Capitólio: não foi “acidente”

Álvaro Nascimento, jornalista e escritor

Anos atrás fui ao sul da França, numa viagem curta com meu filho e minha nora. Depois de assistirmos a um festival de jazz em Carcassone, viajamos a Nimes e de lá decidimos passar um dia ensolarado em Cassis, no litoral, onde um dos baratos é pegar um barco (há dezenas deles) para visitar os famosos calanques, espécies de cânions, que na verdade são grandes penhascos que se abrem em enormes grutas banhadas por um de mar cristalino de um azul impressionante. Os calanques são uma verdadeira obra de arte da natureza (foto anexa).

Calanque no sul da França

Era um dia de sol forte, céu azul, praia cheia e logo que chegamos fomos atrás de um barco que nos levasse aos calanques. No cais, a decepção. Nenhum barco poderia sair naquele dia. Estranhamos, claro, pois a cidade estava cheia de turistas, estrangeiros e franceses de férias, o dia estava lindo, céu azul, sem nuvens, o mar calmo com ondinhas de no máximo um metro na arrebentação. Mas os barcos não iam sair “à cause du vent” (por causa do vento). Nós três nos entreolhamos, rindo, nos perguntando: “Vento? Que vento?”. Realmente era uma brisa de média pressão, apenas, que para nós não justificaria a proibição. Mas nos explicaram que se houvesse uma rápida elevação do vento, ela poderia jogar um barco contra as rochas, causando um acidente mais sério. Então, ninguém poderia se aproximar dos calanques naquele dia. Batemos os ombros, conformados, e fomos para a praia, passeamos pela cidade e no final do dia retornamos a Nimes.

Por que conto esta história? O Instituto de Meteorologia está há dias informando que haveria a incidência de fortes chuvas em Minas Gerais, citando inclusive a região de Capitólio. Os alertas meteorológicos não foram poucos.

Depois do que ocorreu neste final da manhã, resultando em dez mortos (até agora), e cerca de 30 feridos, além das perdas materiais e econômicas momentâneas e futuras, o porta-voz do Corpo de Bombeiros de Minas Gerais, o tenente Pedro Aihara, declarou que o “acidente” ocorreu por causa de uma “cabeça d’água”:

– É um local que tem um tipo de rocha mais suscetível a processos erosivos e de intempéries. Como a gente tem chuvas muito intensas neste mês, aparentemente teve uma aceleração considerável desse processo erosivo, que acabou gerando o desprendimento dessa rocha, explicou.

Já a Marinha do Brasil informou que um inquérito será aberto para investigar “as causas do acidente”. Aposto um mês de meu salário como a Marinha concluirá que a culpa é da natureza.

Postagem que Flávio Freitas teria feito em 2012 circulou nas redes sociais, mas sua autenticidade não está confirmada

Resumindo:

1. O Instituto de Meteorologia informa há dias a incidência de chuvas fortes e acima do normal na região. Isto foi reafirmado ontem, véspera do que, segundo os bombeiros, foi um “acidente”;

2. Sabidamente, aquele ponto do Lago de Furnas recebe a vazão de vários rios, que ali se transformam em cachoeiras;

3. Com chuvas fortes como as previstas há dias, a possibilidade da ocorrência de “cabeças d´água” cresce enormemente;

4. O local exato (cânions tipo calanques) onde estavam estacionados os barcos mineiros, segundo os próprios bombeiros “tem um tipo de rocha mais suscetível a processos erosivos e de intempéries”, propensos em momentos de chuvas mais fortes a uma aceleração considerável de um “processo erosivo”.

Assim que vi os barcos de Minas Gerais sendo apanhados pelo rochedo que se desprendeu, me veio à mente aquele dia de sol, céu azul, uma leve brisa em Cassis e a proibição de saída dos barcos, devido apenas à possibilidade dos ventos virem a aumentar.

A pergunta é: dá para chamar de “acidente” o que ocorreu hoje em Capitólio?

Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Jornalistas Livres

COMENTÁRIOS

27 respostas

  1. Não, não dá. Muito descaso, negligencia e a prioridade de ganhos $ antes da prevenção de acidentes e valorização de vidas.

  2. Primeiramente gostaria de parabenizar a quem redigiu este ilustríssimo comentário, totalmente coerente e lúcido nas suas convicções, pois para mim isto se trata de uma grande erosão, mais o ocorrido poderia e deveria ter sido evitado se as autoridades competente tivessem se atentado ao mal tempo, pois infelizmente estamos no Brasil, aqui manda quem pode e obedece quem não tem juízo, sinto imensamente pelas vidas ceifadas e me solidarizo com os familiares enlutados, que Deus abençoe e ilumine vossos corações.

  3. A diferença é que o Governo Francês tem preocupação com a vida humana e por isso criou um protocolo de segurança para a exploração do turismo nos calanques. Por aqui, nos anos 60 foi criado o Mar de Minas e desde então, (estamos falando de 60 anos aproximadamente) nenhum tipo de protocolo de fiscalização foi criado, tanto no que se refere ao entorno como tbm à própria lagoa. E aí as autoridades em seus diversos níveis, vem a público, tentar nos convencer que foi apenas um acidente nunca acontecido e outras desculpas como estas que num Brasil regido pela IMPUNIDADE, acabará sem responsabilizar ninguém.

