China e Rússia: a sólida parceria que pode definir o futuro da humanidade

O economista Elias Jabbour, autor de um livro imprescindível sobre a China, explica o papel que o gigante asiático vem jogando no mundo
O líder da China, Xi Jinping (esq.), e o da Rússia, Vladimir Putin (dir.)
O líder da China, Xi Jinping (esq.), e o da Rússia, Vladimir Putin (dir.)
Livro imprescindível

Por trás das cenas que o mundo vem acompanhando no conflito entre Rússia e Ucrânia, a China é o país que vem jogando um dos papéis mais importantes e não é de hoje que o gigante asiático faz com a Rússia uma dupla diplomática das mais sólidas.

E tanto Vladimir Putin quanto Xi Jinping já deixaram claro que os dois países compartilham uma amizade inquebrantável.

Se por um lado isso significa que a China pode cumprir um papel fundamental nos diálogos de paz que vem ocorrendo, isso também faz com que o mundo tenha os olhos sobre decisões que podem impactar não só o destino da geopolítica e da economia mundial, mas talvez até do futuro da humanidade.

O fato é que a relação entre Putin e Xi Jinping na guerra na Ucrânia muda o cenário geopolítico. Para falar sobre esse e outros temas, nós conversamos com Elias Jabbour, geógrafo e professor dos Programas de Pós-Graduação em Ciências Econômicas e em Relações Internacionais da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).

Elias é também autor do livro “China: o socialismo do século XXI”, um meticuloso trabalho teórico e estatístico que ele desenvolveu com o pesquisador Alberto Gabriele.

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JULIANA MEDEIROS: Eu quero começar nossa conversa, Elias, já falando sobre o livro, que você lançou com as presenças ilustres de Silvio Almeida – que assina a quarta capa do livro – e da ex-presidenta Dilma Rousseff. Essa obra fala sobre uma China que se tornou nas últimas décadas a grande impulsionadora do sistema econômico mundial. E, acho que as principais perguntas que seu livro lança ao debate e à reflexão é: O que é esse socialismo chinês? É possível dizer que ele de fato é diferente do capitalismo que nós conhecemos? A China afinal é Capitalismo de Estado ou Socialismo de Mercado?

ELIAS JABBOUR: Essa é a pergunta que todo mundo me faz há muito tempo, se esse é um socialismo de mercado ou se é capitalismo de estado. E eu sempre digo o seguinte, que a China… aliás, eu lembro de uma carta que o Marx escreve para Vera Zasulitch – uma revolucionária russa – em que ela pergunta se é possível a Rússia transitar direto para o socialismo a partir da comuna rural, sem passar pelas dores do parto da acumulação primitiva do capital. E ele passa três meses rascunhando a carta e tal, porque é pego de surpresa com essa pergunta. Até que ele responde a carta dizendo que sim e ele faz uma alusão em algum momento da carta à terra… Nós estamos em cima de algo, estamos em cima de uma formação geológica e essa formação geológica é fruto da combinação de formações geológicas anteriores. Ou seja, uma primeira formação com uma segunda, e elas vão se combinando, gerando uma terceira e assim sucessivamente. Então a China ela também – e a sociedade também deve ser vista da mesma forma – ela também é uma expressão de uma mistura de épocas históricas diferentes convivendo no mesmo momento histórico. Então nesse aspecto a China é uma formação econômico-social de orientação socialista, o que significa que ali convivem modos de produção de épocas históricas anteriores, ou seja, tem o modo de produção dominante, que é representado pela propriedade pública dos meios de produção, mas também tem capitalismo na China, também tem a pequena produção mercantil na agricultura, existem empresas coletivas, ou seja, existe uma série de formas históricas ali que ao se combinarem em unidade de contrários, em muitos casos, geram uma nova forma histórica. E essa nova forma histórica, ela é uma formação econômico-social nova que – aliás, essa é a tese do livro – de que a China é a primeira experiência de uma nova classe de formações econômico-sociais que a gente dá o nome genericamente de socialismo de mercado. E a característica principal é que ela é a síntese da combinação de formas históricas antigas, gerando uma nova, que é essa que está diante da gente. Que por sinal, é a engenharia social mais avançada que o ser humano pôde criar até agora, vamos dizer assim. Até mais avançado que a Soviética, dado a longevidade da experiência chinesa e também do que eles estão conseguindo realizar, mesmo fazendo parte de um mundo capitalista, coisa que a União Soviética não era. E portanto, ela também sofre com as instabilidades do capitalismo.

Então, a China é algo novo a ser desvendado. Nós [no livro] tentamos nos insurgir contra essa dicotomia de socialismo versus capitalismo, até porque não é uma questão que remete ao princípio da identidade kantiana [em que] A não pode ser B. Ou B não pode ser A. Para nós, A mais B – nós como marxistas – vemos que A mais B é igual a C e nós estamos tentando desvendar o que é esse C. Nós saímos dessa [dicotomia] também e colocamos uma cunha no debate. Porque todo mundo acha que a China é um país capitalista. Desde marxistas até economistas neoclássicos. E nós fazemos um trabalho científico de entregar um trabalho teórico e empírico para demonstrar o contrário, que a China é um país de formação social de tipo diferente, de uma outra tipologia. E orientada ao socialismo.

JULIANA MEDEIROS: Seu livro tem uma postura bastante além de analítica, crítica, e tenta não se limitar a definições fáceis como a de dizer que a China seria um exemplo de fracasso do socialismo ou por outro lado do ideal comunista. Que futuro, Elias, você vislumbra num mundo que pode vir a ser efetivamente comandado – e não quero entrar agora diretamente na questão do conflito, até porque isso já vem ocorrendo há muito tempo – de alguma forma por essa China em expansão, em termos de influência? E aproveito para perguntar se vc também acredita que estamos em meio a um processo histórico de decadência do imperialismo norteamericano.

