Por J. Renato Peneluppi Jr.*
Começou nesta sexta-feira (4) um dos principais eventos políticos na China. As Duas Sessões – do chinês liang hui (两会) ou os “dois encontros” – representam um momento chave do calendário chinês para entender o que o país fez e o que projeta para o futuro.
Realizadas anualmente desde 1954, as Duas Sessões reúnem os dois organismos mais importantes na estrutura de poder na China: a Assembleia Nacional Popular (全国人民代表大会), ou ANP; e o Comitê Nacional da Conferência Consultiva Política do Povo Chinês (中国人民政治协商会议), ou CCPPC.
Ao longo de duas semanas, esses dois principais órgãos deliberativos reúnem-se para definir prioridades e estabelecer metas para os próximos 12 meses. Por isso, especialistas em China em todo o mundo observam atentamente as Duas Sessões, em busca de pistas sobre a visão das lideranças chinesas para o futuro e o que esperar no curto prazo.
Tecnicamente, a China é Unicameral, ou seja, possui apenas uma Câmara Legislativa. Apesar de ser um Estado liderado por um único Partido, o Partido Comunista Chinês (PCCh), o sistema político chinês possui outros oito partidos, entre eles a Liga Democrática da China e a Sociedade de Três de Setembro (jiu san; 九三).
Essa composição torna praticamente impossível para o PCCh controlar completamente todo o processo político do país. Ainda assim, as decisões mais importantes são tomadas entre os representantes dos níveis mais altos do Partido, que normalmente reúnem-se no outono (no hemisfério norte), meses após as Duas Sessões.
Quem faz parte?
A cada primavera, tradicionalmente em março – exceto em 2020 quando precisou ser adiada por causa da pandemia do novo coronavírus – representantes da população que fazem parte da ANP e do CCPPC reúnem-se no Grande Salão do Povo, no lado oeste da Praça da Paz Celestial, em Pequim. Diferentemente do Brasil, a cúpula legislativa só se encontra uma vez por ano.
A ANP é o órgão máximo legislativo da China, composto por cerca de 3 mil delegados. Com mandato de cinco anos, que alias se encerra em 2022, esses representantes são eleitos nas diferentes províncias e regiões do país via eleições diretas para então eleger um Comitê Central de cerca de 200 membros titulares e 170 suplentes. Por tanto, neste ano será definida a politica sucessória, à começar em 2023, quando toda a estrutura de poder da China terá de ser referendada.
Por meio de uma votação escalonada, os moradores de pequenas localidades escolhem seus representantes em nível distrital, no único estágio em que a eleição se dá pelo povo. Nas votações posteriores, os representantes distritais elegem representantes de municípios que, por sua vez, elencam congressistas provinciais.
Ou seja, o sistema político na China é desprendido da eleição direta “uma pessoa, um voto” enquanto um modelo responsivo de governança. Através dessa estrutura de poder, os eleitos são escolhidos por seus pares ou de níveis inferiores na hierarquia.
As assembleias populares têm como objetivo manifestar a vontade popular, a manutenção da defesa dos direitos e interesses do povo, além de incentivar novas propostas e garantir a participação do cidadão nas decisões do país. É na ANP que ocorre a aprovação de leis e mudanças de regulações, desempenhando o papel de portador institucional para implementar a democracia popular em todo o processo político.
Já o CCPPC é o órgão consultivo, composto por mais de 2 mil representantes da sociedade civil. Os membros do CCPPC são conselheiros, não estando ligados necessariamente a algum partido político, mas representando a sociedade em geral. Acadêmicos, empresários, personalidades, advogados etc. são selecionados por meio de consulta pública e recomendação. Entre os destaques, estão astros como o ator Jackie Chan e o ex-jogador de basquete Yao Ming, que atuou na Liga Nacional Americana (NBA).
O que vem por aí?
Tradicionalmente, no primeiro dia das Duas Sessões, ocorre a leitura do Relatório de Trabalho do Governo do ano anterior, no qual destacam-se as metas alcançadas e definem-se os próximos passos. O documento é entregue pelo primeiro-ministro chinês, Li Keqiang, que realiza uma coletiva de imprensa no último dia das reuniões anuais.
No ano passado, a China conseguiu realizar a primeira meta do chamado “Duplo Centenário”, ao eliminar a pobreza extrema e tornar-se uma sociedade moderadamente próspera juntamente com os 100 anos do PCCh. À época da comemoração dos cem anos da fundação da República Popular, em 2049, espera-se alcançar o rejuvenescimento da nação chinesa e construir uma sociedade próspera em todos os aspectos. O processo foi dividido em duas etapas. Até 2035, a China busca realizar a modernização socialista.
Por isso, neste ano, as lideranças políticas irão se concentrar nas etapas principais necessárias para garantir que todas as medidas estratégicas sejam postas em ação. A expectativa é de que o relatório de 2022 dê continuidade às metas estabelecidas para o 14º Plano Quinquenal (2021-2025), com ênfase nas medidas para reduzir as emissões de carbono e impulsionar o crescimento econômico.
A expectativa é que seja definida uma meta entre 5% e 5,5% de expansão do Produto Interno Bruto (PIB) neste ano. Porém, aspectos ligados à proteção aos direitos dos trabalhadores, especialmente nos serviços de entrega e no transporte de automóveis, bem como a crianças e adolescentes do país também devem ser destacados no documento, como parte das iniciativas do Código Civil, que completou seu primeiro ano.
Além disso, o sucesso dos Jogos Olímpicos de Inverno de 2022, realizados em Pequim, deve reforçar a mensagem à comunidade internacional sobre a capacidade da China em organizar grandes eventos. Da mesma forma, a luta contra a covid-19 e a política eficaz de tolerância zero à disseminação do coronavírus são temas centrais para os líderes chineses.
Há uma série de outros debates que também são esperados, entre eles: desemprego (como resultado da pandemia); questão demográfica (envelhecimento populacional e menor taxa de natalidade); proteção dos direitos das mulheres; moradia, saúde e educação. Como não poderia deixar de ser, os riscos geopolíticos também devem entrar na pauta.
No último dia, o ministro das Relações Exteriores, Wang Yi, também apresenta um Relatório de Trabalho que, assim como o documento sobre as decisões domésticas, deve tratar de assuntos relacionados ao cenário internacional. A aliança estratégica entre China e Rússia, a questão de Taiwan e as relações bilaterais com os Estados Unidos são temas centrais voltados à defesa do país em um mundo cada vez mais hostil.
Observa-se, então, que as decisões e os debates que marcam as Duas Sessões não são elaborados no decorrer das próximas duas semanas, mas ao longo dos últimos meses, durante a preparação para o documento final, iniciado nos bairros, vilarejos, cidades e províncias. Nesse processo que vai desde a base em direção ao topo, o evento marca uma cerimônia ritualística de conclusão, chancelando um longo processo de debate democrático de elaboração da construção da pauta nacional e da posição do país em nível global.
(*) Advogado, doutor em Administração Pública Chinesa pela Huazhong University of Science and Technology (HUST), diretor-executivo na China University Summer Schools Association (CUSSA), associado ao think tank não-governamental Center for China and Globalization (CCG) e integrante do coletivo Camélias do Leblon.