  4. Eu não considero como acidente e sim uma irresponsabilidade dos responsáveis pelo turismo na região devido a chuvas constantes na região. Claro que vão responsabilizar a natureza.
    Infelizmente perdemos vidas humanas por uma situação que já dava sinais do acontecido. Espero que autoridades responsáveis tomem atitudes cabíveis quanto ao fato. Infelizmente hoje em dia tudo gira em torno de capitalismo,vidas perderam totalmente o devido valor.
    Não considero como acidente da natureza e sim acidente com aviso prévio.
    Estou consternada com a situação situação e me coloco no lugar das pessoas que perderam seus entes queridos e também pelo abalo emocional dos demais.

  5. Não. Todo mundo preocupado só em ganhar dinheiro, a segurança que se dane.

  6. Temos que colocar a vida humana em consideração, por que, em quanto for colocado os ganhos,,,,, sempre haverá acidentes

  7. Respondendo a pergunta podemos afirmar que NÃO. Apesar das lamentáveis perdas, não foi falta de avisos do Instituto de meteorologia. Fica aí o alerta a outros turistas de lá ou outras regiões. Muito triste.

  8. Acho que dá pra chamar de “revolta da natureza após anos de degradação”…

  9. Olha o mau tempo.e essas embarcacoes muito perto das rochas faltou muita nocao

  10. Claro que não foi acidente. Quase tudo é improvisado aqui.

  11. Mas foram avisados e pq são teimosos não deram bola pra o rapaz que avisou pra sai de lá

  12. Não chamo de acidente, e sim de tragédia anunciada que poderei sem evitada…mesmo porque em uma das lanchas ? as passageiros gritavam desesperados para que o piloto da lancha saísse dali e ninguém atendeu!

  13. Passeio para Abrolhos BA quase foi cancelado em jul/19 mas a previsão do tempo mudou e se realizou. Senão devolveriam o $. Atitude responsável, me senti protegida.

  14. Infelizmente o Brasil é o país das tragédias anunciadas. Barragens de rejeitos em Mariana e Brumadinho MG, barco Bateau Mouche RJ, boate Kiss RS, acidente da Gol com jatinho Learjet em MT,enfim, e, tudo fica por conta do descaso nas fiscalizações mais rigorosas de quem de direito, e o mais grave disso tudo é a IMPUNIDADE dos causadores ou responsáveis.

  15. Belo texto. No Brasil todos saem impunes e a ganância reina!!! A culpa é da natureza. Triste fim .

  16. É lamentável o fato ocorrido porém,a rocha deu sinais antes do fato acontecer bem como visitantes próximos estavam alertando para o perigo! Acabou acontecendo! A natureza é imprevisível!

  17. Concordo plenamente com você!

    Na realidade, houve negligência e imprudência por várias partes.

    Tragédias como essa acontecem, pois às pessoas ainda exercem o livre arbítrio de arriscarem as suas vidas sem necessidade.

    Eu amo fazer trilha em cachoeiras, já estive em Capitólio 3x, amo Capitólio. Mas visitar esse tipo de local em período de chuva é o mesmo que fazer roleta russa… eu jamais vou a qualquer cachoeira em período de chuva, não é de hoje que pessoas morrem por tromba d’água há kms de distância que acabam “estourando” nas cachoeiras…

    Capitólio poderia estar com um céu de “brigadeiro”, mas a redondeza está nos telejornais há semanas devido às enchentes.. há menos de 2h de distância…

    A prudência e o bom senso ainda são aliados poderosos em época de pandemia e em período de chuva.
    Deixar de fazer turismo nessas regiões que não são apropriadas em períodos de chuva, pode salvar a própria vida e dos entes queridos.

    O livre arbítrio é de cada um, mas as pessoas deveriam pensar antes de tomar as suas atitudes, após a tragédia anunciada, não adianta ficar culpando terceiros. Vidas ceifadas e tempo não voltam… por isso vale muito o bom senso.

  18. Concordo. Não foi acidente. Foi negligência: da marinha que não monitora os corpos de água; das empresas que oferecem os barcos sequer conhecendo a dinâmica desses corpos de água bem com os riscos decorrentes. Só existe um tipo de inocente, o passageiro.

  19. Turismo desenfreado neste local. Eu estive lá em 2018, alugamos uma lancha com capacidade para 10 pessoas, haviam 15. Realmente não existe fiscalização, muito menos segurança. Muitas embarcações, águas sujas de óleo, pessoas arriscam a vida subindo em cachoeiras, penhascos… lugar lindíssimo porém sem controle.

  20. Sería ótimo se tivéssemos políticos interessados em governar com seriedade nosso País, mas issi não acontece e não acontecerá tão cedo (se é que um dia acontecerá…). Independente disso, pensemos: – não somos débeis, não somos crianças, devemos ser responsáveis pelos nossos atos, certo? Cadê a redponsabilidade dos barqueiros e dos próprios turistas?

  21. Excelente comentário !
    Carl Jung falava que o homem é o inimigo do homem. Os incautos ignorantes foram prevenidos e não se preveniram…

  22. Só nao consigo ver a correlação de um caso com o outro!

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