ELIAS JABBOUR: Uma pergunta fácil, né? Vamos lá. Eu acho que uma das características do nosso trabalho é demonstrar que o socialismo é um grão de areia na história, ele é uma experiência de apenas cem anos de idade, sendo que na China só tem setenta anos e se nós formos comparar com os modos de produção anteriores, o capitalismo tem seiscentos anos de idade e não está ainda no seu fim, está longe do seu fim ainda. O feudalismo teve dois mil anos de idade, o escravismo não sei mais quanto tempo, a comuna primitiva cinco mil anos. Então o socialismo que a China apresenta ao mundo é um socialismo que nós chamamos de embrionário, em fase de teste, é uma criança que tá saindo da barriga da mãe, é um bebezinho ainda, dando seus primeiros passos. E o que nós tentamos fazer nesse livro também… é muito fácil as pessoas se refugiarem em conceitos abstratos pra falar de socialismo ao invés de adentrarem dentro do objeto e tentar decodificar aquele código genético. Então as pessoas se refugiam num conceito abstrato: “se tem capitalismo, não é socialismo”, “se tem propriedade privada, não é socialismo”, ou seja, montam um checklist que é algo muito estranho ao marxismo também, porque Marx é um seguidor de Hegel e para ambos o conceito se manifesta no movimento real. Não existe um checklist, não existe uma série de classificações a anteriori que a gente vai ter que fazer um check pra falar se é ou se não é. O que define tal experiência é o movimento real, ou seja, é ali que você vê o conceito se manifestando. Então o socialismo que se manifesta na China é uma forma histórica que, na nossa cabeça – tanto na minha quanto do Alberto – se manifesta como o quê? Como a expressão da transformação da razão em instrumento de governo. É por isso que nós falamos, por exemplo, que a China adentra uma fase nova de desenvolvimento da qual as teorias do desenvolvimento que eu ensino na faculdade, por exemplo, não dão mais conta. E que nós chamamos de “nova economia de projetamento”, ou seja, uma economia baseada em grandes projetos e esses projetos não são uma expressão de uma relação custo-benefício, mas uma expressão da relação custo-benefício mediada pela razão humana. E a razão humana, nesse caso, é expressada de que forma nesse sistema novo que surge na China? A partir da necessidade do país de gerar treze milhões de empregos urbanos por ano, ao mesmo tempo em que eles tem que [avançar no campo] tecnológico. Então, a China conta hoje com dois milhões de seres humanos que – e as pessoas falam muito do “novo homem” sob o socialismo, aquela coisa do Che Guevara, e eu acho que o novo homem, a nova mulher sob o socialismo, se encarnam nessas figuras, nesses dois milhões de seres humanos que trabalham na China com a tarefa de encontrar meios e maneiras de se alocar treze milhões de pessoas nas cidades todo ano. Ou seja, não é só emprego. É emprego, é casa, saneamento básico. É um nível de planejamento que nós não temos noção aqui no Ocidente, como uma coisa dessas funciona. Ao mesmo tempo em que a China tem que enfrentar esses desafios de alcançar a fronteira tecnológica, porque o socialismo não é uma formação superior ao capitalismo, no campo da moral. Não. O socialismo só vai demonstrar sua superioridade em relação ao capitalismo, demonstrar cabalmente, quando demonstrar uma produtividade do trabalho maior do que o capitalismo e para isso a China vai ter que, por exemplo, passar os americanos ou enfrentar essa questão da tecnologia de semicondutores, por exemplo, que eles estão duas gerações atrás dos Estados Unidos. O mundo e a construção do socialismo não é um concurso de “mister universo”. Esse negócio é um buraco muito mais embaixo.

A China joga pra frente a fronteira das ciências humanas e sociais. E o que nós temos observado hoje ao estudar China, e que todo mundo percebe, é que existe uma coisa nova acontecendo ali. Então, muitos tentam fazer o movimento que nós fazemos, que é fundir sujeito, objeto, teoria e história e buscar como que esse conceito se manifesta no movimento real. Esse é um trabalho que não é fácil. Agora, a grande maioria faz [apenas] dois movimentos. Dobram a aposta, chamando aquilo de capitalismo de estado mas, dobrando a aposta [em um conceito] que não explica absolutamente nada. Aliás, é um pleonasmo. Porque o capitalismo é uma criação estatal, o mercado é uma criação estatal, a moeda é uma criação estatal. Então chamar algo de capitalismo de estado, acho que é uma aberração conceitual, mas isso é uma outra discussão. Ou então você volta naquela discussão velha da economia heterodoxa de buscar entender quais são essas novas relações entre estado, mercado e instituições. O que também não resolve nada para compreender a China, até porque a China chegou num grau de desenvolvimento em que o que está posto enquanto teoria, vamos dizer assim, pra entender os processos de desenvolvimento, não explica mais aquilo. Pode ajudar a entender um pedaço daquilo. O [John] Keynes, o [Joseph] Schumpeter e outros autores clássicos de desenvolvimento podem nos ajudar a entender pedaços da China. Mas não nos entregam uma visão da totalidade. Então esse livro é um desafio intelectual que nós, tanto eu quanto o Alberto, fazemos e talvez com algum sucesso. Ainda é muito cedo pra falar que nós nos demos bem nas nossas hipóteses, que elas se confirmaram. Eu acho que estão se confirmando, mas tem que ver o que o público acha.

