Ao longo da história, escritoras lésbicas foram marginalizadas e apagadas do cânone literário. Embora o cenário atual não seja mais o mesmo do que de décadas passadas, já que as facilidades proporcionadas pelas plataformas digitais e o incentivo de editoras independentes têm promovido uma nova leva de autoras e publicações, as mudanças ainda acontecem a passos lentos e não são satisfatórias.
Por Caroline França, especial para os Jornalistas Livres
É inegável que a literatura, assim como outros campos, é atravessada pela misoginia e pela lesbofobia. Homens, principalmente brancos e heterossexuais, ainda ocupam posições de prestígio nesse meio, enquanto mulheres, mais especificamente mulheres lésbicas, são invisibilizadas e excluídas da participação literária.
Pouco se fala, por exemplo, de Cassandra Rios, a primeira escritora brasileira a atingir, em 1970, a venda de um milhão de exemplares, superando autores considerados renomados, como Jorge Amado e Érico Veríssimo. Assumidamente lésbica, ela escreveu dezenas de romances que abordam relações afetivas e sexuais entre mulheres, muitos deles, inclusive, tendo sido censurados pela Ditadura Militar.
Segundo a escritora Natalia Borges Polesso, 40, há uma tentativa de desvalidar mulheres como produtoras legítimas de literatura, cultura e arte. Nesse sentido, escrever histórias com mulheres que se relacionam afetivamente com outras mulheres é uma escolha política para ela, justamente para que essa literatura se coloque no centro de um debate que é literário e atravessado por questões políticas. “É por isso que eu sempre reforço que escrevo a partir de mulheres lésbicas e suas vivências”, diz.
Em “Amora”, livro que venceu duas categorias do Prêmio Jabuti de 2016 (Escolha do Leitor e Contos), Natalia traz a potência das narrativas protagonizadas por lésbicas. A obra mudou sua carreira, mas, mais do que isso, fez parte de um processo de amadurecimento e de entender que produzir esse tipo de literatura era possível.
“É um pouco engraçado o que vou dizer, mas eu não sabia que podia fazer isso, porque a gente é tão bombardeado com narrativas heterossexuais, com narrativas dentro da heteronormatividade, que a gente acaba tolhido”, reflete a autora que, este ano, publicou “A extinção das abelhas”, uma distopia com personagens lésbicas e bissexuais.
Não tem como negar que “Amora” representa um marco na literatura brasileira contemporânea e abriu portas para que outras publicações produzidas por e para mulheres lésbicas surgissem. O livro também motivou Natalia a resgatar e a mapear escritoras lésbicas não só do Brasil, como de outros países.
A lista, que faz parte do seu projeto de pós-doutorado, contém mais de 500 mulheres, sendo que quase 300 delas são brasileiras. Entre os nomes, estão a própria Cassandra Rios, além de Cidinha da Silva, Vange Leonel, Luciany Aparecida, Diana Salu, Aline Zouvi, Monique Malcher, Marília Floôr Kosby e Dia Nobre.
Isso mostra a importância de aumentar a participação de escritoras lésbicas na produção literária. “Eu acho que o cenário está melhor nos últimos cinco anos, apesar de tudo o que vem acontecendo no campo político e social. Claro que se a gente tivesse mais condições, por exemplo, tivesse políticas públicas, obviamente seria melhor. Está longe do ideal, mas eu considero que já melhorou bastante”, pondera Natalia.
Por uma literatura mais lésbica
Por muito tempo, mulheres lésbicas não se sentiram representadas na literatura e, se tem algo em comum entre muitas escritoras, é o desejo de contar histórias que elas não só gostariam de ter lido em um período específico de suas vidas, mas que também refletissem suas vivências, seus conflitos, suas paixões.
Para Sofia Dolabela, 21, o processo de aceitação da sua sexualidade foi difícil e solitário — uma experiência que ela não via representada na arte. “Decidi começar a escrever sobre a vivência na lesbianidade porque eu queria simplesmente tornar a literatura nacional mais lésbica. A minha ideia era, de certa forma, produzir literatura, produzir arte, para que outras mulheres lésbicas pudessem se identificar, para elas se sentirem menos solitárias, menos confusas, para que o processo de aceitação delas fosse mais simples que o meu”, conta.
Criar narrativas que se assemelhavam a si mesma e a outras mulheres foi o que levou Lívia Ferreira, 27, à escrita também. “Eu nunca tinha me visto em história alguma e depois descobri que várias garotas também não. A minha vontade de continuar produzindo ainda vem dessa escassez ou de uma representação feita de maneira não correspondente à nossa, de lésbicas negras e desfeminilizadas. Para mim, é como se nós tivéssemos encontrado nosso próprio lugar seguro, com histórias felizes e personagens que se parecem conosco”, observa.
Transformações no mercado editorial
Assim como Sofia e Lívia, inúmeras mulheres passaram a produzir e promover a literatura lésbica em busca de representatividade. E, o que antes era um processo árduo e restrito às editoras tradicionais, tornou-se mais acessível com o surgimento de diferentes plataformas digitais que permitem às escritoras publicar de forma autônoma e, muitas vezes, gratuita. Além disso, financiamentos coletivos e iniciativas de editoras independentes têm dado mais espaço e visibilidade a esse tipo de produção.
O primeiro romance de Lívia, chamado “No Olhar do Invisível”, foi publicado em 2019 no Wattpad, aplicativo para compartilhamento de histórias que, segundo ela, contribuiu para a construção do seu público. De lá para cá, a escritora entrou de vez no mercado editorial e lançou os livros “Carnaval Amarelo” (Editora Viés) e “Passos de Liberdade” (Se Liga Editorial). Outros dois contos de sua autoria também estão disponíveis na Amazon, sendo eles “(Im)possíveis: o que não te disseram com o tempo” e “Visíveis”.
Já Sofia, publicava seus escritos em um perfil no Instagram, onde também divulgava o trabalho de outras autoras. Graças a essa iniciativa, construiu uma grande rede de apoio e acabou recebendo o convite para publicar o seu primeiro livro: “Em caso de urgência” (Editora Viés), uma coletânea de poesias escritas em prosa poética.
Para as duas autoras, as plataformas digitais facilitam, sim, a circulação da literatura lésbica. “Vejo muitas escritoras lésbicas usando as redes sociais como uma plataforma para serem ouvidas, o que é super válido, porque, pelos meios tradicionais, somos silenciadas, fingem que não existimos, não dão o menor valor para o nosso trabalho”, enfatiza Sofia.Apesar disso, elas apontam um outro lado pouco discutido: a internet ainda não é um canal acessível para todas as mulheres. “Me preocupo com quem não tem esses acessos. Há muitas lésbicas sem condições de comprar livros e sem acesso aos meios digitais. Entregar histórias para essas pessoas também seria importante, mas não há incentivo do Estado, o que torna tudo mais complicado”, conclui Lívia.
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