Espiritualidade une pessoas e povos, propriedade privada desune

3º Encontro de Formação do Movimento das Comunidades Populares, na cidade de São Lourenço da Mata, PE Foto: José Alves, do MCP.

Por frei Gilvander Moreira¹

A história já demonstrou que só vanguarda não faz revolução, só partido não salva, messianismo é fria, só Movimentos Sociais também não fazem revolução. Sem os povos injustiçados como protagonistas, não tem solução. Os povos agem a partir da espiritualidade que brota de sua experiência concreta de vida, não a partir de ciência. Jesus ensinou a partilhar e multiplicar o pão a partir de uma criança, com apenas 5 pães e 2 peixes, não a partir do mercado, como propôs o apóstolo Felipe (Jo 6,1-15). 

A extrema-direita fascista desde Mussolini e Hitler tem como parte do seu lema “Deus acima de todos.” Se pensarmos com mais acuidade, veremos que este slogan é idolátrico, pois se Deus está acima de todos/as significa que Deus não está com todas as pessoas, pois está somente acima. Se Deus estivesse acima de nós, logo não estaria conosco, não seria Emanuel – “Deus conosco” (Is 7,14; Mt 1,23) -, não estaria em nós nem nos empobrecidos, não estaria no humano e nem nos seres vivos. Na Bíblia se afirma e repete “mil vezes” que o Deus da vida, solidário e libertador, está no meio dos povos empobrecidos e injustiçados (Ex 3,7-9). Jesus Cristo testemunhou a presença de Deus em todas as pessoas e em todos os seres vivos, principalmente nos colocados no altar de sacrifício do mercado idolatrado. “Estou e estarei sempre com vocês” (Mt 28,20), diz Jesus ao consolar os discípulos e as discípulas sob brutal tribulação, que são relações sociais que implicam repreensão, opressão e repressão por parte de quem está no poder político, econômico e religioso.

Nas ondas da evolução e por meio de pessoas humanas inspiradas, Deus escreveu dois livros: a Vida e a Bíblia. O biblista frei Carlos Mesters diz:Santo Agostinho dizia que a natureza, a criação, é o primeiro livro que Deus escreveu. Por meio dela Deus fala-nos. O pecado embaralhou as letras do livro da natureza e, por isso, já não conseguimos ler a mensagem de Deus estampada nos seres vivos da natureza e nos fatos da vida. A Bíblia, o segundo livro de Deus, foi escrito não para ocupar ou substituir a Vida, mas para nos ajudar a interpretar a natureza e a vida e aprender de novo a descobrir os apelos de Deus nos acontecimentos.” Se interpretada de forma justa e sensata, a Bíblia se torna um farol aceso para iluminar a caminhada humana na nossa única Casa Comum, o planeta Terra. 

A aparente contradição entre criacionismo e evolucionismo é conflito teórico abstrato sem sentido entre racionalismo iluminista de um lado e dogmatismo teológico do outro lado. Óbvio que a vida foi criada nas ondas da evolução como fruto da interação entre todos os elementos químicos e as energias vitais despertadas, o que torna possível a reprodução da vida. Tudo foi e continua sendo criado para ser um paraíso terrestre para toda a Comunidade de vida. Como Deus é amor (1Jo 4,8) ou o amor é Deus, e quem ama deixa a outra pessoa livre, Deus nos criou livres. No entanto, com a condição humana e mal uso da liberdade, parte da humanidade acabou se contaminando com os vírus do egocentrismo, do espírito de acumulação e foi ao longo da história se impondo sobre os outros e aprisionando para si os bens comuns que são de todos/as: a  mãe terra, a irmã água e os territórios. 

Com o decorrer da história, conforme o filósofo Jean Jacques Rousseau, “alguém cercou um pedaço de terra e disse “isso é meu” e os vizinhos, não compreendendo a gravidade do que estava acontecendo, de braços cruzados e cabeça baixa, resignados, não derrubaram a cerca e, assim, nasceu a propriedade privada capitalista, a maior fake news e mentira de todos os tempos.