JULIANA MEDEIROS: Em uma de suas entrevistas sobre seu livro, você diz que a China cresce há 40 anos seguidos, enquanto o Ocidente caminha para uma estagnação secular. E além da capacidade de flexibilização chinesa e estabilidade social, você lembra também esse fenômeno que vem ocorrendo nas democracias ocidentais que foram capturadas por uma cleptocracia financeira que abriu espaço para o surgimento do fascismo, que não deixa de ser também um fenômeno mundial. Seria esse modelo chinês uma alternativa a esse processo que a gente pode chamar de “degradação das sociedades” dentro desse capitalismo moderno como nós conhecemos?

ELIAS JABBOUR: Eu acho que você vai me achar uma figura muito mais conservadora do que você gostaria que eu fosse, mas eu sou muito pé atrás com modelos. Então, eu prefiro trabalhar da seguinte maneira, existe a anatomia do macaco. Ou seja, para entender como funciona a anatomia do macaco tem que entender uma espécie mais avançada que a do macaco, no caso, a anatomia humana. Então, quando me fazem essa pergunta que você me fez, que é interessantíssima, eu preciso falar isso. Eu acho que a China não é um modelo, mas ela é – ela pode ser vista – como a anatomia humana se analisada para entender a natureza do macaco, ou seja, ela é uma indicação de futuro certamente. Ela é uma indicação de uma engenharia social que pode indicar caminhos para o futuro da humanidade. Agora o modelo em si, eu não acredito nisso. Já um caminho que indique qual seria o futuro da humanidade, certamente, acho que a China vai ocupando exatamente esse espaço de inspiração, de construção de uma engenharia social, de instituições mais avançadas do que aquelas criadas pelo capitalismo, por exemplo.

JULIANA MEDEIROS: Em meio a tudo isso Elias, temos o projeto chinês, a Rota da Seda – um arranjo que a China tem feito de exportação de bens públicos – que aliás, nosso vizinho a Argentina acaba de assinar e já vai receber US$ 23 bilhões em investimento. A Argentina, nos últimos 25 anos, tem vivido uma história de governos neoliberais que destruíram o país . Depois que Maurício Macri venceu as eleições – Macri que aliás, foi bastante celebrado por economistas e analistas na mídia brasileira – a Argentina passou por um novo processo de destruição e acumulou uma dívida de US$ 40 bilhões com o FMI e isso vendo ao mesmo tempo 30% da sua população chegando abaixo da linha de pobreza. Agora temos novamente essa alternância – já ocorrida anteriormente com o casal Kirchner, de orientação mais progressista – que é o governo de Alberto Fernández, que tem esse desafio de renegociar essa dívida com o FMI e retomar o desenvolvimento econômico do país. E o Brasil nessa história, Elias? Nem mesmo o pragmatismo de alguns militares que compõem o governo Bolsonaro foi capaz de enxergar essa oportunidade dessa parceria que vários países tem feito com a China?

ELIAS JABBOUR: São dois pontos que eu acho que você levanta na sua questão ou dentro dela, que eu acho interessante. Primeiro eu sou muito amigo da China, sou fã da China, etc. E fico feliz pelos argentinos em terem entrado na nova Rota da Seda e estarem abraçando essa oportunidade de reconstruir o país a partir de uma parceria estratégica com um país não imperialista, ou seja, a China vai colocar dinheiro ali, investimentos, sem as condicionalidades que o FMI colocava, o Banco Mundial. Então, nesse sentido a China deve ser vista como uma superação das instituições criadas no âmbito dos [acordos de] Bretton Woods, que é o FMI e o Banco Mundial.

Agora, quem deveria estar fazendo o que a a China está fazendo na Argentina é o Brasil, né? Esse que é o X da questão. Eu acho que o grande parceiro que a Argentina precisava para enfrentar as suas contradições, o grande parceiro que deveria estar fazendo esse papel, esse arranjo institucional financeiro e produtivo com a Argentina, seria o Brasil. Mas, como o Brasil tem tomado decisões equivocadas em matéria de política econômica, há quarenta anos, tem se afundado num retrocesso civilizacional desde 2016, o Brasil tem se mostrado incapaz de lidar com questões que ele poderia lidar. Como por exemplo a questão da Venezuela, que a não presença do Brasil faz com que nós tenhamos que conviver no nosso continente com a presença russa, com a presença cubana, com a presença chinesa, com a presença americana, em um continente que o Brasil poderia ser o grande player. E o fato do Brasil não ter entrado na Rota da Seda é um desses absurdos. Porque o Brasil precisa de infraestrutura e a China é uma grande exportadora de infraestruturas. Nós poderíamos traçar um casamento aí – e tenho colocado isso nas minhas conversas também – um casamento de dois grandes projetos nacionais. Ou seja, no Brasil existe por exemplo a possibilidade de se fazer uma revolução industrial em cima desse grande bioma amazônico, desse grande bioma brasileiro. Tá todo mundo de olho nisso aqui, menos nós mesmos. O Brasil tem uma riqueza de recursos naturais muito grande e poderia fazer com a China uma grande jogada que envolveria uma exploração conjunta desse bioma, evidentemente que de modo soberano para o Brasil. Ao mesmo tempo que o Brasil poderia entregar à China, soja, minério de ferro e petróleo. E em troca disso receber investimentos produtivos chineses no setor de infraestruturas, coisa de 100, 200, ou 300 bilhões de reais em ferrovias, portos, estradas. Ao mesmo tempo em que a China deveria ser obrigada a transferir as tecnologias desse tipo de cadeia produtiva, que é um acordo semelhante ao que o Irã fez com a China. O Irã fez um acordo com a China em que esta vai receber petróleo por 25 anos em troca de bens públicos, em troca do metrô de Teerã, em troca de trens de alta velocidade, de fábricas, de unidades produtivas, ou seja, eu acho que o exemplo do Irã, você acompanha muito bem, o caso das relações China-Irã é algo paradigmático nesse aspecto. O Brasil vive uma espécie de [Golpe do] 18 Brumário aqui, ou seja, uma guerra de todos contra todos e que vamos ver se esse ano a gente consegue tentar nos reencontrar enquanto nação e começar uma reconstrução. Porque não vai ser um governo que vai dar conta, ou seja, o processo brasileiro é um processo que eu acredito ser geracional. Não vai ser [apenas] um governo que vai dar conta de reconstruir o país.

