de Araújo/Agência Senado

De fato, se a história tem um sentido, é o de servir de lição para o presente.
Enganar-se no presente, e ser incapaz de detectar a realidade de um possível
processo de fascistização, não seria desculpável, como foi no passado.
O fascismo, como os outros regimes de exceção, não é “doença” ou “acidente”:
ele não acontece apenas com os outros.
Nicos Poulantzas

O que faz um ministro do Supremo Tribunal Federal esbravejar contra a Lava Jato, contra outro ministro e contra os meios de comunicação? O que pretende um general ao palpitar sobre uma votação do Supremo Tribunal Federal? Por que uma rede de televisão resolve atacar o presidente ilegítimo que ajudou a tomar o poder? Onde queria chegar o empresário que gravou conversas incriminadoras com aqueles políticos que eram seus aliados até a véspera? O que leva, um ocupante recente da cadeira de Ministro da Educação (1), a uma reação truculenta ante a proposta de um curso sobre “O Golpe de 2016”?

São duas fontes principais que servirão de base para essa discussão. A primeira é a aula proferida pelo professor Lúcio Flávio Almeida (2), do Departamento de Política da PUC-SP, no curso livre: O Golpe de 2016 e o futuro da democracia, com o tema: As relações de classe, a crise e o golpe. A segunda fonte é o livro recomendado pelo professor Lúcio Flávio em sua aula, de Nicos Poulantzas, Fascismo e Ditadura (3), que analisa os regimes de exceção e se aprofunda nos regimes fascistas da Alemanha e da Itália.

Poulantzas aponta, logo de princípio, que a crise que pode conduzir a estados de exceção, como o fascismo, não se resume a uma crise econômica, mas tem seus componentes políticos e ideológicos. A crise nasce do aprofundamento e da exacerbação das contradições internas entre as classes e frações de classe dominantes, diz ele. A crise acontece quando uma classe ou fração de classe não consegue liderar as outras, quando não consegue exercer a hegemonia, quando não consegue fazer alianças para deter o poder.

O professor Lúcio Flávio deixa claro que não estamos vivendo sob um regime fascista no Brasil hoje. Ele afirma que vivemos num estado de exceção e que houve uma “dimensão parlamentar judiciária do golpe que levou à dissolução do bloco no poder, uma contraofensiva dos segmentos rentistas da burguesia”. Temos “uma situação típica de uma crise política muito profunda que este golpe, até agora, está longe de resolver”, complementa.

Esse engalfinhamento, que assistimos no Brasil, entre representantes da elite econômica, da elite política e da elite do poder repressivo do Estado, entre outros, parece demonstrar a “exacerbação das contradições internas à classe dominante”, não parece? Diz Poulantzas:

É a incapacidade de uma classe, ou fração, de impor sua hegemonia, enfim, a incapacidade da aliança que está no poder de ultrapassar “por si mesma” suas próprias contradições exacerbadas, o que caracteriza a conjuntura do fascismo.

As fissuras que vemos no sistema institucional, chamada crise das instituições, são determinadas pelos antagonismos sociais. Essas crises são geradas no campo das relações sociais e podem levar a estados de exceção. Como explicar que decisões da Suprema Corte não tem respaldo na Constituição? Ou como explicar o desprezo com que o Senado trata certas decisões do Supremo Tribunal Federal? Ou um Procurador da República que faz campanha contra um ministro do Supremo? O professor Lúcio Flávio aponta que no Brasil hoje:

Rigorosamente, não tem mais uma norma a ser seguida. Aí é exceção mesmo. A norma, no caso, não é mais a norma jurídica, que já é complicada. A norma é o vínculo deste ou daquele aparelho com esta ou aquela fração de classe que está disputando a hegemonia. E aí a lógica formal não ajuda muito. Interessa o que é conveniente no momento. É para bater no Francisco? Bate no Francisco e poupa o Chico. Mas amanhã já bate no Chico e deixa o Francisco de lado.

A crise de representação dos partidos políticos e a crise das instituições levam a uma situação de “poder em dobro” pela divisão entre poder formal e poder real. Explica Poulantzas:

Com o início do processo de fascistização, mesmo que o Estado democrático parlamentar esteja aparentemente intacto, as relações entre as classes dominantes e as frações de classe por um lado, e o aparato de Estado por outro, não mais são estabelecidas prioritariamente através da mediação de partidos políticos, mas, de modo crescente, são feitas diretamente.

Do lado do trabalhador, tudo começa com uma série de derrotas. Não é uma derrota, mas um processo com várias reviravoltas. O objetivo não é simplesmente reverter suas conquistas econômicas e políticas, é ir além, é aprofundar a exploração das massas populares. Há muitas semelhanças entre as derrotas recentes dos trabalhadores no Brasil e o que fala Poulantzas sobre o fascismo na Alemanha e na Itália:

A burguesia tinha que aniquilar, em pouco tempo, essas conquistas econômicas e políticas das massas populares (….) Mas há mais: na conjuntura de crise da burguesia, não bastava aniquilar essas conquistas, mas ir ainda mais longe na exploração das massas populares.

Seria fácil se todos tivéssemos os mesmos interesses e as mesmas ideias para resolver os problemas. Mas a verdade é que, pela própria estrutura como nos organizamos socialmente, pensamos e agimos de formas diferentes. Somos trabalhadores que só temos nossa força de trabalho para gerar nosso ganha-pão. Somos grandes proprietários de terras, de empresas, de bens de produção. Somos pequenos produtores, pequenos comerciantes, assalariados fora das linhas de produção. Somos, enfim, uma sociedade de classes. Cada qual com seus interesses, com seus modos, com seus costumes, com sua ideologia.