Antes, os povos viviam em comunidades originárias e tradicionais. Tinham tudo em comum, sem cerca e sem escritura ou registro de propriedade. Aliás, muitos posseiros ou acampados da luta pela reforma agrária e indígenas ou Povos Tradicionais têm uma fé que os leva a dizer: “Quando Deus criou a terra não fez cerca e não passou escritura de terra e registro de propriedade para ninguém.” A terra é de todos/as, pois “pertence a Deus” (Ex 9,29; Dt 10,14; Js 3,13; 1Sam 2,8; 1Cr 29,11; Sl 24,1; 1Cor 10,26 etc.). “Terra de Deus, terra de irmãos/ãs!” foi o Tema da Campanha da Fraternidade de 1986, que inspirou as lutas populares que exigiram inserir na Constituição de 1988 as prescrições de Função Social da propriedade, desapropriação para fins de reforma agrária dos latifúndios que não cumprem sua função social, direitos dos Povos Indígenas e Quilombolas aos seus territórios e vários outros direitos sociais.

Mas eis que com o decorrer da história, uma minoria foi se impondo sobre os outros e iniciou-se a concentração de terra e de bens nas mãos de uns, enquanto outros começaram a ficar sem nada. Instalaram-se paulatinamente relações sociais que reproduzem a desigualdade socioeconômica, que, com o capitalismo – barbárie das barbáries – segue sem limites, aumentando em progressão geométrica a concentração de poder e capital cada vez mais, de tal forma que 1% das pessoas do mundo, por controlar quase metade do poder econômico de toda a humanidade, pisa com requintes de crueldade em 99% dos 8,1 bilhões de pessoas – população do mundo segundo a ONU em 2024 – e segue devastando os biomas e os ecossistemas, tudo em nome do lucro e da acumulação de capital, sem limites. 

Antes da noção mentirosa de propriedade privada da terra, nas Comunidades Originárias Tradicionais, a todas as pessoas, aos animais, inclusive, estava assegurado o direito de usufruto da terra. Vender ou comprar terra era proibido, era algo inimaginável. Era como vender a mãe. 

No livro CPT e MST: e a (In) justiça Agrária – Experiências de luta da CPT e do MST, afirmamos: “Para os povos indígenas “a terra é sagrada, nela se baseia a organização tribal. Entre os tapirapé, os mortos são enterrados dentro das casas em que viveram e onde continuam vivendo os seus parentes” (MARTINS, 1983, p. 117). No livro Os Camponeses e a Política no Brasil: as lutas sociais no campo e seu lugar no processo político, José de Souza Martins recorda: “A um tapirapé a ideia de sepultar o morto fora da casa em que viveu causa o mesmo terror que causaria a nós a ideia de enterrar os nossos mortos dentro de casa. Seria sinal de abandono do morto por seus parentes, motivo para que viesse assombrá-los. Por isso, a troca ou venda da terra não faz nenhum sentido para um tapirapé, porque significa, entre outras coisas, o abandono de seus parentes mortos e a quebra dos eixos de sustentação da sua sociedade” (MARTINS, 1983, p. 118).

Vital para a humanidade se tornou vivenciar uma Espiritualidade Libertadora que satisfaça a sede e a fome mais profunda que brota nas pessoas, principalmente nas situações mais angustiantes. Temos que levar a sério a pergunta: Por que e para que os povos periferizados correm para as igrejas? “Não posso ir à reunião da comunidade e nem participar da luta por direitos hoje porque tenho que ir ao culto na igreja”, alega muita gente empobrecida ao ser convidado/a para uma reunião que visa organizar o povo para lutar pelos seus direitos. 

A brutal máquina de moer vidas chamada capitalismo está produzindo o fascismo e a extrema-direita, que é antessala da dizimação da humanidade, pois com o negacionismo e a postura fundamentalista e moralista, aumentarão cada vez mais seus privilégios e destruirão totalmente as condições objetivas que garantem a vida na nossa única Casa Comum, o planeta Terra. Entretanto, tenho a fé e a convicção de que a luz e força divina, o dedo de Deus, estão em nós, principalmente nos últimos, os mais violentados pelo sistema. A luz divina guia as pessoas e os povos injustiçados. Se tivermos a humildade e a sabedoria de nos deixar ser guiados pelas “minorias abraâmicas”, na expressão de Dom Hélder Câmara, construiremos uma sociedade com justiça, paz, amor e verdade. 

Assim como um/a ciclista se equilibra na bicicleta ao pedalar e ao olhar para frente, ninguém vive sem sonho. Morremos ao deixar de sonhar. O sonho de um mundo humanizado com justiça, paz e amor é um sonho com força infinita. A história está aberta. Vale a pena dedicar nossa vida à concretização deste sonho: construir uma sociedade que reconstrua o “paraíso terrestre”, “uma terra sem males”, onde todos os seres vivos sejam admirados e respeitados como integrantes da orquestra que produz uma sinfonia que faz todas as pessoas e todos os seres vivos felizes. 