JULIANA MEDEIROS: Falando agora em Covid-19, o chefe da equipe de especialistas da Comissão Nacional de Saúde da China, Liang Wannian, defendeu recentemente a estratégia chinesa para enfrentar a pandemia, que utiliza testes em larga escala para rastreamento de contágios e o lockdown para isolar possíveis surtos da enfermidade. Segundo ele, o país tem números pequenos de infectados e mortes por covid-19 e, portanto, é possível “concluir que as estratégias de controle da pandemia na China têm sido eficazes e atendem ao objetivo de salvar vidas”. Mesmo diante de novos focos do surto surgidos há alguns dias, as autoridades locais mantém a estratégia de zerar a taxa de novos casos para poder voltar à normalidade. Como você vê, Elias, essa sinofobia que surgiu a partir desse cenário de pandemia? E essa teria conspiratória de que a China inventou um vírus para dominar o mundo ou coisa parecida?

ELIAS JABBOUR: Cara, é o tipo da questão assim que a resposta é a não resposta, porque eu acho que isso é a completa desumanização da humanidade. Vamos lá, os americanos não conseguiram lidar com uma pandemia que talvez tenha nascido lá. Ou seja, existem papers científicos demonstrando que o vírus já andava pelos Estados Unidos antes de dezembro de 2020. Isso não sou eu quem falo. Existem artigos científicos tratando disso. Mas como os americanos estão empilhando um milhão de mortos. E ao invés de lidar com essa realidade, eles preferem colocar a culpa em um país amplamente vitorioso quando na verdade se o Ocidente fosse inteligente, ou seja, vamos lá, [digamos que] eu sou a favor do capitalismo, vamos dizer assim, eu quero salvar o capitalismo do seu fim. Em vez de falar mal daquela experiência ali, vamos estudar o que aqueles caras fizeram pra poder ter sucesso no controle dessa epidemia e tentar copiar aqui. Mas não, né? Então é muito mais fácil você fazer um jogo de olha “não presta”, sinofobia, “vírus chinês”, esse racismo que está impregnado mundo afora e esse fascismo impregnado mundo afora. Ou seja, é uma não resposta, eu não sei responder. Vamos dizer, em termos conceituais e categoriais essa questão que você fez eu [diria que] não sei, [é uma] expressão da própria decadência de algo que já está passando do seu tempo histórico, que é o capitalismo. Então, quando algo passa do seu tempo histórico, começa a lidar com o contraditório dessa forma que estou te falando, apontando o dedo, fazendo julgamentos morais, em vez de olhar pra si mesmo e buscar a solução dos seus problemas.

JULIANA MEDEIROS: Agora já entrando finalmente no tema da guerra que acontece nesse momento, eu quero começar chamando atenção para a declaração do ministro das Relações Exteriores da China, Wang Yi, que recentemente disse que “o tempo vai provar que a posição da China está do lado certo da história” se referindo à guerra na Ucrânia. Ele deu essa declaração quando falava com jornalistas sobre a conversa ocorrida entre o presidente dos EUA, Joe Biden, e o da China, Xi Jinping no dia 18 de março. O chanceler chinês disse ainda que Xi Jinping enfatizou a Biden que “a China sempre foi uma força para manter a paz mundial”. No entanto, ao mesmo tempo, os porta-vozes do governo chinês vem em declarações pressionando fortemente os EUA a responderem questionamentos sobre, por exemplo, a descoberta desses mais de 20 laboratórios que supostamente seriam de armas biológicas encontrados em território ucraniano e que teriam financiamento direto do Departamento de Estado norteamericano. Se a gente considerar a posição da China, digamos, bem mais neutra nos últimos conflitos, como Líbia, Iraque ou Síria, é possível dizer que desta vez há uma alteração visível na postura que a China normalmente adota nesse tipo de cenário? Lembrando que a China ainda não condenou a invasão da Rússia à Ucrânia, o que tem sido criticado por muitos países. E eu queria também que vc começasse falando se você acredita, como levantam algumas teorias, que essa guerra poderia ter sido de alguma maneira previamente combinada entre Rússia e China, ou seja, Putin desde o início teria antecipado seus movimentos aos chineses já esperando aí por um certo apoio, vislumbrando talvez também essa mudança no balanço de forças mundial, que visivelmente está em estado de atrito agora?

