Nem bem iniciou o terceiro governo Lula e a disputa pela água já tomou os bastidores da política e as manchetes dos jornais. No dia 04.01.2022, em matéria do Valor Econômico, o novo ministro da Integração e do Desenvolvimento Regional, Waldez Góes, da cota do União Brasil, é citado. Segundo o jornal, “Góes defendeu que a ANA (Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico) volta ao ministério comandado por ele”. E a matéria continua: “o que teria sido recomendado por servidores da Agência” (a volta para o MIDR). A frase da matéria repercutiu mal junto aos servidores da ANA.
Fontes da reportagem, que pediram anonimato, explicam que o retorno da ANA para a estrutura do Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clilma (MMA) impactou diretamente as articulações que a atual diretoria da ANA tem junto ao setor privado de saneamento. “A questão não é onde vai ficar a regulação do saneamento, mas como está o novo marco do saneamento (Lei 14.026/2020), que na prática privatiza o saneamento básico”, comentam. E continuam, afirmando que esta lei foi aprovada na “calada da noite, em plena pandemia e sem a devida discussão com a sociedade”.
A ANA – Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico foi criada em 2000, por meio da Lei nº 9.984. Ela é o órgão federal responsável por implementar a Política Nacional de Recurso Hídricos. Também é responsável pela prestação dos serviços públicos de irrigação e adução de água bruta; pela segurança de barragens e pela instituição de normas de referência para a regulação dos serviços públicos de saneamento básico. Sua missão é “garantir a segurança hídrica para o desenvolvimento sustentável do país”. Ela é considerada a Agência Reguladora com maior percentual de mestres e doutores do país, que representam mais de 70% de seu corpo técnico.
A Lei 11.445 de 2007, que definiu as Diretrizes Nacionais para o Saneamento, foi alterada pela Lei 14.026 de 2020. Essa última, aprovada sem a devida escuta e participação social, incentiva a privatização do saneamento
O saneamento básico é composto por quatro componentes: abastecimento de água potável, esgotamento sanitário, limpeza urbana e manejo de resíduos sólidos e drenagem e manejo de águas pluvias urbanas.
Procurado, o diretor executivo da Associação dos Servidores da Agência Nacional de Águas (ASÁGUAS), Gonzalo Fernández, informou que “foram pegos de surpresa com a afirmação apresentada pela reportagem”. Fernández destacou que a manifestação coletiva dos servidores da ANA está apresentada na carta “Proposta de temas relacionados à gestão dos recursos hídricos e saneamento básico ao gabinete de transição governamental”, entregue à equipe de transição governamental em 07 de dezembro de 2022 e no dia 04 de janeiro de 2023 à ministra do Meio Ambiente e Mudança do Clilma, Marina Silva. Gonzalo conclui observando que “o manifesto não se posiciona em nenhum momento com preferência em estar em uma ou outra estrutura de estado”.
ASÁGUA – Associação dos Servidores da Agência Nacional de Águas – representa cerca de 80% do quadro efetivo da Agência. São especialistas em regulação de recursos hídricos e saneamento básico e especialistas em geoprocessamento, analistas e técnicos.
O tema é espinhoso e complexo. Há pelo menos cinco questões em disputa:
1 – Água é direito ou commodity?
De um lado, há os que defendem que o valor da água como bem público e o tratamento específico para cada uso particular da água. Diversas iniciativas legislativas reforçam esses valores, como a Proposta de Emenda à Constituição – PEC – nº 2, de 2016, de autoria do Senador Randolfe Rodrigues (REDE AP) que inseriu o saneamento básico no rol dos direitos sociais tutelados pelo artigo 6ª da Constituição Brasileira, aprovada em 06.07.2022. E a PEC nº6/2021, que já aprovada no Senado e que tramita na Câmara dos Deputados, que modifica o artigo 5º da constituição Federal para “garantir a todos o acesso à água potável em quantidade adequada para possibilitar os meios de vida, bem-estar e desenvolvimento sócio-econômico”. Ou seja, avançam no sentido de incluir os direitos à água e ao saneamento como Direitos Fundamentais. Também não dá para esquecer que logo no primeiro governo Lula, o Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (CONSEA), publicou portaria destacando que “água é alimento”.
