Chegou a hora de pagar a promessa

Indicação de mulher negra para o STF pode ser uma oportunidade de avançar em uma agenda antirracista
O presidente Luiz Inácio Lula da Silva durante cerimônia de posse, no Palácio do Planalto. Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil

Por Rachel Quintiliano*

Na cerimônia de posse do atual presidente da República presenciamos uma cena inédita: uma comitiva com pessoas brasileiras e diversas subiu a rampa com o presidente eleito e uma mulher negra lhe passou a faixa, como se o país todo estivesse empossando o novo presidente. 

Talvez, o que Lula não saiba é que essa cena soou para muitos como uma esperança de novos tempos e uma promessa por fazer muito mais quanto a diversidade, inclusão, equidade e enfrentamento à discriminação e ao racismo. 

Posto isso, ler o jornal nesta manhã e tomar ciência de que no dia anterior o presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, disse que o nome que ele indicará ao STF não será definido por gênero ou raça e, sim, por capacidade de “atender os interesses e expectativas do Brasil”, me fez desesperançar e escrever esse texto, cobrando um posicionamento diferente do presidente. 

Obviamente que raça ou gênero, ou qualquer outra identidade não deveria sobrepor aos interesses e expectativas do país. Contudo, no Brasil, sendo um país racista, misógino, LGBTfóbico, entre tantas outras mazelas, essas identidades e, especialmente, o compromisso de pessoas que carregam essas identidades com os direitos humanos e a equidade, não deveriam ser descartadas na escolha de uma pessoa para assumir uma vaga no Superior Tribunal Federal (STF). Em outras palavras, uma mulher negra, consciente desse lugar e contexto, sim, deveria ser considerada. 

Se não houvesse machismo, racismo ou discriminação, a fala do presidente faria sentido. Entretanto, não é o caso e ainda pesa sobre nossa sociedade que a branquitude não é transparente, como já disse a ativista e intelectual negra Cida Bento, em muitas ocasiões. 

O fato de os lugares de mais alto poder nesse país serem ocupados quase exclusivamente por pessoas não-negras e não-indígenas, por exemplo, diz muita coisa, entre elas que existe uma reserva de vaga vitalícia para pessoas brancas, especialmente se também do gênero masculino. 

Cabe destacar que o último estudo publicado sobre raça e cor no judiciário, pelo Conselho Nacional de Justiça, registra que entre magistrados/as, 83,9% são brancos. Entre servidores/as pessoas brancas representam 68,3% e até entre estagiários/as, são maioria, 56,9%.

Por outro lado, não faltam bons nomes de mulheres negras para compor a Corte. Entre as indicações do movimento social negro estão, Adriana Cruz, que é doutora, professora e juíza em uma vara federal criminal no Rio de Janeiro; Lívia Sant’Anna Vaz, também doutora e promotora de Justiça no Estado da Bahia, e Soraia Mendes, que é doutora e atua como advogada em Porto Alegre, entre outros nomes com currículos significativos. Não enxergar isso vai contra a mensagem da cerimônia de posse.

Neste momento, Lula tem a oportunidade singular de fazer a diferença e cumprir a promessa, implícita, disseminada na cerimônia de sua posse. 

Crédito da foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil

(*) Rachel Quintiliano é jornalista, defensora dos direitos humanos, promotora da equidade de gênero e raça e é membro do Núcleo Negro do Jornalistas Livres. Co-organizou recentemente, o livro, Caminhos possíveis para equidade racial”.

Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Jornalistas Livres

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