ELIAS JABBOUR: Eu acredito que nós estamos em uma fase que o [economista Giovanni] Arrighi chamaria de caos sistêmico. Ou seja, é um interstício de hegemonias onde o caos acaba reinando. E desse caos vai surgir um [mundo] novo. Então, o que eu vejo agora? Pela primeira vez na história, desde que a ordem liberal é refundada e aprofundada em 1991 [com o colapso da União Soviética e o fim da Guerra Fria] que um país parte para o enfrentamento aberto dessa ordem. À China, por exemplo, não interessa desmontar a ordem liberal do mundo. Porque ela é parte dessa ordem, ela cresceu dentro dessa ordem liberal, vamos dizer assim. Ela se utilizou dessa ordem. A Rússia não. O que a Rússia está fazendo é o desafio militar à ordem liberal colocada. Então, nesse aspecto – e isso como parte de um todo que envolve uma mudança muito grande da base material no mundo nos últimos quarenta anos – ou seja, novos polos de poder mundial surgiram, como o próprio Brasil, como a China, a Rússia, a Índia, como o próprio Irã, ou seja, países com influências regionais muito grandes. E até a própria Alemanha, que se nega agora a ter esse papel. Ou seja, a Alemanha está passando pela terceira humilhação em cem anos, não é? Então, [hoje] existem as condições objetivas para o multilateralismo, para uma multipolaridade. E os americanos não aceitam isso. E ao não aceitarem isso, como eles estão diante de um mundo que mudou muito nos últimos quarenta anos, a única forma que [os EUA] tem de manter essa ordem internacional intacta é partir para o quê? Para a guerra e para as sanções econômicas. O que aliás é interessante, um país que acha que detém os melhores valores universais, os valores que mais servem aos destinos da humanidade, ou seja, “se a humanidade seguir as coisas que eu faço, a humanidade vai estar muito bem, porque eu sou um país especial, sou um povo eleito, minha terra é a nova Canaã”, ou seja, um país que se julga ter todos esses valores “do bem” ter que partir pra guerras e sanções econômicas pra manter essa ordem, é porque alguma coisa está completamente errada nessa história.Então eu acho que existe uma transição para uma nova ordem mundial só que você está lidando, Juliana, com uma teocracia, ou seja, os americanos não vão entregar a rapadura fácil. Como eles acreditam que são esse “povo eleito”, eles são capazes de destruir o mundo para demonstrar para o mundo que só eles têm a capacidade de criar, destruir e recriar o mundo. Veja o grau de loucura aqui, e essa é uma opinião que eu tenho elaborado sobre isso, ou seja, no fundo, como os políticos americanos trocaram a política pela ideologia nos últimos trinta anos, principalmente. [Hoje] você não tem mais um [ex-presidente Richard] Nixon, não tem mais um [Ronald] Reagan – e vocês podem até não gostar desses caras, mas esses tinham a real politik na cabeça, tinham clareza estratégica. Esses caras [de hoje] não, esses colocaram a ideologia na vida política e estão errando o tempo inteiro assim, errando, errando, ou seja, agora eles conseguem eleger dois inimigos ao mesmo tempo:  que é a China e a Rússia. Então acho que existe uma transição, uma nova ordem mas que também se alguém falar que vai ser daqui um mês está mentindo. Se alguém te falar isso, Juliana, vai estar mentindo porque ninguém sabe o que vai acontecer daqui um mês. É tudo muito imprevisível, é o caos sistêmico instalado sim hoje no mundo. Então, tudo é muito imprevisível, [não sabemos] o que vai acontecer a partir de agora.

Sobre a questão da China e a Rússia eu acredito o seguinte, eu não tenho informações suficientes pra falar categoricamente A, B ou C. O que eu tenho é um acúmulo particular de estudos que me dá a possibilidade de ter uma impressão sobre as coisas. E eu acredito que a China e a Rússia já estão agindo combinadamente há muito tempo. Por exemplo, desde o veto de ambos os países à abertura de uma zona de exclusão aérea na [Guerra da] Síria, acho que de 2013 pra cá, isso só tem se aprofundado, essa relação entre China e Rússia no âmbito da diplomacia. E essa relação ela se consolida alguns dias antes do conflito – porque eu não gosto nem de falar de “invasão da Rússia na Ucrânia” – quando os dois países entregam um documento para o mundo em que a leitura desse documento nada mais é do que a proposta de uma nova ordem internacional baseada na autodeterminação dos povos, na soberania de cada país, o que significa – olhando historicamente, e eu até já escrevi sobre isso – que a Rússia e a China propõem um novo tratado de Westfalia, ou seja, a repetição daquele tratado de 1664 se eu não me engano, posso estar enganado na data, mas é por aí [nota de edição: o ano é 1648]. Estão querendo reinventar Westfalia, ou seja, algo que os americanos rasgaram. Então, existe essa tentativa sino-russa de reinventar uma ordem mundial baseada em valores Westfalianos inclusive, o que seria uma “nova Westfalia”. Mas eu não sei se os chineses já sabiam [do conflito na Ucrânia] ou não, porque cá entre nós – você acompanha o mundo mais do que eu, e essa guerra na Ucrânia acontece há oito anos, não é de hoje essa guerra, não começou hoje essa palhaçada, vamos dizer assim. Donbass está sob ataque diário das forças de segurança da Ucrânia, capitaneados por pelo menos dois batalhões claramente neonazistas, como o chamado batalhão Azov, né? Que foi incorporado ao exército ucraniano. E poucas pessoas falam sobre isso, ninguém fala, só a gente. De 2014 pra cá morreram mais de 15 mil russos, vítimas desse genocídio cometido pelo exército ucraniano. E isso em clara discordância aos acordos de Minsk. A Ucrânia não vinha reconhecendo os acordos de Minsk, que previa a autonomia dessas regiões, e depois é a própria Ucrânia quem vai apelar aos acordos de Minsk quando a Rússia entra no país. Não começou agora tudo isso. Então qualquer pessoa que junte dois neurônios, sabe que isso uma hora ia acontecer. Ou seja, na minha cabeça o Putin já estava se preparando para esse momento, para esse enfrentamento militar à ordem liberal porque – e vamos elevar o grau de abstração – não é “invasão à Ucrânia” (eu não vejo as coisas dessa forma, como todo mundo vê e posso estar errado), o que eu vejo é o desafio aberto e militar à ordem liberal estabelecida.

