O Chile decide hoje se sua Constituição será alterada ou não. A decisão divide o país. O plebiscito prevê o voto obrigatório. O país tem mais de 15 milhões de eleitores inscritos. Mais de 12 milhões de chilenos buscaram informações sobre suas seções de votação. Há expectativa de que pelo menos nove milhões de eleitores participarão do sufrágio.
A disputa está polarizada. Há duas campanhas nacionais que mobilizam os chilenos. A “campanha pelo apruebo” (campanha pela aprovação) que defende o novo texto constitucional e tem mobilizado líderes comunitários, artistas, pensadores. E a campanha pela rejeição “el rejection” do novo texto constitucional e, por consequência, manutenção da atual constituição herdada da ditadura militar de Pinochet há mais de 30 anos.
Campanha pela aprovação
A “Campaña del Apruebo” reuniu cerca de 500 mil pessoas num grande evento no cruzamento entre “la Alameda” e “Santa Rosa”. Natalia Valdebenito e Bombo Fica foram os mestres de cerimônia e diversos atores, intelectuais e representantes sociais participaram. Nomes como Ana Tijoux, Francisca Valenzuela y Los Vásquez, Illapu, Inti Illimani, Quilapayún, Santa Feria, Tomo como Rey, Catana y Ceaese lá estiveram. Todos foram voluntários e destacaram que não estavam sendo remunerados para lá estarem.
Gustavo Gatica, que perdeu um olho no “Estallido social” de 2019, também participou. Ele deixou o recado “Yo apruebo, por todos los ojos que perdimos” (Eu aprovo, por todos os olhos que perdemos). Muito emocionado, não conseguiu continuar falando.
Com a proposta do texto da nova Constituição em mãos, os artistas leram alguns artigos da nova Carta proposta, onde reconhece-se a paridade, a plurinacionalidade, a proteção e garantia dos direitos humanos, a igualdade ante a lei, o direito a não discriminação e outros artigos que garantem direitos sociais e deveres do estado.
Campaña del Apruebo: A Campanha pela aprovação defende a nova carta constitucional. Tem feito também campanha intensa e mobilizado milhares de pessoas nas ruas. Mas tem enfrentado muitas fakenews, especialmente contra a atuação ativa da direita chilena. Por exemplo: representantes da direita foram à TV e dizem: “aqui na nova constituição está consagrado o aborto livre, quando tiver oito meses de gravidez vai poder abortar”. E a campanha pelo aprovar corre, vai a público e explica: É, vocês sabem como chama um aborto de feto viável? Parto. Não existe aborto de feto viável”. Esse é o tipo de coisas que estava sendo dito, comenta o jornalista Victor Saavedra. Ele explica que “o nível de desinformação é bastante elevado. E, como no Chile os donos de empresas podem aportar qualquer quantidade de recursos em campanhas que quiserem. A direita tem investido forte.”
A Ex-presidenta do Chile e atual Alta Comissária das Nações Unidas para os Direitos Humanos apoia a campanha.
Esperanza en que las cosas puedan mejorar! La misma presidenta @mbachelet lo dice: “por fin las mujeres somos tomadas en cuenta en la Constitución”.?
— ApruebaxChile ?️ (@ApruebaxChile) September 1, 2022
Cuando las mujeres avanzamos, la historia avanza! #BacheletVotaApruebo, y tú? #AprueboConEsperanza ??? pic.twitter.com/bzFV5RWzoc
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Campanha pela Rejeição
O ato da “Campaña del Rechazo” teve cerca de 700 participantes. A atividade aconteceu no Parque Metropolitano no Anfiteatro Pablo Neruda. Os coordenadores da campanha definiram a manifestação como um “ato privado”. Os coordenadores da campanha estiveram presentes e falaram: Carlo Siri – dono da Antigua Fuente, Juan Carlos Gazmuri, coordenador do movimento “No Más Víctimas” (Mais vítimas não); Francisco Orrego, porta-voz do “Con Mi Plata No” (com meu dinheiro não) e Fefa Ulloa, porta-voz da organização Irreverentes. O coordenador da “Casa Ciudadana por el Rechazo” (casa cidadã pelo não), Claudio Salinas, acusou o governo municipal de Santiago por “discriminação”, por não permitir que o ato fosse realizado na rua Leteleier, preto de La Moneda. A mensagem final do evento foi apresentada por Salinas: Unidade nacional. Para ele, a partir do Rechazo há um caminho de esperança.
