“Ela come comigo no mesmo prato, bebe água e me deixa seu sobejo. Caminha nos meus sapatos, se pendura nos meus brincos e, não satisfeita, se faz cobertor de silêncio, quente e pesado, nas noites quentes e nas mal-amadas”
Essa semana eu me encontrei com estudantes da EMEF ARQUITETO VILANOVA ARTIGAS.
Quem me convidou foi a professora Rosemeire. A Rose foi uma das alunas mais engajadas, no curso sobre literatura periférica que organizamos no ano passado: o grupo Escritas do Corpo Feminino, da UFRJ, e nós aqui da Me Parió. É que tem umas professoras, liga?, que são estudantes exemplares: respeitosas, carinhosas, inquietas e empolgantes. Elas levam para as suas salas de aula o seu amor à vida, às pessoas e, no caso dela, à literatura. A Pro Rose é dessas.
Mas eu chamei ceis aqui pra desabafar sobre uma coisa que há muito tempo me persegue, e ela é o oposto exato da pro Rosemeire. Ela é a Méri.
Eu eu não sei com vocês, mas comigo a Méri é tipo um fantasma, daqueles bem onipresentes. Ela me persegue dia e noite, e frequenta meus piores pesadelos.
Ela come comigo no mesmo prato, bebe água e me deixa seu sobejo. Caminha nos meus sapatos, se pendura nos meus brincos e, não satisfeita, se faz cobertor de silêncio, quente e pesado, nas noites quentes e nas mal-amadas.
A Méri me vigia, me dá dor de cabeça, mata minhas mudas de planta e tenta pautar minhas reuniões.
Ela se diz minha namorada e desfila do meu lado pra ver se cola com as desavisadas.
Eu digo, Méri, vai embora… Eu já tenho namorada e ela é muito ciumenta.
Tento ser delicada, mas ela mete o louco… desculpa a expressão politicamente incorreta… não sei como dizer isso sem externar meus preconceitos (sugestões? ), mas a bicha sabe como não se comportar.
Daí lá tava eu na escola. Com professoras atentas e meninas emocionadas, porque leram meus poemas, gostaram e – o melhor – elas viram que eu existo, sou de carne e osso e também já fui menina, como elas. Eu via seus olhos sorrindo, suas vozes trêmulas, emocionadas, e daí eu só pensava “eu não mereço tudo isso “.
Mesmo assim, fiz o que pude, pra mostrar pras meninas que eles e elas também podiam crescer, serem artistas, engenheiras, professoras zelosas, astronautas, astrofisicas.
Resultado? Hoje foi a primeira vez que eu me permiti servir de exemplo.
A Méri até pulou de alegria. A bicha gritava: finalmente! Finalmente!
Eu disse a ela, Méri… não se empolga… eu ainda sou a mesma. É só pro meu povo que eu me permito ser a faca que abre a trilha, o farol guiando o longe, a luz, no final do tiroteio.
Eu precisei, Méri, dizer pra molecada que os caminhos são árduos, mas possíveis. E que cada uma de nós que avança, tem o dever de carregar consigo todas as outras. Não é assim? Um passo dado por uma mulher negra, não abre espaço para outras?
Daí ela fez o maior carão, fez beicinho e cruzou os braços.
Eu nem aí… só continuei.
Eu disse, Méri, ce é muito bolsominion. Nem amizade nem namoro. Entre nós, cabe somente a distância.
Sou irmã do meu povo e você é que nem Jack. Vai por partes, mas detona com a vida da gente.
Daí ela ficou brava de vez e vazou. Mas, pode crer: amanhã ela tenta de novo.
Esse café até que tá docinho, né não?
Dinha (Maria Nilda de Carvalho Mota) é poeta, militante contra o racismo, editora independente e Pós Doutora em Literatura. É autora dos livros "De passagem mas não a passeio" (2006) e Maria do Povo (2019), entre outros.
3 respostas
Ô, delícia de texto!
A Faca que abre a trilha, o farol guiando o longe, a luz, no final do tiroteio.