O Putin já se preparava pra esse momento há catorze anos. Por quê? Porque os americanos insistiram em tratar a Rússia, principalmente após o final da União Soviética, como uma nação de terceira ou quarta categoria. A Rússia passou por um processo de humilhação em que foi subestimada pelos Estados Unidos. Eles perderam metade do território e mais de cem milhões de habitantes durante o fim da União Soviética e os americanos, mesmo assim, não desistiram da ideia. Veja bem, não desistiram da ideia de cancelar a Rússia do sistema internacional. Não foi suficiente acabar com a União Soviética, os americanos continuaram com esse objetivo – e aí a expansão da OTAN é apenas uma expressão disso. Porque se você observar estrategicamente, os objetivos dos Estados Unidos passam pelo cancelamento da Rússia da Ordem Internacional. Não é cancelar a Rússia do SWIFT ou deixar de assistir à bandeira russa lá no parlamento europeu. Não. É expulsar a Rússia do mundo. Esse é um dos objetivos estratégicos norte-americanos. E isso vai de encontro ao que  – não sei se você conhece esse documento – foi entregue ao Bill Clinton em 1992, em que grandes estadistas americanos, ou seja, ex-secretários de estado, o Henry Kissinger, professores universitários, deputados, senadores, ou seja, grandes figuras públicas dos Estados Unidos entregam uma carta para Bill Clinton pedindo para parar com isso, para não levar a OTAN adiante e para incorporar a Rússia à tal “ordem democrática” de uma forma (entre aspas) “soft power “. O Bill Clinton recebeu isso e no dia seguinte declarou que mais três países tinham entrado na OTAN. Então eles já tinham, desde a década de noventa, esse objetivo muito claro de expulsar a Rússia do Sistema Internacional. Acho que essa é uma leitura em que eu acredito, não é porque a minha leitura é evidente (e posso estar equivocado) mas acho que é uma leitura que contempla e que vai juntando os fios pra compreensão do que está acontecendo hoje.

JULIANA MEDEIROS: Eu já tinha escutado você comentando sobre isso no programa em que você participa, o “Meia Noite em Pequim” em que você abordou, que você considera legítima essa posição chinesa nesse conflito e o significado da recente abstenção na votação na ONU e que você considera como legítima a preocupação de Pequim em apoiar a posição russa sobre a segurança nacional em razão da expansão da OTAN, que ocorre desde 1991 em direção ao oriente. Na ONU, essa abstenção pode significar tanto um ato de condenação quanto de não-condenação, é muito difícil avaliar qual é a posição real da China. Mas tivemos também a Índia, a China, Brasil, vários países se abstiveram de condenar diretamente, o que representou um certo “apoio velado” à Rússia. Eu não sei se a China se consolida nesse papel de moderação no cenário mundial. Mas eu queria que voce comentasse um pouco sobre o Brasil, as posições confundiram a base de apoio do presidente, se ele se tornou apoiador, se virou comunista, se isso tem a ver com o Trump. O que significa dentro desse cenário a posição do Brasil, Elias?

ELIAS JABBOUR: Eu lembro quando o Bolsonaro foi pra Rússia e começou esse monte de meme na internet tirando onda com a cara do Bolsonaro. Ele na Rússia e [me refiro ao] nosso campo da esquerda. E eu observo as coisas de forma diferente, estou vendo o presidente da República Federativa do Brasil visitando a Rússia, não estou vendo o Bolsonaro indo pra lá. Só que como fazemos muitas vezes a política de uma forma pequena, rasa e rasteira, nós ficamos aqui fazendo meme . Poucas pessoas sabem que a relação do Brasil e da Rússia remonta ao império, ou seja, o império russo foi o primeiro império no mundo a reconhecer a independência do Brasil, inclusive. Então, essas relações do Brasil e da Rússia remontam à época do império brasileiro. Todos os nossos chefes de estado, se não me engano quase todos, estiveram na Rússia. Desde Dom Pedro primeiro. O Bolsonaro é apenas mais um chefe de estado que foi lá e na minha opinião é evidente que – e eu sou um cara que você sabe que sou independente até demais, tenho uma visão própria das coisas -, eu acho que ele marcou um golaço. Ele foi lá, e evidentemente que ele não sabe disso, o Bolsonaro não foi lá com uma visão estratégica, como pessoa e tal ele nem sabia o que estava acontecendo. Mas ele foi lá, mandaram ele ir, é importante. Ele não foi lá com uma agenda, vamos dizer assim, pronta. Mas conseguiu arrancar [declarações importantes] do Putin [que deve ter pensado] “vou colocar duas colheres de mel na boca do Brasil”.