Campaña del Rechazo: a Campanha pela rejeição teve presença permanente em todos os meios de comunicação. Sua forma de comunicar foi bastante parecida com o modo como alguns canais da direita brasileira, por exemplo Brasil Alternativo, trazem suas notícias, em especial no que se trata de dar explicações ou definir a linha que separa ficção e realidade.
Alguns pontos sobre o novo texto constitucional proposto
Tema | Constituição 1980 | Nova Constituição |
Estado Regional | Não se estabelecem mecanismos de descentralização, fazendo com que o Chile seja um estado centralizado | O Chile será um estado Regional, conformado por entidades territoriais, com autonomia política, administrativa e financeira, preservando a integridade do Estado e reconhecendo que forma um único Estado indivisível |
Animais | Nada diz. Nem os animais não – nem sua proteção – fazem parte da constituição vigente | Os animais serão sujeitos de proteção especial. O Estado deve protege-los, reconhecendo seu sentimento e seu direito de viver uma vida livre de abusos, promoverá uma educação baseada na empatia e respeito por eles |
Educação | Artigo 19,n º 15 Menciona como liberdade de ensino como o direito de abrir estabelecimentos de educação | Artigo 41 a liberdade de educação deve ser garantida e o Estado tem o dever de respeitá-la. Deve incluir a liberdade das mães, pais e tutores de escolher o tipo de educação para as pessoas a seu cuidado, respeitando os melhores interesses e a autonomia progressiva das crianças e adolescentes. |
Saúde | Artigo 19, nº 9 Não se consagra o direito à saúde, apenas o seu acesso. Permite o serviço de saúde com provedores privados, sem a devida orientação e fiscalização do Estado | Artigo 44 Consagra a saúde como direito e inclui sua dimensão física e mental. O Estado regulará, supervisionará e fiscalizará as instituições públicas e privadas para assegurar uma saúde de qualidade |
Água | Artigo 19 nº 24 A água está privatizada Os particulares têm propriedade sobre ela | Artigo 134 A água é indispensável para a vida, por isso não será propriedade de ninguém em particular. Todos e todas poderemos usa-lá de maneira democrática, participativa e equitativa |
Crise Climática | Nada Diz | Será a primeira constituição do mundo que reconhece a Crise Climática e Ecológica. Atribuirá ao Estado tomar medidas para prevenir, adaptar e mitigar os danos causados por ela |
Reparação ambiental | A atual Constituição nada diz | Artigo 128 Quem realize danos ao meio ambiente deverá ter que repará-lo, sem prejuízo das sanções administrativas, penais e civis que correspondam e estejam estabelecidas em lei |
Participação ambiental | Nada Diz | Artigo 154 Todas as pessoas tem direito a participação informada em matérias ambientais e acesso a informação ambiental do Estado. Os particulares deverão entregar a informação ambiental relacionada a sua atividade. |
Pessoas Idosas | Na constituição atual, as pessoas idosas não são consideradas, nem citadas. | Terão direito de envelhecer com dignidade, obter aposentadoria suficiente para uma vida digna, livre de maus tratos por motivos de idade; a autonomia e independência e ao pleno exercício de sua capacidade jurídica. |
Aposentadorias | Artigo 19,nº 18 não garante o direito à previdência social benefícios podem ser fornecidos por instituições públicas ou privadas, tais como as AFPs (Administradoras de Fundo de Pensão). | Artigo 45 a todas as pessoas será garantido o direito à seguridade social. A lei estabelecerá um sistema público de seguridade social para proporcionar proteção em caso de doença, velhice e outras contingências sociais. Ela garantirá a cobertura dos benefícios para aqueles que realizam trabalhos domésticos e de cuidado. |
Habitação | A constituição atual não menciona nenhuma vez a palavra habitação. Existe especulação imobiliária que possibilita o aumento dos preços da terra e empobrece as habitações | Artigos 51 e 78 Toda pessoa tem direito a habitação digna e adequada. O Estado assegurará a disponibilidade de terra para garantir esse direito e impedir a especulação. Seguirá existindo propriedade sobre as habitações e esta continuará sendo hereditária |
