Desde o governo, no trabalho, em algumas instituições de ensino e inclusive em grupos familiares ou de amigos, nos pedem que depois de mais de 20 dias de manifestações no Chile voltemos à “normalidade”. Mas desde o momento em que acordo até a hora que vou dormir percebo que esse desejo de alguns é impossível de ser realizado. É, inclusive, violento o simples fato de ser solicitado.
Por Amanda Marton Ramaciotti, jornalista brasileira-chilena
Como posso voltar à normalidade quando o Instituto Nacional de Direitos Humanos (INDH) relata diariamente sobre a quantidade de pessoas que foram vítimas da violência policial durante as manifestações e o número só aumenta?
Até agora, sabemos que 23 pessoas perderam a vida durante a crise social. Oficialmente, cinco faleceram em mãos dos agentes do Estado e outras duas enquanto estavam detidas em delegacias. Mas também há outros casos até agora sem explicação, como o de Yoshua Osorio (17 anos), quem, segundo os documentos, morreu em um incêndio. Mas, de acordo com a autópsia do Instituto Médico Legal, o corpo possuía três orifícios na região do tórax.
O INDH também informou que 1.915 pessoas foram feridas, 1.003 delas pelo disparo de diferentes tipos de balas, sendo as principais de chumbo e de borracha.
Nesse período, o Chile quebrou um triste recorde: se transformou no país do mundo com mais pessoas com lesões por balas de borracha. 180 foram afetadas. 30% delas ficaram completamente cegas de um olho. Enquanto escrevo este texto, o jovem Gustavo Gatica (21 anos), quem perdeu a vista de um olho, está tendo o outro operado para não ficar completamente cego. Uma série de pessoas se manifestaram do lado de fora da clínica para apoiá-lo, mas foram reprimidos pela polícia.
Em paralelo, 262 pessoas iniciaram uma ação judicial contra os organismos do Estado. 171 delas por torturas e maus-tratos.
Não é possível voltar à normalidade para quem foi ferido, para quem perdeu a vista, para quem foi torturado. Para quem morreu.
E apesar de tudo isto, o Presidente do país, Sebastián Piñera, propôs na sexta-feira um projeto de lei que dá mais poder aos policiais. O mandatário reconheceu situações de excessos. Mas negou que haja uma violação aos direitos humanos.
Tampouco é possível pensar em normalidade quando caminho pelas ruas e vejo as mensagens deixadas nas paredes. “Estado assassino”; “Piñera, vai embora”; “esqueceram de nós”; “a polícia nos estupra”; “exigimos nova Constituição” (…) e alguns que despertam um sorriso “tenho mais medo da minha mãe do que de vocês” e o clássico de todos os tempos “faca amor, não faca a guerra”.
Nas ruas, de domingo a domingo, há manifestações. Algumas pacíficas, outras, violentas. Mas todas, sem exceção, terminam com esse cheiro insuportável das lacrimogêneas e de gás pimenta. Esse odor que fica impregnado no nosso cabelo, em cada um dos nossos poros. Que dá a sensação de que não poderemos voltar a respirar ou a abrir os olhos. E logo, o fogo. As barricadas. O caminhar de um lado para o outro em um labirinto sem fim entre os encapuzados e os policiais. E o metrô não está aberto. Os ônibus não passam. Isto não é normal.
De qual normalidade estão falando quando os meus colegas jornalistas denunciam que estão sendo censurados, ameaçados a não difundir as suas opiniões pessoas no Twitter ou Facebook? Como posso voltar à normalidade quando abro as redes sociais e já não sei distinguir o quê é verdadeiro do que é falso? Quando leio uma entrevista do Piñera alterando a sua própria declaração de que “estamos em guerra contra um inimigo violento” e tergiversando essa informação ao explicar que o que queria dizer é que “estamos em guerra contra a pobreza e a desigualdade”?
As poucas tentativas de regressar à normalidade se viram frustradas. Na segunda-feira, a Pontificia Universidad Católica de Chile —a mais importante do país— abriu suas portas para uma jornada de reflexão e logo o começo das aulas. Os alunos votaram imediatamente por uma greve indefinida. Durante a tarde, alunos de um dos edifícios denunciaram a repressão policial dentro da universidade. De noite, um grupo invadiu a sede da PUC e roubou objetos para formar uma barricada. No dia seguinte, a universidade fechou novamente.
E também existe outro lado. O das pessoas que temem a violência dos manifestantes. As que apóiam os protestos, mas que já não querem ver o comércio fechado, as ruas sujas, os edifícios prendendo fogo. As que demoram horas e horas para chegar a casa porque o transporte está interrompido. As que estão desesperadas para regressar ao trabalho porque senão lhes será impossível pagar as contas no fim do mês. Para elas também não é nada normal.
E atualmente eu me pergunto, a qual normalidade querem regressar o governo, o trabalho, algumas instituições de ensino e inclusive alguns grupos familiares ou de amigos? A que existia antes já não é possível. Ou é a essa normalidade de um grupo de privilegiados que não sabia —ou fingia não saber— que o Chile é um país desigual? Ou essa normalidade “linda” que os turistas percebem quando visitam Santiago porque (surpresa!) todos os atrativos turísticos da cidade estão na parte mais bela e bem cuidada da cidade?