Ninguém está colocando isso. Primeiro, a Amazônia é brasileira. E isso é importante o Putin dizer, ainda mais quando a própria esquerda – dada a política ambiental do Bolsonaro que é uma tragédia, começa a cogitar a ideia de que a Amazônia é uma questão internacional. E eu acho que não, acho que a Amazônia é brasileira. E o Putin falou isso pro Bolsonaro. E segundo, ele coloca o seguinte, olha, “a Rússia é favorável que o Brasil tenha um assento permanente no Conselho de Segurança das Nações Unidas”. Juliana, isso é um golaço diplomático. Nós temos que reconhecer…

JULIANA MEDEIROS: Sim…

ELIAS JABBOUR: Então agora esse é o ponto. O que acontece desde então é que a realidade vai se impondo diante do Bolsonaro, né? E essa realidade vai se impondo e uma das formas dessa realidade se impor é o quê? É terceirizar a política externa.  E a eleição do [Joe] Biden acelera esse processo. Ou seja, ele [Bolsonaro] terceiriza a política externa. Então, a política externa hoje do Brasil é a do Itamaraty, não é do Bolsonaro. O voto do Brasil na ONU foi voto do Itamaraty, não foi voto do Bolsonaro e assim sucessivamente. A postura de não condenação do Bolsonaro, por exemplo, é a posição de Itamaraty. Enfim, eu acho lamentável muitas vezes a forma como nós tratamos certas questões, mas eu vejo dessa forma. Não é que o Bolsonaro virou pró-Rússia, por conta do Trump, não. O que existe é que os interesses nacionais brasileiros em algum momento acabam se impondo diante da vontade de alguns malucos, né? E o interesse nacional brasileiro é ter a posição que o Brasil está tendo diante desse conflito atual na Ucrânia.

JULIANA MEDEIROS: Agora falando, Elias, sobre essas sanções contra a Rússia, você vem dizendo que esse movimento encabeçado pelos EUA mas já adotado por outros países, vai forçar o surgimento de uma nova ordem financeira e monetária paralela ao dólar. Lembrando que essas sanções chegaram ao ponto de “confiscarem as reservas da Rússia em bancos ocidentais”. Outro fator bastante pesado foi a decisão de retirar a Rússia do sistema de pagamentos de internacional, o SWIFT. Você já disse também que não se coloca um país como a Rússia fora desse sistema internacional impunemente. Ou seja, uma coisa é fazer isso com países com Cuba ou a Coreia Popular. E uma questão que vc coloca é que ainda não se sabe se interessa à China o surgimento imediato de um sistema financeiro paralelo que possa enfraquecer realmente o dólar. Porque se por um lado seria desejável suplantar o comando dos Estados Unidos, por outro, estar à frente do que seria uma nova ordem financeira internacional tem um custo muito alto para qualquer país. A China teria interesse em estar a frente disso?

ELIAS JABBOUR: Não. Eu não acredito nisso. Eu nado contra a corrente inclusive em relação a isso. A China pode vir a se tornar a maior potência econômica do mundo, mas à China não interessa substituir os Estados Unidos como o hegemon do mundo. E isso tem uma explicação histórica. Primeiro que a China nunca teve uma religião oficial do estado, nunca foi um país com aspirações de hegemonia mundial, nem quando ela foi potência mundial. Então isso vai contra até a própria natureza da formação histórica chinesa, ser líder mundial, chefe do mundo ou algo do tipo. Os chineses não tem interesse nisso, os chineses tem interesse sim em ter seus interesses nacionais garantidos como qualquer país do mundo. Evidentemente que uma ordem liderada pelos Estados Unidos hoje é prejudicial aos interesses chineses. Mas para os interesses chineses é mais interessante o mundo multipolar do que o mundo unipolar. Eu acho que esse é um ponto.

A questão da moeda eu já acho que é mais complicado porque ainda hoje 85% das operações financeiras internacionais são feitas em dólar. O Yuan, por exemplo, é 2,5%. Ou seja, nada. O Yuan nem é uma moeda conversível ainda. Então, às vezes a gente fica muito na vontade de que vá surgir uma nova ordem financeira internacional, mas às vezes as coisas não são assim tão fáceis. O que pode acontecer novamente é uma transição a uma superação dialética dessa ordem. E superação dialética significa manutenção e superação ao mesmo tempo. Então, já existem vamos dizer assim em meios conservadores e liberais contestações à essa ordem financeira internacional e evidente que já existem discussões de como seria essa nova engenharia financeira que seria baseada, na minha opinião, em uma cesta de commodities. Que seria referência para essa próxima moeda de referência mundial, que não vai ser o Yuan, não vai ser o Rublo, vai ser uma outra coisa.

Mas é possível sim o redesenho, não de um sistema financeiro internacional novo, mas o redesenho da forma como os países vão fazer comércio entre si, o que já é uma contestação velada à atual ordem. Por exemplo, a Arábia Saudita. Ela não vai deixar de usar o dólar como sua moeda principal de referência porque ela tem negócios de trilhões de dólares com os Estados Unidos, mas ela já está aceitando trocar petróleo com a China usando o Yuan como moeda de troca. A Índia já está aceitando fazer a mesma coisa com o rublo. Os americanos são tão tresloucados que eles conseguiram colocar o Paquistão e a Índia no mesmo campo, pela primeira vez na história. O Paquistão e a Índia estão concordando, ou seja, olha o grau de piração.

JULIANA MEDEIROS: Sim, e a Rússia meio que deu um xeque mate agora, né? Porque acabou dizendo efetivamente que só vai comercializar o petróleo russo a partir de agora com as nações digamos não amigas, se for em rublos. O que é também algo muito forte em termos de como esse mercado se organiza mundialmente.