Trabalho Doméstico e de assistência | Nada diz Não reconhece as trabalhadoras domésticas nem o trabalho de assistência | Artigo 49 e 50 O Estado reconhecerá que os trabalhados domésticos e de assistência são trabalhos socialmente necessários, contribuem com a economia e são indispensáveis para manter a vida. Isto permitirá que se reconheçam os direitos trabalhistas às trabalhadoras que o exercem. Se garantirá mediante um Sistema Integral de Assistência |
Crianças e adolescentes | Não estão consagrados os direitos das crianças e adolescentes na constituição vigente | Artigo 26 Se consagram os direitos das crianças e adolescentes. Terão direito a serem escutados, protegidos contra toda forma de violência, a viver em condições familiares e ambientais que lhes permitam o pleno e harmonioso desenvolvimento de sua personalidade |
Empreender | Artigo 19,nº 18 Ela estabelece o direito de exercer qualquer atividade econômica que não seja contrária à moralidade, à ordem pública ou à segurança nacional | Artigo 80 todas as pessoas devem ser livres para se envolverem e desenvolverem atividades econômicas. Seu exercício deve ser compatível com os direitos consagrados na presente Constituição e com a proteção da natureza. |
Anticonluio | Nada diz a respeito do conluio de empresas nem seu impacto na sociedade | Artigo 182 O conluio e as concentrações empresariais que afetem o funcionamento justo e leal dos mercados serão contrários ao interesse social. Mandará a lei o estabelecimento de sanções aos responsáveis |
Ruralismo | Não se diz nada sobre ruralismo | Artigo 241 Se reconhecerá o ruralismo e suas formas de vida em relação direta com as pessoas, a terra, água e o mar. Se promoverá o desenvolvimento integral dos territórios rurais e para a criação de políticas públicas, se considerará as comunidades para o seu desenho e realização |
Inelegibilidade para cargos públicos | Pessoas condenadas por corrupção podem ser autoridades. | Artigo 172 Não poderão optar por cargos públicos, nem de eleição popular as pessoas condenadas por delitos lesa humanidade, delitos sexuais e de violência intrafamiliar, delitos vinculados a corrupção e os demais que estabeleça a lei |
Defensoria do povo | Não se considera órgãos que protejam e promovam os direitos humanos das pessoas | Artigos 123 e 124 Se criará a Defensoria do Povo que protegerá e promoverá os direitos humanos. Fiscalizará que os órgãos do Estado cumpram com suas obrigações nesta matéria e formulará recomendações de acordo com sua competência |
A Universidade do Chile fez um hotsite comparando as duas constituições.
https://www.uchile.cl/noticias/189645/claves-constituyentes-que-dicen-las-normas
Entenda o que aconteceu
O processo da Constituinte Chilena foi uma resposta alinhada entre o parlamento e o então presidente chileno ao movimento que ocupou as ruas do país em 2019, conhecido como “estalido democrático”. A ação, denominada “Acordo pela Paz Social e Nova Constituição”, foi resultado de cerca de 30 horas de reuniões entre parlamentares de diversos partidos políticos e resultou num documento com 12 pontos-chave. A questão principal era a garantia da realização de um novo processo constituinte no país, por meio de plebiscitos.
Estallido Social: Foi o nome dado as massivas manifestações populares realizadas, inicialmente, contra o aumento da tarifa do sistema de transporte público. Começaram em Santiago e se espalharam por todas as grandes cidades do país. Aconteceram entre outubro de 2019 até março de 2020. Milhares pessoas foram presas, Mais de 300 olhos foram perdidos por violência policial. O então presidente Sebastián Piñera anunciou uma série de medidas para chamadas de “nova agenda social” e apoiou a articulação no parlamento da chamada por uma nova constituinte. Piñera declarou que havia “guerra a seu povo”. Atualmente Sebastian Piñera está denunciado na corte Interamericana de Direitos Humanos por violação de direitos humanos de perda de olhos.
Em dezembro de 2019, o então presidente Sebastián Piñera publicou decreto que convocou um plebiscito constitucional. A votação foi adiada devido a pandemia da Covid 19, e só aconteceu em 25 de outubro de 2020. O voto no Chile não é obrigatório, mesmo assim, 50.9% da população compareceu às urnas. 78% dos votantes optaram pela Assembleia Constituinte.
Em 2021, nos dias 15 e 16 de maio de 2021, houve nova votação para escolher os membros da Assembleia Constituinte. Candidatos da esquerda e independentes somaram um pouco mais de 2/3 dos constituintes eleitos. A direita sofreu um baque e não conseguiu quórum de 1/3 necessário para aprovação de suas ideias.