As ideologias, que jamais são neutras, existem em função das classes, existem apenas ideologias de classe. Aquela classe ou fração de classe que assume o papel dominante na formação social usa os aparelhos repressivos do Estado para manter-se no poder, as polícias, os militares e os tribunais, entre eles. A repressão física não é, entretanto, suficiente para a dominação política, é necessária a intervenção direta da ideologia. Prossegue Poulantzas:

Por outro lado, a ideologia, como ideologia dominante, constitui um poder essencial de classes em uma formação social. Como tal, a ideologia dominante é incorporada, dentro de uma formação, em uma série de aparelhos ou instituições: as igrejas (aparelho religioso), os partidos políticos (o aparelho político), os sindicatos (o aparelho sindical), as escolas e a universidade (o aparelho escolar), os meios de “informação” (jornais, rádio, cinema, televisão, enfim, o aparato de informação), o campo “cultural” (a publicação), a família em certo aspecto, etc. Estes são aparelhos ideológicos do Estado.

Poulantzas explica como se deu o controle sobre os aparelhos ideológicos de Estado na Alemanha:

Vamos agora aos dispositivos ideológicos de Estado. A primeira característica importante é a supressão de sua autonomia relativa, entre si e com relação ao aparelho repressivo de Estado: isso é feito por modificações legais de seu caráter público-privado. (…) Os membros desses dispositivos passam a fazer parte obrigatoriamente de “corporações” públicas (…) As decisões dessas corporações têm força de lei (…) Essas corporações têm o papel de assegurar a difusão da ideologia nacional-socialista. Por exemplo, a corporação educacional, a Liga Nacional-Socialista de Educação, é a responsável pela coordenação ideológica e política de todos os professores de acordo com a doutrina nacional-socialista.

Nesses tempos temos visto e ouvido vários discursos entusiasmados pela preservação da família, Pois bem, na Alemanha de Hitler a célula mais importante era a família, o partido buscava, entre outras coisas, ampliar o papel dos pais na educação, ter um representante do partido em cada família. Hitler declara que:

“Nossa primeira tarefa (…) é facilitar o desenvolvimento de laços familiares. A decadência da família significaria o fim de todas as formas superiores de humanidade (…) o objetivo final de um desenvolvimento lógico e orgânico é a família. É a menor, mas a mais importante unidade para a construção de todo o Estado (…)”

O professor Lúcio Flávio, em sua aula, salientou que não estamos em um regime fascista em 2018 e complementou:

Não estamos vivendo numa democracia. Houve um golpe. Começou em 16. Ele está em processo. Os dominantes não estão conseguindo se entender. Existe uma disputa muito grande no interior do aparato de Estado. E isso aí, em grande parte, abre perspectivas de resistência que possam ser articuladas a projetos, digamos, razoáveis de transformação política, de novas políticas sociais, mas que implique capacidade de fazer alianças também. Ou seja, sair dessa crise, as perspectivas de democracia no Brasil a partir dessa situação de um golpe de Estado que ainda não se definiu, do meu ponto de vista, se eu posso falar assim ainda numa palestra fundamentalmente teórica, elas implicam capacidade de aliança. Ou seja, não é um jogo de princípios. (…)

A questão é como abrir o leque de alianças sem perder autonomia, sem ir a reboque daqueles que são mais fortes nessa aliança. Eu diria que esse evento em Curitiba, esse primeiro de maio, sintetiza maravilhosamente esse momento em que as forças populares chegaram. Fazia tempo que não havia um primeiro de maio de luta no Brasil. Esse foi um primeiro de maio de luta política. Isso não é muito pouco, não.

Terminamos com uma análise de Clara Zetkin, no comitê executivo da Comintern em 1923:

O erro do Partido Comunista Italiano consistiu principalmente em considerar o fascismo apenas como um movimento terrorista militar, não como um movimento de massas com bases sociais profundas. Deve ser explicitamente enfatizado que, antes do fascismo ganhar uma vitória militar, já tinha alcançado a vitória ideológica e política sobre a classe trabalhadora…

Nicos Poulantzas termina seu texto:

Dado o propósito deste texto, preferimos datar esta conclusão.
Paris, julho de 1970

Em junho deste mesmo ano, 1970, o Brasil havia vencido no México, pela terceira vez, a Copa do Mundo de Futebol. Também pela terceira vez o Brasil tinha um presidente militar. O general Emílio Garrastazu Médici governava o país e promovia violenta repressão aos opositores do regime. Quando Poulantzas advertia para a atualidade dos Estados de exceção e, assim, do fascismo, a maioria dos brasileiros comemorava a Copa sem saber o que acontecia nos porões do regime.

Notas

1 Link para a matéria da Rede Brasil Atual, “MEC quer censurar curso da UnB sobre o golpe de 2016”: http://www.redebrasilatual.com.br/educacao/2018/02/mec-quer-censurar-curso-da-unb-sobre-o-golpe-de-2016

2 Link para a aula “As relações de classe, a crise e o golpe”, pelo professor Lúcio Flávio Almeida, do Departamento de Política – PUC-SP, no curso livre: O Golpe de 2016 e o futuro da democracia: https://youtu.be/mbmTm2GyxMk

‎3 Poulantzas, Nicos‎. Fascisme et dictature – La troisième internationale face au fascisme‎. Paris, Librairie ‎François Maspéro Paris. 402 p.

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