ELIAS JABBOUR: O que se está colocando é praticamente um tiro, vamos dizer assim, não de morte mas um tiro num pilar fundamental da hegemonia de dólar no mundo que é o mercado de dólares. O mercado de petróleo, por exemplo. Então, quando você fala “olha, você quer meu petróleo, meu gás? Você vai ter que comprar com rublo”. Isso é fortalecer as posições russas em euro. Tanto que hoje o valor do Rublo, por exemplo, é o mesmo valor anterior ao das sanções. Então isso é uma jogada que, isso aí não é coisa de moleque, não é lacração, não é política de Twitter, isso aí é luta de classes no nível mundial. Um negócio de alto nível. Ou seja, [primeiro] o desafio à ordem militar e agora ainda essa de “olha, quer comprar meu petróleo, tem que usar rublo”, isso é uma humilhação que a Rússia impõe ao chamado “mundo civilizado”. E acho que isso é altamente louvável, é simplesmente – e vou sair um pouco do meu tom-, uma coisa simplesmente espetacular.

JULIANA MEDEIROS: Finalmente, Elias, a China vem nesse posicionamento diplomático reforçando a necessidade de reconhecer as exigências de garantias de segurança da Rússia. Você disse, acho que em entrevista ao Brasil 247, que Vladimir Putin já aceitou o fato de que a Rússia vai se tornar dependente do capital financeiro chinês. E isso porque o Ocidente – como você dizia – só quer oferecer à Rússia apenas a desmoralização, expandir as fronteiras da Otan, armar neonazistas na Ucrânia e outros movimentos que vem ficando cada vez mais evidentes. Mas eu queria comentar algo que me interessa muito, que é o silenciamento midiático. Há uma verdadeira onda nas mídias corporativas mas também entre analistas da academia, que por exemplo, ignoram o “genocídio” das populações de etnia russa na região de Donbass, um genocídio que já dura 8 anos. Essa infiltração de batalhões neonazistas em instituições ucranianas, não só as forças armadas. Do ponto de vista da mídia, que a gente sabe, não é de hoje que se presta a ferramenta de guerra, ela está presente em todas as últimas. Fica cada vez mais claro que há interesse em pressionar a opinião pública em razão de interesses também do capital que se move por trás das grandes corporações midiáticas? E o fato de que essa mídia não vai deixar de ter força mesmo com o que a internet se tornou?

ELIAS JABBOUR: Juliana, eu vou fazer um desabafo aqui porque não é só a mídia. Eu acho que primeiro um dos fatores dessa guerra, desse conflito são as grandes big techs, ou seja, não é somente a France Press, a AP, ou a Reuters que tão aí manipulando 98% dos algoritmos e das notícias que chegam pra nós, ou seja, as grandes big techs estão fazendo parte dessa guerra. Nós estamos diante de uma tempestade semiótica que faz você não ter opção de escolha. “Eu vou fazer uma análise dos dois lados”. Não existe isso hoje. Isso é piada. A pessoa pra ter acesso a informações sobre essa guerra minimamente confiáveis, ela vai ter que futucar na internet durante horas. E num país como o nosso, que o acesso à internet é muito limitado, você já viu, né? Eu acho que esse é um ponto, que eu chamaria de espectro da dominação total, que é o papel da mídia na formação de mentes e corações no mundo de hoje.

Eu não dou muita opinião sobre isso, porque quem entende de comunicação e semiótica é você, então prefiro mais aprender com vocês do que falar sobre isso. Mas o que existe também ao lado disso, poucas pessoas aliás, até no meio da esquerda é meio censurado falar nisso, é o papel das grandes fundações “filantrópicas” que trabalham abertamente no mundo – e no Brasil em particular, usando quadros progressistas, por exemplo, cooptando financeiramente quadros progressistas, não para [assumirem] posições liberais mas colocá-los numa condição de financiamento e de pesquisa, em que ele praticamente deixa de ser obrigado a falar mal da OTAN, dos Estados Unidos ou da política europeia. Fundação Ford, Fundação George Soros, ou seja, isso é o verdadeiro câncer, destruidor de nações pelo mundo.

Então, de um lado tem essa questão da comunicação de massa, que é o que você tá tratando e do outro é a corrupção e a cooptação aberta de intelectuais na periferia do capitalismo principalmente no campo progressista. Pra tratar de questões de aparência progressista mas com fundo reacionário e que levam inclusive a um redesenho, no final das contas, do que é ser direita e esquerda no mundo. Ou seja, hoje pra muita gente no mundo, a partir de quarenta anos de trabalho dessas fundações [e cooptação] desses desses intelectuais, hoje ser progressista é, por exemplo, eu por exemplo e você seríamos conservadores, porque nós somos apoiadores de regimes [considerados] “autoritários” como a Rússia, a China, Cuba, sabe? Recentemente, não vou nomear pessoas, uma pessoa recebeu onze milhões da União Europeia para um projeto de pesquisa. Parabéns, não tenho nada contra ela, muito pelo contrário. Mas onze milhões para fazer um projeto de pesquisa. Isso não é financiamento de pesquisa, é suborno. Entendeu? Uma pessoa dessas nunca vai se sentir à vontade pra falar contra a União Europeia, por exemplo. A Fundação George Soros circula livremente na esquerda brasileira, financiando quadros da esquerda e intelectuais da esquerda brasileira. Financiando ONGs da esquerda brasileira e movimentos sociais. E isso vai levando ao quê? A uma implosão do pensamento realmente progressista na América Latina.

Leia mais sobre a China em Jornalistas Livres AQUI, AQUI e AQUI

COMENTÁRIOS

2 respostas

  1. Esse professor é muito bom! Visão, análise, partido de pensadores libertários e pela vida humana e terrestre! Meus respeitosos agradecimentos pela aula!

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