Santa Ignorância

No Café com Muriçoca de hoje, Dinha prossegue com a saga do reizinho genocida, explicando de onde vem sua santa ignorância.
Santa Ignorância

Um dia, quando o reizinho infame se esqueceu de rezar, porque acordou com uma turba de mulheres ressentidas gritando ao redor dos seus domínios – e deus aproveitou a folga pra tomar café mais cedo -, mamãe do céu viu a oportunidade de ensinar algo ao pobre menino. Disse ao pai que descansasse um pouco, porque hoje ela mesma colocaria ordem no mundo.

“Os planos que se foram, foram e não voltam jamais. Angustiado, revoltado, ecoa o canto das favelas. Renasceu a estratégia das sobreviventes”.

Estratégia dos Sobreviventes – Pânico Brutal

Todo dia o reizinho acordava com o sol e a primeira coisa que fazia era fechar bem as janelas, portas e cortinas. No breu, ele voltava para a beira da cama, dobrava os joelhos e rezava, pedindo solenemente ao papai do céu que lhe concedesse muitas bênçãos – as da ignorância, principalmente.

Papai do céu era bom e justo. Lhe concedia de pronto. Mamãe, por outro lado, era melhor e ainda mais justa: ficava olhando, pacientemente, com uma cinta de couro sobre o colo, esperando pelo dia em que o pai lhe dissesse um não e o menino, esperto, viesse pedir sua benção. 

E porque a ignorância lhe era concedida todo dia, o reizinho genocida se esquecia de agradecer pela dádiva de estar vivo e, também, as outras bênçãos que existem no mundo acabavam não lhe fazendo falta, porque ele não se lembrava delas e não as pedia.

O reizinho não tinha amor – e seus súditos o desprezavam. Não tinha compaixão – e seus súditos praticavam o ódio. Não tinha alegria – e seus súditos fabricavam balas de revólveres com o sumo das plantações de canos.

E porque a ignorância lhe era dada, o rei ria das crianças com fome, do ar imundo que a derrubada das florestas e a impiedade das indústrias produzia. Ele posava pra fotos e mais fotos, simulando as armas que todo dia matava mulheres, crianças e jovens de seu reino.

Em sua ignorância, o soberano ria.

Um dia, quando o reizinho infame se esqueceu de rezar, porque acordou com uma turba de mulheres ressentidas gritando ao redor dos seus domínios – e deus aproveitou a folga pra tomar café mais cedo -, mamãe do céu viu a oportunidade de ensinar algo ao pobre menino. Disse ao pai que descansasse um pouco, porque hoje ela mesma colocaria ordem no mundo.

Do lado de fora do castelo, centenas de mulheres, que o rei, não se sabe bem por que, acreditava serem apaixonadas por ele, gritavam palavras de ordem e tentavam furiosamente derrubar os portões. Frases como “Fora, Genocida”, “Abaixo a Monarquia”, “Viva a Democracia” e “Poder para o povo preto” apareciam estampadas em cartazes e não faziam nenhum sentido ao parvo governador.

Mas elas – as mulheres e suas frases – estavam ali porque, depois de implorarem por alimento, abrigo, paz e prosperidade – e verem seus desejos frustrados pelos desmandos da nobreza, encabeçados por seu rei idiota – pediram sabedoria ao pai e à Mãe do Céu, à Mãe Terra, à Mãe das Águas e à Mãe do Corpo. 

Só que sabedoria é uma graça complexa. O contrário da ignorância. 

Munidas de ciência, elas tiveram que se permitir transbordar amor e fúria. Marcharam todas juntas em direção ao castelo: queriam a cabeça do rei. Pela revolução a democracia seria instituída. Pela revolução sua humanidade seria restituída.

Do lado de dentro do castelo, o reizinho sentiu medo quando viu sua filha mais nova, Fraquejada, abrir o portão às outras mulheres, talvez sendo guiada pela praga da mãe. E quando, afobado, o rei foi pedir proteção diante da ameaça com que aquelas bruxas se pareciam, Mamãe do Céu estava lá para escutá-lo, pacientemente, com uma bela cinta nas mãos.

Mas o bruto só rezava no automático e, como sempre, começou pedindo a dádiva da ignorância.

Mamãe do Céu, então, carinhosamente, permitiu que a multidão de mulheres lhe arrancasse a cabeça.

Sem cérebro, o reizinho nunca mais soube de nada e nem  incomodou mais ninguém.

Tô brincando, crianças… 

A Mãe Terra recusou o corpo do rei e ele terminou a história só sendo preso mesmo. Diz a lenda que da cana ele criou um novo partido, o PNN – Partido Neo Nazi – e, de lá, ia disputar as eleições, mas foi expulso. Nem esse lugar, em que o filho chora e a mãe não vê, aceita um tipinho desses.


Dinha (Maria Nilda de Carvalho Mota) é poeta, militante contra o racismo, editora independente e Pós Doutora em Literatura. É autora dos livros "De passagem mas não a passeio" (2006) Diário do fim do mundo (2019) e Horas, Minutas y Segundas (2022), entre outros. 
Nas redes: @dinhamarianilda


LEIA TAMBÉM algumas das crônicas anteriores:

O Reizinho Genocida

Café com Meritocracia

Eu queria ser boçal ainda

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