Por frei Gilvander Moreira[1]
A Bíblia é também uma obra literária, uma “biblioteca” de 73 livros, a católica. “Toda obra literária é uma obra aberta“, afirmava Humberto Eco, grande pensador e escritor italiano, autor de muitos livros imprescindíveis, tais como: Os limites da interpretação, O Nome da rosa, O Fascismo eterno, Em que creem os que não creem, Migração e intolerância etc. Saber interpretar é preciso.
A Bíblia continua sendo o livro best seller, mais lido do mundo, mas lamentavelmente muitas pessoas que se dizem cristãs, sejam católicas, evangélicas ou (neo)pentecostais fazem interpretações de passagens bíblicas que são interpretoses, ou seja, falsas interpretações que reduzem textos bíblicos a autoajuda e amuletos para justificar a ideologia da prosperidade, tranquilizar a consciência com ações pontuais assistenciais e filantrópicas, enquanto permanecem enroscadas em relações sociais que reproduzem cotidianamente as injustiças e as violências do sistema capitalista que, como máquina de moer vidas, está nos levando ao abismo já impondo à humanidade indícios sérios de que estamos sendo empurrados para a extinção da humanidade.
A emergência climática com eventos extremos cada vez mais frequentes e letais está se multiplicando e só não percebe quem está em bolhas de privilégios gozando os lucros da brutal devastação ambiental à custa de muito sangue de humanos e bilhões de outros seres vivos que estão sendo mortos e dizimados ou quem está cegado pela ideologia dominante que insiste na mentira alardeando que é possível continuar o progresso capitalista para acumulação de capital e luxo para 1% da população explorando de forma impiedosa os bens naturais com medidas paliativas “mitigadoras” que são só verniz, mais “veneno” do mesmo.
Neste contexto de povo muito religioso e em meio a brutais injustiças socioeconômicas e políticas que seguem sendo implementadas, a questão religiosa se tornou uma gravíssima questão política que ninguém pode mais ignorar. Precisa ser enfrentada por todos/as que se dedicam a construir uma sociedade para além do sistema do capital, uma sociedade socialista, justa economicamente, democrática politicamente, plural culturalmente e com responsabilidade ambiental e geracional.
Resgatar critérios para uma justa e sensata interpretação dos textos sagrados, sejam da Bíblia, do Alcorão, dos textos sagrados das Religiões de Matriz Ancestral Africana ou dos Povos Originários se tornou necessidade vital. Urge ajudar as pessoas sedentas da Palavra de Deus a captarem a mensagem e apreciarem a riqueza da diversidade de formas e gêneros literários presentes nos textos bíblicos, no Alcorão e nos textos sagrados de todas as outras religiões. Conhecendo-os terão mais condições de fazerem uma correta e sensata interpretação dos textos sagrados e, sobretudo, uma compreensão melhor da mensagem que os autores e as autoras da Bíblia e dos outros textos sagrados quiseram passar para suas leitoras e seus leitores, de ontem e de hoje.
É importante que o texto bíblico ou qualquer outro texto tido como sagrado seja lido levando em conta sua forma e seu gênero literário. É importante pressupor que a tradição oral está na base de formação dos textos sagrados. Todo texto bíblico ou não bíblico tem sempre um contexto vital (Sitz im Leben[1]) – circunstâncias – onde se formou. É iluminador analisar como o texto sagrado se formou e as dificuldades pelas quais passou até ser inserido e reconhecido como inspirado. Os diversos gêneros literários são veículos para comunicar determinada mensagem. Portanto, conhecê-los é imprescindível para uma sensata interpretação dos textos.
Na Bíblia e em todos os outros textos considerados inspirados existe uma série de gêneros menores que mostram a diversidade de gêneros e sua riqueza, como, por exemplo: um provérbio (dos escritos sapienciais), uma lista (historiográfico), um enigma (Jz 14,14), uma saga etiológica (Gn 49,1-28), um cântico de louvor (1Sm 2,1-11), um cântico de vitória em uma batalha (Jz 5), um texto jurídico (Lv 18,1-23), um oráculo (profético), um texto apocalíptico (Ap 12,1-17) etc.
Muitas pessoas pensam que a Bíblia, o Alcorão ou outro livro sagrado são livros ‘caídos’ do céu. Pensam que a Bíblia foi toda ditada pelo Espírito Santo diretamente aos seus autores/as, e eles e elas escreveram somente aquilo que ouviram de Deus. Não conseguem fazer uma leitura mediada a partir da realidade humana contextualizada no tempo, em que ela foi escrita, nas condições culturais da época. Sem dúvida que a Bíblia é um livro inspirado, pela ação do Espírito Santo, mas não de forma mágica e automática que tenha sido como muitas pessoas pensam. Sem dúvida que o Espírito Santo é o inspirador das Sagradas Escrituras, revelou-se a nós, por meio de pessoas à maneira humana, por isso, o intérprete deve investigar com atenção o que os hagiógrafos (escritores dos textos sagrados) queriam manifestar por meio de suas palavras[2].
