A rua é compromisso. Humanidade no crack

De Braços Abertos, o programa de redução de danos da Prefeitura, que em seu primeiro ano reduziu em 50% o consumo de crack na região, alia atendimento médico, moradia, reabilitação psicossocial, assistência social. Em outras palavras, humanidade.

São Paulo. Centro-Luz. Cinema na rua. O filme? Sabotage. Pra quem? Pra quem quiser! Para os moradores, passantes e para o fluxo de usuários de crack.

Foto: Apu Gomes

Passei 10 meses no ano passado vindo periodicamente pra cá. Junto ao projeto Casa Rodante, parceria da casadalapa com a Secretaria Municipal de Direitos Humanos e Cidadania (SMDHC). Criando espaços de convivência.

Isabella Lanave / R.U.A Foto Coletivo

Entre moradores, ocupantes, passantes e fluxo de usuários. Chegando em casa chorando ou em completa fadiga física e psicológica.

Acredito que todos os companheiros desta jornada têm hoje uma nova forma de ver as coisas. Me incluo nesse grupo. Penso diferente, vejo diferente. Ouço diferente. Sinto diferente. Não tenho como dar a vocês parâmetros do que estou falando. Não há como eu tentar explicar racionalmente o que eu sinto, aqui.

Primeiro. Um choque na coluna cervical. Uma porrada forte. Você perde a respiração, você não acredita no que vê.

Segundo. Os olhos se enchem de areia. A visão turva. Quando chega o lusco-fusco, a confusão é maior ainda.

Terceiro. O cheiro de metal. Por todo lugar. Como se mastigassem facas.

Quarto. O contato imediato é tensão. Os músculos tensionam, a boca seca.

Quinto. Respira respira. Acalma. Quem sabe me acostumo. Só que não.

Segue a sede um dia irá chover

O desconforto é necessário para começar a entender as redes de força que encobrem e encasulam esse território. O crack é só uma pequena ponta desse enorme iceberg.

Se o vasto exército de Brancaleone que se estende por toda rua Dino Bueno, entre a Helvétia e o Largo Coração de Jesus, instaura seus maiores medos no seu total desconhecimento, saiba que essa é a parte mais simples da compreensão desse não-lugar. Simples. Questão de saúde pública.

Esses brancaleones de tantos cantos deste país, seduzidos pela tv, pela grana, pela grama, pelo poder do consumo, simplesmente são subjugados por uma cidade que explora a desinformação, que apoia e alimenta a violência, que destrói possibilidades de convivência, que se alicerça no medo alheio e rechaça, impede, destrata, draga seus bons sentimentos, destrói seu amor próprio e os transforma em seres invisíveis ao resto da cidade.

Foto: Apu Gomes

Essa cidade não se veste apenas de farda em limpezas forçadas e jatos d’água diários que molham suas vestes e seus cobertores de único conforto. Essa cidade se veste de milícias de calçada que lhes vetam o direito de ir e vir. Essa cidade se veste de alimentadores do tráfico alheio para que o tráfico não deixe de existir. Essa cidade se veste de falsos benfeitores que vão higienizando cada pedaço do bairro transformando-os em moinhos de vidro espelhado que mesmo assim, não refletem os vampiros dançando em frente ao espelho. Essa cidade se veste de preconceito, intolerância, medo, grades de ferro e cadeados imensos, alarmes barulhentos, uniformes e, principalmente, se veste de silêncio.

Respeito é pra quem tem

Nunca digam terra de ninguém. Todos são alguém, têm história. Têm problemas como têm sonhos. Como todos nós. Em dias de Casa Rodante, conheci muitas histórias. Muitas. O soldado de Pinochet que bandeia para o lado da floresta e se junta ao exército de Che no Peru, o milico da última linha de tortura dos porões sujos da ditadura ou a menina que cria todo santo dia uma personagem mítica pra não se lembrar todo santo dia da guarda perdida da filha. Se estivessem numa novela global, seriam personagens seguidos, amados ou odiados, seriam convidados para programas estúpidos de auditório, contariam suas memórias em arquivos escrotos de domingo. Mas não. Não estão em nenhuma novela de horário nobre, talvez apenas nas babas vociferadas de raivosos datenas da vida. Estão ao seu alcance. Ao abrir a janela blindada de vidro fumê do seu tanque de guerra diário.

Foto: Sato do Brasil

Mas existem ainda santos guerreiros e heróis desajustados que clamam e protegem e dignificam esse incrível exército de brancaleone. Que tentam compreender suas fraquezas, e provocar fortalezas. Pequenas fortalezas diárias, como um simples trabalho de limpeza de ruas, seus caminhos. Ou plantar pequenas hortas urbanas em galões de água cheios de terra pelas esquinas do território.

Foto: Sato do Brasil

Esses santos guerreiros e heróis desajustados como os artistas mambembes da Casa Rodante, como esse Dom Quixote visionário, senador eterno, que em seus devaneios de realidade e verdade, rompe em direção aos brancaleones para consolidar os elos de confiança, como se todo o fluxo fosse a sua Dulcinéia, procurando trazer conforto, compreensão, atenção e carinho. Como esse outro santo guerreiro e herói desajustado do outro lado da tela desse cinema impossível, esse Macunaíma Redimido, arauto-mc dos labirintos de espraiadas, que viveu infernos e que soube renascer de cinzas, da pedra que derreteu santa e que nunca mais virou pedra.


Um bom lugar se constrói com humildade, é bom lembrar

Quando filme e público se transformam num só. A tela, as cadeiras brancas, o povo em pé. A rua que desaparece como fumaça. Lá em cima, um Jesus iluminado de braços abertos, impávido, nem aí. De Braços Abertos mesmo, o programa de redução de danos da Prefeitura, que em seu primeiro ano reduziu em 50% o consumo de crack na região. Isso, aliado a atendimento médico, moradia, reabilitação psicossocial, assistência social. Em outras palavras, humanidade.

Foto: Sato do Brasil

Humanidade. Como uma simples sessão de cinema. Na rua. Estabelecer o trânsito contrário. Percorrer o caminho inverso. Sabotage, que viveu intensamente os dois lados dessa mesma moeda, diz que o respeito de um por um faz a paz prevalecer. O começo de qualquer relação de convivência. A tolerância, o carinho, a compreensão, a humildade. Olhar dentro dos olhos, não desviar a atenção, não ter pressa, não mudar a direção. Manter os sentidos tranquilos. Estender a mão. Consagrar uma simples conversa. Sorrir. Apenas isso já transforma o dia. Humanidade.

 

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