Por consequência, há importância da integração da gestão ambiental à gestão dos recursos hídricos, na medida em que tudo que impacta o ambiente afeta os recursos hídricos em quantidade e/ou qualidade, direta ou indiretamente. Como destaca a promotora Luciana Khoury, coordenadora do Programa de Fiscalização Preventiva Integrado do Rio São Franscisco na Bahia e titular da promotoria de justiça regional ambiental de Paulo Afonso-Bahia, “uma gestão de recursos hídricos apartada da gestão ambiental faz com que as políticas públicas não dialoguem, isso gera consequências”.
De outro lado, há aqueles que entendem água como commodity e produto financeiro no mercado futuro. Para eles, a água é “recurso” hídrico, utilitário. Nessa visão, o valor econômico da água passa a ser prioridade. Localizar a ANA no MIDR reforça esse sentido “utilitário” da água. A ANA perde a dimensão dos usos múltiplos da água. Essa compreensão traz um importante risco de fornecimento de água para as populações mais pobres e indica a possibilidade de uma “guerra pela água”.
Estudos mostram que em locais onde houve privatizações dos serviços de abastecimento de água e saneamento, como na Andaluzia-Espanha, as empresas privadas se fixaram prioritariamente nas grandes cidades, com chances de maior rentabilidade e os custos dos serviços de água para a população aumentaram bastante. As pequenas cidades ficaram sem investimentos. Há exemplos no Chile, Estados Unidos e Reino Unido, entre outros países.
2 – O Estado tem condições hábeis ou não de implementar a política nacional de saneamento básico?
De forma simples, pode-se dizer que há dois entendimentos sobre a questão. Um defende que o setor público deve ser a ponta de lança, o grande promotor, principalmente num grande país com grandes desigualdades como o Brasil. Especialistas argumentam que o déficit na prestação de serviços de água e esgoto no Brasil é muito grande. Dizem que mesmo que o capital privado seja atraído, “é muito improvável que o déficit seja equacionado”, seja pela escala, seja pela diversidade do déficit e histórico de atuação do segmento privado em diversos países. E completam: há desconfianças em relação ao “novo arranjo legal e institucional”. Consideram que, ao invés de funcionar como indutor de atuação para a iniciativa privada, o novo marco legal poderá criar “um ambiente de incertezas e riscos para os negócios”, instabilidade jurídica, crise econômica, rigidez dos contratos e imagem internacional do Brasil seriam fatores de risco não controlados. O Observatório do Saneamento Básico (Ondas) tem produzido uma série de estudos e relatórios sobre o tema. O setor público responde por 94% das empresas de tratamento de água e esgoto do País, segundo dados do portal Senado Notícias. A estimativa é que sejam necessários cerca de R$ 500 bilhões para que se atinja a universalização do sistema de saneamento no Brasil.
O outro ponto de vista defende que o estado brasileiro não tem condições de implementar a política nacional de saneamento, “porque até hoje não fez”. Seus defensores dizem que a “privatização será a solução”. Fontes da reportagem destacam que essa é a visão da atual diretoria da Agência. Toda a direção da ANA foi nomeada por Bolsonaro e segue com seus mandatos, que terminam entre 2024 e 2026. Matéria publicada na Carta Capital em 05.01.2023, escrita por José Machado – ex-presidente da ANA entre os anos 2005 e 2009 – informa que “membros da ANA viajaram para São Paulo com recursos públicos para comemorar, efusivamente, a privatização de serviços de saneamento básico”.
Cabe lembrar que ao mesmo tempo em que se faz no mundo o debate da desprivatização das companhias de água, em São Paulo, o estado mais rico da federação, o novo governador Tarcísio de Freitas foi eleito prometendo privatizar a SABESP.