A questão principal não é convencer os povos do caminho que os intelectuais estão propondo. Há pessoas que olham mais para livros do que para as pessoas. Ler livros bons é bom, mas ler as pessoas é melhor ainda. Todo pajé, todo cacique, toda rezadeira é uma biblioteca viva. A história nos diz que projetos a partir da intelectualidade têm pernas curtas, pois promovem apenas reformas efêmeras. A questão vital é compreender a espiritualidade que (co)move e orienta as pessoas, a fé inabalável que as pessoas injustiçadas, adoecidas, violentadas têm em Deus, em Jesus Cristo, em Alá, em Oxum, em Iemanjá, em Nossa Senhora do Rosário, em Tupã, nos encantados, nos bons espíritos, nos ancestrais, no Deus das religiões de matriz africana, no Deus dos Povos Originários e em tantos outros nomes dados à força e à luz divinas que nos guiam. Quem compreender isso terá oxigênio para doar a vida toda estando no meio dos povos nas periferias das cidades e no campo, nas lutas justas necessárias. Que a luz e a força divina existentes em nós, nos/as injustiçadas/os, na mãe terra, na irmã água e em todos os seres vivos nos guiem sempre como servidores/as dos povos, nas lutas justas e urgentes.

Que alcancemos a espiritualidade libertadora que revela  o sagrado em nós, que nos humaniza, nos fortalece na coragem, na solidariedade, na resistência e na luta necessária por um mundo que seja de justiça e paz, com respeito à vida, em toda sua biodiversidade.

Referências

MARTINS, José de Souza. Os Camponeses e a Política no Brasil: as lutas sociais no campo e seu lugar no processo político. 2ª edição. Petrópolis: Vozes, 1983.

MOREIRA, Gilvander Luís. CPT e MST: e a (In)justiça Agrária? Experiências de luta da CPT e do MST. Belo Horizonte: Ed. Dialética, 2021.

19/11/2024.

¹ Frei e padre da Ordem dos carmelitas; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico de Roma, Itália; doutor em Educação pela FAE/UFMG; assessor da CPT, CEBI, Movimentos Sociais e Ocupações.  

E-mail: [email protected]www.freigilvander.blogspot.com.br      –       www.gilvander.org.br

www.twitter.com/gilvanderluis        –     Face book: Gilvander Moreira III – Canal no You Tube: Frei Gilvander luta pela terra e por direitos

² Cf. ROUSSEAU, Jean Jacques. Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens

Coleção Os Pensadores. 3 ed. São Paulo: Abril Cultural, 1983.

Obs.: As videorreportagens nos links, abaixo, versam sobre o assunto tratado, acima.

1 – O QUE (CO)MOVE E ORIENTA AS PESSOAS E OS POVOS? RELIGIÃO LIBERTADORA OU ESPIRITUALIDADE LIBERTADORA?

2 – “Se não gera profecia, Experiência no Espírito não é Pentecostes. Há luz no túnel e não só no fim.”

3 – Frei Betto fala sobre Espiritualidade no 12º Encontro Nacional de Fé Política. em BH/MG. Vídeo 2

4 – Espiritualidade de Encontros humanizadores: Palavra Ética com frei Gilvander Moreira – 21/12/23

5 – Marcelo Barros: Livro OS SEGREDOS DO NOSSO ENCANTO – fé cristã e espiritualidades indígenas e negras

6 – COM FÉ E MÍSTICA DOS MÁRTIRES, O POVO PALESTINO VENCERÁ! Fora, Israel genocida! Por frei Gilvander

7 – Afeto, amor e cuidado em Espiritualidade Libertadora no 3º dia do XV Intereclesial das CEBs, em Rondonópolis, MT, na Plenária-mãe “Casa Comum”. Vídeo 10 – 20/07/23

8 – Momento Orante de Espiritualidade libertadora no 3º dia do XV Intereclesial das CEBs, em Rondonópolis, MT, na Plenária-mãe “Casa Comum”. Vídeo 9 – 20/07/23

9 – TOQUE DO COLETIVO ALVORADA: A Espiritualidade humanista e militante de Frei Gilvander – 30/3/22

10 – Semeando Espiritualidades 52: Espiritualidade e luta pela terra. Por Frei Gilvander – 06/12/21

Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Jornalistas Livres

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