O conceito de revelação de Deus[3]não se encontra definido na Bíblia e não existem termos apropriados para falar dela, a não ser a expressão privilegiada de “Palavra de Deus ou do Senhor”, muito frequente, sobretudo, na boca dos profetas[4]. A revelação é um conceito biblicamente complexo que compreende ações, gestos e palavras, cuja mensagem faz parte da livre iniciativa de Deus na sua relação amorosa com o ser humano com toda a biodiversidade. Tanto na tradição judaica quanto cristã, todas as páginas da Bíblia são consideradas Palavra de Deus.
Diz a homilia aos Hebreus, que Deus falou muitas vezes e de muitos modos nos tempos passados: “Muitas vezes e de modos diversos falou Deus, outrora, aos Pais pelos profetas; agora, nestes dias que são os últimos, falou-nos por meio do Filho, a quem constituiu herdeiro de todas as coisas, e pelo qual fez os séculos. É ele o resplendor de sua glória e a expressão de sua substância; sustenta o universo com o poder de sua palavra; e depois de ter realizado a purificação dos pecados, sentou-se nas alturas à direita da Majestade, tão superior aos anjos, quanto o nome que herdou excede o deles” (Hebreus 1,1-4).
A livre iniciativa de Deus revela-se no fato de falar-nos outrora pelos profetas e hoje por meio do seu Filho, Jesus. Esta iniciativa nasce do seu mistério de amor gratuito, que deseja se encontrar com o ser humano, não por meio de técnicas ascéticas, ou contemplativas, ou ainda místicas. Mas por meio da sua Palavra, viva e eficaz (Cf. Is 55,10-11), que chega de pessoa a pessoa, ele a interpela, e espera dela uma resposta. É uma revelação pública, dirigida “aos pais” e a “nós” por meio da criação, da sua ação na história, por meio dos oráculos proféticos, e nos últimos tempos por meio de Jesus Cristo, na sua realidade histórica visível e insuperável de Deus, seu Pai.
Como é que Deus se revelou outrora? De muitos modos, como fala o texto, por meio da experiência fundante de Israel vivida no êxodo para se libertar das garras do imperialismo dos faraós no Egito, para torná-lo conhecido, em vista da libertação/salvação de seu povo, por meio da releitura da própria história à luz da fé de Israel e pela palavra profética. Portanto, a Bíblia é sagrada, mas se mal interpretada pode ser usada, sim, para difundir atitudes nada sagradas, que são na prática opressoras. Logo, textos sagrados, sim, são uma bênção, se interpretados de forma sensata e libertadora.
19/9/2023.
Obs.: As videorreportagens nos links, abaixo, versam sobre o assunto tratado, acima.
1 – Agir ético na Carta aos Efésios: Mês da Bíblia de 2023. Por frei Gilvander (Cinco vídeos reunidos)
2 – Andar no amor na Casa Comum: Carta aos Efésios segundo a biblista Elsa Tamez e CEBI-MG – Set/2022
3 – Toda a Criação respira Deus: Carta aos Efésios segundo o biblista NÉSTOR MIGUEZ e CEBI-MG, set 2022
4 – Chaves de leitura da Carta aos Efésios, segundo o biblista PEDRO LIMA VASCONCELOS e CEBI/MG –Set./22
5 – Estudo: Carta aos Efésios. Professor Francisco Orofino
6 – Carta aos Efésios: Agir ético faz a diferença! – Por frei Gilvander – Mês da Bíblia/2023 -02/07/2023
[1] Expressão da língua alemã que signica “situação na vida”.
[2] CONCILIO VATICANO II. Constituição Dogmática sobre a Revelação Divina. Dei Verbum, São Paulo: Paulinas, 2005, p.16.
[3] MAGGIONE, B. Nuovo Dizionario di Teologia Biblica. Torino: Edizione Paoline, 1988. p.1361-1376.
[4] Cf. Is 1,10; 28,14; 38,4; 66,5; Jr 1,2.4.11.13; 2,1.4.31; 18,1; Ez 1,3;6,13; 7,1.; 12,1.8.17.21.25.26; 38,1; Os 1,1; 4,1; Jl 1,1; Am 8,11.12; Jn 1,1; 3,1; 3,3; Mq 1,1; 2,7; 4,2; Sf 1,1; 2,7.8; Ag 1,1.3.12; 2,1.5.10.20; Zc 1,1.6.7.13; 7,4.8; 8,18.
[1] Frei e padre da Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico, em Roma, Itália; agente e assessor da CPT/MG, assessor do CEBI e Ocupações Urbanas; prof. de Teologia bíblica no SAB (Serviço de Animação Bíblica), em Belo Horizonte, MG; colunista dos sites www.domtotal.com , www.brasildefatomg.com.br , www.revistaconsciencia.com , www.racismoambiental.net.br e outros. E-mail: gilvanderlm@gmail.com – www.gilvander.org.br – www.freigilvander.blogspot.com.br – www.twitter.com/gilvanderluis – Facebook: Gilvander Moreira III