3 – O ente regulador deve ser autônomo ou não em relação ao setor regulado?
Aqui também duas visões se contrapõem. Uma, que considera que é necessária a autonomia para que se garanta o cumprimento dos direitos fundamentais relacionados. Neste sentido, autonomia significaria, também, que o órgão regulador (ANA) não deveria estar vinculado ao órgão do governo federal que tem entre suas funções a execução da política nacional de saneamento básico – o Ministério de Integração e Desenvolvimento Regional.
A promotora da Promotoria Regional de Meio Ambiente de Paulo Afonso-BA, Luciana Khoury, mais uma vez ouvida pela reportagem, entende que é “super pertinente a ANA voltar para o meio ambiente”. Khoury reforça que não se deve entender água apenas como insumo econômico de produção. Nesse sentido, completa, “A ANA no MMA consegue fazer a análise mais pertinente para a gestão da água, de modo que se enfatize as múltiplas dimensões da água, sejam as ecológicas para a manutenção dos ecossistemas, para a vida, bem como a cultural, religiosa, dentre tantas outras”. E finaliza, “quando se coloca a ANA dentro do MIDR se dá a água apenas a importância da sua função de insumo produtivo”.
A outra visão defende que vincular o órgão regulador ao órgão implementador possibilitaria que a execução e as outorgas sairiam mais rapidamente, o que facilitaria a implementação da política. Manter a ANA vinculada ao MMA fortalece o entendimento de que água está totalmente relacionada ao meio ambiente e isso reforça a defesa e fortalecimento dos princípios do Plano Nacional de Recursos Hídricos (PNRH) , do meio ambiente e da defesa dos usos múltiplos da água.
o que é uma outorga? A outorga de direito de uso ou interferência de recursos hídricos (ou simplesmente outorga) é um ato administrativo, de autorização ou concessão. Com ele, o Poder Público (estadual ou federal) faculta ao outorgado fazer uso da água por determinado tempo, finalidade e condição expressa no respectivo ato. A outorga é instrumento das Políticas Nacional e Estaduais de recursos hídricos.
4 – Uso político do saneamento básico no país e dos recursos governamentais previstos para isso
Só para 2023, na Lei de Orçamento Anual (LOA), o programa Saneamento Básico teve um aumento de 475,82%. Saiu de um orçamento anual de R$ 262,6 milhões para R$ 1,51 bilhão. Volume expressivo de recursos que poderão alavancar, também, “ganhos políticos” nos territórios que forem escolhidos para receber investimento.
5 – Retirar ou não a competência da ANA relativa ao setor de saneamento básico?
Jerson Kelman, o primeiro presidente da agência, disse ao Jornal Valor Econômico, no dia 03.01.2023, que “a proposta de retirar a Agência Nacional de Águas (ANA) do setor de saneamento básico é um equívoco. Se concretizado, vai gerar insegurança jurídica e afastar investidores”. A alternativa de criar uma nova agência reguladora voltada para o saneamento básico existe. Mas especialistas afirmam que reforçar a ANA seria mais eficiente do que constituir uma nova organização. Visões em disputa se degladiam nos bastidores.
Até o momento o argumento de que a ANA deveria ficar junto ao MMA tem vencido a disputa. A Medida Provisória (MP) nº 1154 publicada em 01.01.2023, coloca a Agência junto à estrutura do MMA, mas tirou a competências no saneamento, levando-as para o Ministério das Cidades. Mas o debate ainda segue.
A reportagem seguirá o tema.
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Uma resposta
Eu acredito que a água deve ser considerada um direito, não uma
commodity. Todos merecem ter acesso a água limpa e segura,
independentemente de sua renda ou posição social. Vender a água como uma
commodity pode levar a desigualdades e injustiças, e é importante que
as pessoas tenham acesso a essa recurso vital de maneira justa e
equitativa.
segurancareal