Chile e Ngulumapu: a repressão ao povo mapuche e o plebiscito constitucional chileno

Às vésperas do plebiscito no Chile, prendem Héctor Llaitul, porta-voz da Coordinadora Arauco-Malleco, grupo autonomista mapuche
Protesto do povo Mapuche [Foto: Radio Havana Cuba/Reprodução]
Protesto do povo Mapuche [Foto: Radio Havana Cuba/Reprodução]

Após a rebelião popular que sacudiu o Chile em 2019, o então presidente Sebastián Piñera e o establishment político chileno julgaram necessário convocar uma convenção para elaborar uma nova constituição. A nova carta, que substituiria a “Constituição de Pinochet”, selaria um compromisso do governo com as demandas do estallido social que mobilizou a diferentes setores do povo chileno.

Por Nadia Poblete, Tamy Cenamo e Silvia Adoue

Grande parte da energia rebelde liberada depois que aquelas meninas pularam catracas do metrô em outubro de 2019 foi cooptada por uma série de medidas institucionais: um plebiscito sobre a realização de mudanças constitucionais e os mecanismos que poderiam ser adotados para tal fim; as eleições dos membros da convenção constitucional; as eleições presidenciais; e, por último, o plebiscito que será realizado no dia 4 de setembro, no qual se decidirá se a proposta emanada do processo constitucional será ou não aceita.

Esse cenário de neutralização do ímpeto disruptivo da mobilização popular hoje se manifesta na figura do “Apruebo”, que reúne diferentes setores da centro-esquerda chilena em uma campanha pela aprovação das mudanças constitucionais.

As formas próprias de deliberação mapuche, como as trawun (reuniões para tomar decisões), não respondem aos tempos das instituições chilenas, e a convenção foi uma iniciativa do Estado chileno, com propósitos próprios. As vagas menções à “interculturalidade”, autonomia e “Estado plurinacional” foram feitas sem sequer escutar as demandas históricas do povo mapuche: fim da usurpação territorial, da militarização e da pilhagem pelas cadeias de acumulação capitalista.

Boric e Ngulumapu, território ancestral mapuche

O governo de Gabriel Boric começou com uma série de gestos progressistas. Como resposta às demandas feministas, formou um gabinete com paridade de gênero e se dispôs a enfrentar a prisão política de centenas de jovens presos após outubro de 2019. No entanto, a paridade permaneceu na mera distribuição de cargos e as promessas de liberdade para presos políticos foi levada pelo vento. Na realidade, a única iniciativa que aborda a libertação dos presos políticos da revolta é um projeto de indulto, que até hoje tramita no Congresso.

Nada foi feito em relação aos presos políticos mapuche, nem mesmo depois que greves de fome foram realizadas – em virtude de uma delas, três lutadores mapuche se encontram com quadros de saúde alarmantes no Presídio de Angol, no sul do Chile. Muito pelo contrário: o governo de Boric renovou repetidamente o Estado de Exceção para a região da Araucanía iniciado por Piñera em outubro de 2021, o que denota uma continuidade na política repressiva dos dois governos.

Em relação às demandas mapuche, Boric não realizou nenhuma ação para reconhecer as terras recuperadas pelas comunidades, nem tomou nenhuma medida contra as cadeias extrativistas que atuam no Ngulumapu (território mapuche ocupado pelo Estado chileno desde o final do século XIX).

Escândalos de corrupção também eclodiram dentro da instituição dos Carabineros (polícia chilena), que atuam na repressão das recuperações. Sua atuação no Ngulumapu deixou um saldo de morte. Carabineros e a Polícia de Investigação Chilena (PDI) estão envolvidos em processos armados há anos, como no caso da conhecida Operação Furacão, levada a cabo durante o governo de Michelle Bachelet. A ação de 2017 foi desmascarada posteriormente, mas a operação acusou oito membros das comunidades mapuche – entre eles, Héctor Llaitul, da Coordinadora Arauco-Malleco (CAM), uma das correntes autônomas do povo mapuche.

A prisão de Hector Llaipul

Nessa semana, o werken (porta-voz) da CAM foi novamente detido. Llaitul foi enquadrado na Lei de Segurança do Estado em 26 de agosto, sob as acusações de usurpação de terras, roubo de madeira e ameaça às autoridades. O Juizado de Temuco decretou prisão preventiva durante 30 dias, enquanto dure a investigação.