A força dos candidatos independentes (constituintes não filiados a partidos, que são lideranças comunitárias e pessoas que ganharam projeção com os protestos de 2019) ficou demonstrada.
“No caso do Chile, representantes saíram das ruas, eram apolíticos, de lista, de pessoas que não faziam parte da política tradicional. Eles eram dirigentes sociais, sindicais. E eles começaram a construir uma constituinte que foi paritária. As mulheres tiveram 50% das cadeiras. Desde o início sabia-se disso. Contou com cotas para os povos”, comenta Victor Saavedra – dirigente do Colégio de Periodistas Chileno – equivalente ao Sindicato de Jornalistas no Brasil.
Eleitos os 155 constituintes, os trabalhos iniciaram. O texto foi concluído e apresentado ao atual presidente chileno Gabriel Boric em 4 de julho de 2022. Desde o início dos trabalhos a disputa entre as visões de estado se apresentou. Ao final, duas campanhas pela aprovação e pela rejeição do texto constituinte foram para as ruas.
Os trabalhos da Assembleia Constituinte
A assembleia constituinte foi constituída com paridade de gênero. Foram 154 membros eleitos. Povos indígenas tiveram seus lugares reservados. Sua composição teve como maioria membros identificados como com ideias de esquerda. O resultado foi um texto onde muitos dos direitos sociais reivindicados pelos Chilenos foi apresentado. Ele é, também, uma resposta aos protestos de 2019. Na proposta, buscou-se responder com menos desigualdade, maior acesso à saúde, aposentadoria mais justa, entre outras questões. Mas o povo chileno parece que não está satisfeito.
Opinião pública
No início dos trabalhos do processo constituinte, em 25 de outubro de 2020, 79% dos eleitores chilenos queria uma nova Carta Magna e 78% queriam que ela fosse elaborada por assembleia constituinte. No final de agosto, antes do “silencio eleitoral”, pesquisas diziam que a proposta será rejeitada. O “rechaço” – termo usado na cédula que será entregue aos eleitores estava em 45,8% segundo a pesquisa Pulso Ciudadano. Já 15,7% dos entrevistados ainda estavam indecisos.
Resultado Plebiscito em 25 de outubro de 2020
Resultado Pesquisa sobre votação plebiscito sobre o novo texto constituicional em 4.setembro.2022
Posição do atual presidente do Chile, Gabriel Boric
O atual presidente, então, deputado Boric foi o único parlamentar de esquerda que votou com a direita para criar o processo constituinte. Ele foi muito criticado por isso. A pauta era plebiscito para fazer uma constituição nova, depois eleger os constituintes. A esquerda queria o impeachment. Não queria um processo de constituinte aqueles que estavam no poder. A pressão era forte.
Na sequência Boric tornou-se candidato à presidente. Na eleição, em segundo turno, estava perdendo, mas virou e foi eleito presidente. Seu programa de governo propôs a refundação da política. Contudo até o momento apenas conseguiu implementar a redução de alguns critérios excluintes dão acesso à política, como por exemplo, a proibição de que pessoas com tatuagem possam se candidatar a cargos públicos.
Boric apoia o novo texto constituicional.
O que acontece após o plebiscito de hoje?
Aprovado
Sendo aprovada a nova constituição o Governo terá dois anos para aprovar um projeto de lei que regularizará as mudanças propostas. O processo pós-plebicito foi desenhado para ser lento, para mitigar os conflitos sociais. Hoje o Chile está polarizado. A prioridade é que a água, educação e saúde.
Por exemplo: a água, hoje privatizada, se torna “direito universal de todas e todos os chilenos”. Para que isso aconteça o Estado deverá zelar pelo “uso razoável das águas” e as outorgas de uso da água passaram a ser concedidas com base na disponibilidade desse recurso essencial à vida. Dados apontam que hoje, no Chile, 1% dos de1% dos detentores do direito à exploração de água destinada à agricultura e à mineração concentram aproximadamente 80% de todos os direitos de uso.
Não Aprovado
Não aprovado, tudo continua como está.
E como seguirá?
Processo aberto, seja qual for o resultado da consulta de hoje, 4 de setembro, sabe-se que o processo não termina aqui.
Há dois acordos políticos: Se se o texto for aprovado, há o compromisso dos partidos que apoiam Boric a ajustar alguns pontos polêmicos da nova Constituição. Se não for aprovado, partidos de oposição se comprometeram a realizar reformas no atual texto constitucional.
A ver…