Como a mídia classe média vê o assassinato de Marielle e a visão das quebradas

Mainifestação na av. PAulista, domingo 18.03.2018. Foto Laura Barbosa | Jornalistas Livres

O assassinato da vereadora Marielle Franco (PSOL-RJ) comoveu a sociedade. Milhares de pessoas foram às ruas no dia 15, o caso ganhou repercussão internacional. Pessoas que compareceram às ruas testemunharam que o clima é de “indignação”.

A banda nazifascista ficou encurralada. O deputado Jair Bolsonaro recolheu-se ao silêncio. Aqui e ali apareceram declarações tipo “defensora de bandidos tem que morrer”, mas ficaram nas bolhas da extrema-direita.

A Rede Globo e toda a mídia hegemônica cobriu amplamente o episódio. Inclusive com atitudes irresponsáveis, como a divulgação do nome da assessora da parlamentar, que sobreviveu ao atentado, colocando a vida dela em risco.

E isso forçou o governo golpista e todo o seu “staff” a se posicionar. Prometem investigar com celeridade o caso, pressionados a dar uma satisfação à opinião pública nacional e internacional.

 

Manifestação na av. Paulista, quinta 15.03.2018. Foto Christina Braga | Jornalistas Livres

Os analistas da mídia hegemônica continuam dando escorregadas. A tônica é que o assassinato da vereadora põe em xeque a intervenção militar no Rio de Janeiro. Não pelas críticas que a vereadora fazia, mas por demonstrar que a segurança pública no Rio de Janeiro continua falha.

Mas o assassinato de Marielle Franco não é um problema de “falha de segurança pública”. Não foi um assalto. Não foi um seqüestro. Todos os indícios apontam para um crime político.

E é justamente disso que os analistas da mídia hegemônica querem fugir. É fato que o golpe de agosto de 2016, que levou Temer ao poder, abriu uma caixa de pandora. O bloco que está no poder junta o que há de mais abjeto na sociedade civil brasileira. Muitos manifestantes de verde-amarelo que defendiam a derrubada da presidenta Dilma faziam apologia à ditadura militar e até a torturadores daquele período. Esta turma faz parte do poder que esta mídia hegemônica apoiou e apóia.

Os argumentos são bizarros. O primeiro que vou citar aqui é do Josias de Souza, do portal UOL. Diz ele em sua coluna do dia 15/3, que o assassinato de Marielle é um pavio que ascenderá as mobilizações de rua como foi em 2013. Comparação incorreta. Aumento de 20 centavos no transporte público e PEC 37 não se comparam a tirar a vida de uma liderança feminina, negra e da periferia. A identificação com as bandeiras e a postura de Marielle não é a mesma que levou pessoas para as ruas em 2013. Ela era uma das raríssimas vozes representativas dos guetos periféricos no parlamento e foi calada de forma violenta.

Os manifestantes identificados com Marielle sentiram que suas vozes também foram caladas. Por isto, as conseqüências deste fato serão bem diferentes do que ocorreu em 2013. Principalmente porque se somam a uma crescente insatisfação da população da periferia com a situação do país que está bem somente nas páginas de economia dos jornais da mídia hegemônica. Desemprego, aumento da miserabilidade, corte das políticas públicas e aumento da violência são coisas que já vêm de há tempo causando profunda irritação na população. A liderança folgada de Lula nas pesquisas de intenção de votos, não obstante a verdadeira campanha midiática contra ele, é um indicador disso.

Já o jornalista Fernando Rodrigues, do Poder 360, vai na linha que o assassinato de Marielle Franco expôs as falhas da intervenção militar, que demonstrou a sua ineficiência no combate ao crime organizado e que, por conta disto, tornará o tema da “segurança pública” central na disputa eleitoral. Por isto, considera que o fato foi “disruptivo” no sentido de mudança da agenda pública e da situação do governo Temer.

O mesmo enfoque incorreto: tratar o caso como um “problema de segurança pública” e não como conseqüência da direitização da sociedade cristalizada com o golpe de agosto de 2016.

Estes enfoques decorrem de problemas de enfoque ideológico dos autores e, de quebra, da mídia hegemônica.

Primeiro, partem do pressuposto de que o Brasil vive uma “normalidade democrática” o que não é verdade. Exemplos: o uso do lawfare contra Lula, os abusos cometidos pelo Poder Judiciário em vários episódios, o aumento de narrativas nazifascistas e a parcialidade cada vez mais intensa de órgãos, como o STF (cuja presidenta não tem pruridos em receber um presidente da República que está sendo julgado em um encontro privado e fora da agenda oficial e que também topa participar de um jantar bancado por uma transnacional do petróleo). Há tempo que o tal Estado Democrático de Direito foi destroçado no país.

Segundo, que fatos como este assassinato decorrem de um “mau funcionamento” das instituições e não são produtos de uma determinada estrutura política.

Terceiro, aí é de fato uma questão de classe, não entendem os sentimentos e desejos de quem mora nas periferias e nas quebradas. O pensamento dessa população não é o mesmo que é hegemônico na classe média como os jornalistas aqui citados e os seus leitores. O que move o pensamento e os desejos é a sobrevivência e a construção de uma vida digna. Que estão sendo ceifadas com o corte de gastos, com a precarização do trabalho via a reforma trabalhista, com a reforma da previdência e com a militarização dos espaços periféricos onde residem. Pouco importa aumento do PIB de 1,5% e redução do déficit fiscal se isto foi obtido a custa de desemprego e corte de políticas públicas. Pouco importa as diatribes da República de Curitiba se falta merenda escolar – principalmente quando ficou nítido que os pseudomoralistas do Judiciário querem manter mordomias, como o auxilio-moradia de 5 mil reais.

E quando existem poucas vozes representativas destes segmentos sociais nos parlamentos dominados por coronéis, oligarcas, empresários, latifundiários, sacerdotes religiosos, elas são caladas violentamente. É esta a indignação que explodiu. Só não percebeu quem continua fazendo “jornalismo” e “análise política” sentado em gabinetes acarpetados e com ar condicionado.

A indignação é contra a perversidade de um Estado que, além de fazer passar fome, não quer que se grite que está com fome.

 

Dennis de Oliveira é professor livre-docente em Jornalismo, Informação e Sociedade pela ECA/USP. Possui graduação em Comunicação Social Habilitação Em Jornalismo pela Universidade de São Paulo (1986), mestrado em Ciências da Comunicação pela Universidade de São Paulo (1992) e doutorado em Ciências da Comunicação pela Universidade de São Paulo (1998). Atualmente é professor em RDIDP (Regime de Dedicação Integral à Docência e à Pesquisa) na Universidade de São Paulo. Tem experiência na área de Comunicação, com ênfase em Comunicação Popular, atuando principalmente nos seguintes temas: comunicação e cultura, processos mediáticos e culturais, comunicação e recepção, processos mediáticos e jornalismo, mídia e racismo, e integração na América Latina. É coordenador do CELACC (Centro de Estudos Latino Americanos de Cultura e Comunicação), vice-líder do Alterjor (Grupo de Pesquisa de Jornalismo Alternativo e Popular) e membro do Neinb (Núcleo de Estudos Interdisciplinares do Negro Brasileiro), todos da Universidade de São Paulo. É professor do Programa de Pós Graduação em Mudança Social e Participação Política da EACH/USP e do Programa de Pós Graduação em Direitos Humanos da Faculdade de Direito da USP. Atua como consultor em comunicação, educação e cultura em instituições públicas, particulares e organizações não governamentais.

 

***Este artigo foi escrito no dia 16 de março de 2018

Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Jornalistas Livres

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