Eu queria que você tivesse razão

Bem-vindos e bem-vindas ao “Café com muriçoca” - espaço de compartilhamento literário dos Jornalistas Livres. O texto de hoje é uma carta ao senhor presidente, “Eu queria que você tivesse razão”.
Caro senhor presidente

“Ouçam todos! foi executado o nosso presidente/ Aqui agora, vamos escutar Gabriel, o Pensador/ Principal suspeito do crime” Hoje eu tô feliz – Gabriel o Pensador

“Presidente, seu bosta, eu não quero saber se você gosta/ (…) Filhos da rua/ presidente a culpa é sua” ” Ndee Naldinho – Filhos das Ruas

Caro senhor presidente,

Como cidadã brasileira, venho pensando em certas coisas e achei que poderiam ser do seu interesse, já que finalmente alguém de esquerda vai concordar com você e, por esta razão, lhe escrevo. Antes de mais nada, peço que perdoe a instabilidade do tratamento, pois, agora que encontrei um ponto em comum entre nós, me sinto próxima e fico tentada a lhe chamar de “você”. Tudo bem?

Tenho matutado aqui como os últimos anos foram apocalípticos, concorda?? Ói: muitíssimo antes de 2013 a maldade já vinha se insinuando. 

Quando eu falo em maldade, por favor, não me entenda mal… É só que um deus bom, bom mesmo, penso eu, ia entender nossa limitação e se compadecer da nossa humanidade, em vez de ficar mandando pragas e falsos messias  pra nos atazanar. 

Nã! Isso aí não é de Deus não. 

Minhas amigas e amigos têm reparado, presidente, que vira e mexe eu volto aos mesmos assuntos, você reparou? Mas, também… como pode?… Eu tô lá, levando minha vidinha normal, até que do nada, quando menos a gente espera, alguém tasca a pergunta fatal sobre a defesa de direitos humanos: “e se fosse com você?!”; e se um “meliante fortemente armado invadisse sua casa, estuprasse sua mulher e suas filhas, você não ia querer a morte dele?”…

Senhor presidente, você sabe, porque essa resposta já lhe dei…e sabe que tou longe de ser  Madre Teresa. O caso é que eu tenho uma estratégia (outra receita do meu amigo) e daí eu tento, mesmo quando a desgraça é comigo, tento olhar as coisas lá da lua. E aí, presidente, quando a gente olha com distância o suficiente, não existe essa coisa de “e se fosse com você?”.

Não sei se tô mais te confundindo, porque essa carta aqui tá bagunçada, eu admito. Mas veja… quando meu irmãozinho mais novo morreu, uma parte de mim foi enterrada com ele e outras seguiram em frente através do meu corpo, da minha escrita, da minha humanidade.

E quando todos aqueles meninos morreram – e as meninas foram violadas -, naquela guerra que Tatiana Moura chamou de “novíssimas”, outras partes de mim foram junto para as valas comuns, para as bocas e pernas fechadas, em nome da preservação da família tradicional brasileira.

Logo, mesmo quando coisas muito ruins me acontecem, eu não tento partir pra vingança.

Agora… por outro lado… daquela vez que você levou a tal da facada, lembra?… Cê acha o quê? Que eu não torci pra você morrer? Eu torci sim, porque, como disse, não tenho nada de santa. Só que, depois, presidente, quando botei minha rede na lua e te olhei,  senti por você mais pena do que raiva. Eu te vi lá, todo marionete, feito o boneco “Chuck” no filme dois – que se dizia “anatomicamente correto”,  tinha pênis, mas nunca teve um coração – e senti foi pena de você.

Eu te olho assim, com essa pompa toda facistinha, e consigo ver as cordas. Elas são tão bem manipuladas pelas elites que nosso ódio fica direcionado só a você  – o “bode” perfeito. As forças que te dominam, elas sacrificam milhões de vidas humanas todo dia, em troca de lucro. Elas transformam o Estado em edifício tosco e macabro. 

Só que, é sempre bom lembrar, não acha? por trás de todo filme tem roteiristas, atores, atrizes, a senhora ou o senhor diretor. Assim como, por trás dos governos tem a elite dirigindo ataques terroristas contra as populações. Acontece que, nas minhas histórias, as heroínas contracenam carregando na caixa do peito umas bombas-relógios. Quando der o tempo, roteirista, expectador ou contra-regras,  vai todo mundo pro buraco.

Mas enquanto a revolução não queima, caríssimo senhor presidente, eu prefiro que você tenha razão.

Sério mesmo. Pode pá:

Eu queria que a terra fosse plana, pros gato jogar tudo pelas beiras, como diz o meme.

Queria que ninguém precisasse de vacina – que bastasse se expor aos Sars-CoV-2 para que a gente ficasse automaticamente imune e não morresse. Queria que a culpa da pobreza fosse a preguiça do povo pobre, que a cloroquina e a boa fé curassem de tudo no mundo.

Queria… tô pensando aqui pra escrever…queria que as prisões fossem perpétuas, com bastante sofrimento mesmo, sabe? que a dureza do castigo acabasse de vez com os crimes e que os hediondos sempre fossem punidos com morte. 

Mas só quero tudo isso se você estiver certo – porque, segundo suas teorias, senhor presidente,  isso resolveria tudo. E, afinal, resolver não é o que queremos?

Então! Se você tiver razão, quer dizer que os problemas do nosso mundo apocalíptico podem ser solucionados de maneira até simples. E também… essa não dá pra deixar de falar…  se bandido bom for mesmo bandido morto, posso ficar com a consciência tranquila por desejar muito profundamente, às vezes, que você descanse em paz.


Dinha (Maria Nilda de Carvalho Mota) é poeta, militante contra o racismo, editora independente e Pós Doutora em Literatura. É autora dos livros "De passagem mas não a passeio" (2006) e Maria do Povo (2019), entre outros.
Nas redes: @dinhamarianilda

LEIA TAMBÉM algumas das crônicas anteriores:
Eu pensei que os livros nem existiam mais
A cabeça sagrada de Zumbi

Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Jornalistas Livres

COMENTÁRIOS

2 respostas

  1. Dentre as citacoes de Ndee Nqldinho e Gabriel o Pensador, lembrei de Comando DMC – Tributo ao Presidente, mas, nao faria sentido, uma vez que eu só concordaria com o “entao se foda presidente” pois ele bao enganou ninguem, nunca teve propostas.

    A melhor parte “daquela vez que você levou a tal da facada, lembra?… Cê acha o quê? Que eu não torci pra você morrer? Eu torci sim, porque, como disse, não tenho nada de santa”. ???

    1. Eu ouvi Comando DMC antes de escolher. E não escolhi por isso mesmo. Bolsonaro não enganou ninguém. Tá fazendo o que prometeu. O RAP é um baú de preciosidades. <3. Salve Pânico Brutal.

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