O processo está marcado por irregularidades, uma vez que declarações públicas feitas por Llaitul na qualidade de porta-voz da CAM foram utilizadas como provas para sua prisão preventiva. Além disso, também grampearam telefones e interpretaram as conversas informais gravadas como indícios de que o lutador se comunicava por meio de mensagens cifradas. A única prova de participação material em sabotagens apresentada é o testemunho de um policial, que julga ter reconhecido a Llaitul em um weichafe (combatente) mascarado e vestido de preto. Por último, os advogados de defesa não tiveram acesso a todo o relatório acusatório, que vinha sendo compilado durante os últimos dois anos.

Com a prisão de Llaitul (invocando a Lei de Segurança do Estado em seu artigo 4º, incisos c e f), o que se criminaliza é a agitação política dissidente e a disseminação de ideias críticas ao governo. O inciso c) afirma que um crime contra a segurança do Estado é cometido quando sujeitos “se reúnem, organizam ou facilitam reuniões destinadas a propor a derrubada do governo constituído ou conspirar contra sua estabilidade”. O inciso f), por sua vez, afirma que serão considerados criminosos “aqueles que propaguem ou promovam, por palavra, por escrito ou por qualquer outro meio, doutrinas que tendam a destruir ou alterar violentamente a ordem social ou a forma republicana e democrática de governo”. Esta lei é aplicável apenas a pedido da autoridade governamental, e nem mesmo Piñera a havia invocado.

Ao tratar a sabotagem de empresas privadas como uma violação da Lei de Segurança do Estado, os interesses empresariais são tratados como interesses de Estado. De fato, os órgãos de segurança do Estado já atuam como segurança privada para as empresas florestais há muito tempo. Sem questionar como, durante a ditadura, essas empresas se projetaram como operadoras transnacionais, com investimentos em todo o Cone Sul do continente.

Acusações e perseguições aos autonomistas mapuches

Se é certo que a tentativa dos sucessivos governos chilenos de isolar os setores mais radicais e autônomos do povo mapuche não é uma novidade, chama a atenção que a prisão de Llaitul ocorra justamente a poucos dias da realização do plebiscito que decidirá se o novo texto constitucional será aceito pela sociedade chilena. Talvez exista a intenção de tranquilizar os setores mais moderados que temem em aprovar a nova constituição, mostrando que, apesar de se tratar de um governo “de esquerda”, não hesitará em reprimir aqueles que se posicionam e atuam fora dos marcos institucionais.

De qualquer forma, em meio aos debates pela aprovação de uma constituição que se apresenta como “plurinacional”, a prisão de Llaitul revela a ilegitimidade de uma carta elaborada em um contexto de um Estado de exceção, repressão e manutenção de prisões políticas. Enquanto isso, as ações promovidas por muitas organizações da esquerda chilena se limitam à aprovação da constituição e ao fortalecimento das instituições de Estado.

Ainda assim, as comunidades mapuche continuam a retomar suas terras ancestrais. Nelas resistem, recuperando os biomas e modos de vida degradados por sucessivas ondas coloniais. Também criam formas de autodefesa dos territórios. As organizações autonomistas sabotam as máquinas e veículos que retiram madeira para as mega plantas de beneficiamento de celulose, sem prejudicar a integridade física dos trabalhadores da empresa. A ação da Coordinadora Arauco-Malleco (CAM) insere-se nesta linha de ação política. Mesmo assim, são estigmatizados como terroristas pelo Estado e pela mídia corporativa, que tentam associar as organizações autônomas mapuche ao narcotráfico e às máfias que roubam madeira de um segmento da cadeia extractiva para vendê-la a outro.

Em resposta às acusações de associação das comunidades mapuche com esses crimes, a CAM divulgou uma nota informando que a extração de madeira de empresas florestais não pode ser entendida como roubo, pois trata-se de uma reapropriação de recursos encontrados em seu território ancestral. Além disso, são sempre realizados em conjunto com outras atividades produtivas, como plantio ou construção de espaços cerimoniais.

Segundo a organização, “a reapropriação de recursos é sempre acompanhada de uma retomada de cerimoniais tradicionais mapuches, que foram cerceados por um século pelo modelo econômico chileno. A reapropriação é sempre comunitária, colocando no centro as necessidades programáticas da nossa luta como povo e como organização. E se baseia no desenvolvimento de um tipo de economia para a autonomia, uma autonomia de autogestão”.

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