“As mudanças no PNAD são o recrudescimento da proibição no Brasil”

Leia abaixo a entrevista que os Jornalistas Livres fizeram com Emílio Figueiredo, advogado e membro da rede REFORMA, sobre alterações na PNAD (Política Nacional de Drogas) propostas pelo governo Bolsonaro.

Jornalistas Livres: Como a mudança de paradigmas da PNAD (Política Nacional de Drogas) pode impactar os índices de dependência química e violência relacionada ao narcotráfico no Brasil? 

Emilio Figueiredo: As mudanças no PNAD são o recrudescimento da proibição no Brasil, e outras experiências assim mostram o afastamento de quem precisa de cuidados e o aumento do mercado clandestino, o qual no Brasil é disputado de forma violenta entre máfias e Estado. O principal impacto será no afastamento daqueles usuários que buscam auxílio através da Redução de Danos, que foi desconsiderada no PNAD e dando lugar a exclusividade para medidas que envolvam a abstinência.

JL: O pacote de medidas anticrime proposto pelo ministro da justiça pode interatuar com a mudança de rota na PNAD? Quais as possíveis consequências dessa ação conjunta? 

EF: O pacote do ministro da justiça aborda de forma superficial a questão das drogas, apenas acerca do patrimônio apreendido de pessoas acusadas de tráfico. Talvez, essa superficialidade do Ministro da Justiça já tenha sido pensada em conjunto com a definição do decreto do PNAD. A soma dos dois possivelmente acarretará o incremento do encarceramento e o fortalecimento das máfias que dominam o atacado e o varejo do mercado clandestino de drogas.

JL: O que revelam – quais os consensos e principais indicativos – das pesquisas científicas de ponta contemporâneas sobre uso de substâncias psicoativas e dependência? Em relação às diretrizes de combate ao narcotráfico mais bem sucedidas em âmbito internacional onde se situam as atuais diretrizes brasileiras? 

EF: Existem pesquisas para todos os gostos, mas há o consenso de que a criminalização do usuário o afasta do cuidado em momentos dificuldade. No âmbito internacional as melhores práticas de combate ao narcotráfico envolvem tirar o monopólio do comércio clandestino das mãos de pessoas que disputam o mercado de forma violenta, se já com concorrentes ou com a fiscalização policial do Estado.

Manifestantes durante a Marcha da Maconha, em São Paulo
Foto: Lucas Martins / Jornalistas Livres

JL: Qual seria o caminho mais eficiente a seguir, no contexto brasileiro, na direção de melhorias concretas no combate ao narcotráfico e diminuição do impacto social negativo das drogas? Considerando-se que no atual cenário político brasileiro a descriminalização ainda parece um objetivo distante…

EF: Dentro do que aprendi nos últimos 10 anos observando a dinâmica das drogas no Brasil, principalmente a cannabis, vejo que o ideal é o Estado regular e fiscalizar um novo mercado lícito de drogas. Dentro de uma perspectiva de não excluir aqueles que hoje já fazem parte do mercado clandestino, com produtores e varejistas de locais tradicionais no Brasil. Com isso se criaria oportunidade de emprego nesse novo campo ao mesmo tempo que dá alternativa a quem está envolvido com atividade criminosa. Não dá para afirmar que a descriminalização está distante, pois essa decisão pode vir por qualquer dos 3 poderes, e, no caso, o Supremo Tribunal Federal está caminhando para reconhecer a inconstitucionalidade da criminalização das condutas relativas ao consumo próprio.

JL: As populações desfavorecidas financeiramente, notadamente nos centros urbanos de médio e grande porte, possuem uma real demanda, uma grande urgência, de melhoria no modelo de segurança pública. No Brasil a relação forças de segurança-narcotráfico está no cerne dessa questão. Por falta de conhecimento e desespero uma parcela considerável da população adere a discursos simplistas e de apelo afetivo no sentido do recrudescimento das ações governamentais. As organizações progressistas vêm falhando sistematicamente no convencimento e conscientização do povo nesta questão. Qual o caminho da comunicação progressista para quebrar esse ciclo?

EF: Creio que o campo progressista deve deixar o alarmismo e a demonização quanto às drogas, e às pessoas que se envolvem com mercado das drogas. Ao mesmo tempo, o progressismo deve aprender com as experiências internacionais sobre as drogas e escolher um caminho que faça de uma nova política de drogas uma ferramenta para a justiça social. A comunicação progressista deve apresentar a reforma da política de drogas como uma oportunidade de criar uma nova realidade social para o Brasil, principalmente para as pessoas mais atingidas pela violência da atual política de drogas.

JL: Programas como o “De Braços Abertos”  realizado pela prefeitura de SP, na gestão Haddad, mostram resultados positivos, mas são descontinuados, não só por Bolsonaro, por conta da retórica punitivista e estigmatizadora que alguns políticos usam como bandeira, mas quais os outros interesses que podem motivar esse retrocesso com relação à política de diminuição de danos, com relação aos usuários?

EF: O interesse não é dar uma vida digna ao usuário de drogas em situação de miséria, mas sim fortalecer um sistema que envolve financiamento público para iniciativas particulares, como as comunidades terapêuticas, e assim dar suporte a um projeto de poder conservador.

JL: Nos últimos anos diversos casos, como o famoso helicóptero, desvelaram como o narcotráfico está entranhado nas mais altas esferas dos poderes públicos do Brasil, existe alguma esperança de combate ao topo das pirâmides organizacionais do crime ou seguiremos em guerra contra os pequenos varejistas?

EF: Minha esperança é que os consumidores, varejistas, produtores tradicionais reconheçam sua importância e se apoderem desse ciclo, criando alternativas ao ciclo bancado pelas elites envolvidas. Contra o topo da pirâmide só mesmo a conscientização da base para perverter a ordem injusta.

Manifestantes durante a Marcha da Maconha, em São Paulo
Foto: Lucas Martins / Jornalistas Livres

 

 

Emilio Figueiredo – advogado na Rede Jurídica pela Reforma da Política de Drogas – REFORMA, reconhecido defensor de pessoas que fazem uso e cultivam a Cannabis, principalmente para fins terapêuticos. Também é consultor jurídico de associações de pessoas que que fazem uso terapêutico da Cannabis e de iniciativas públicas e privadas que buscam a produção nacional de Cannabis com observância de seu impacto social e ambiental no Brasil.

Mestrando no Programa de Pós-graduação em Justiça e Segurança (PPGJS) do Instituto de Estudos Comparados em Administração de Conflitos (INCT INEAC) da Universidade Federal Fluminense (UFF).

COMENTÁRIOS

POSTS RELACIONADOS