A barbárie não é exceção, mas elemento constituinte desta era

Enxergar a barbárie como parte integrante do modelo civilizatório parece ser o primeiro passo e única forma de superarmos a tragédia em que estamos mergulhados, principalmente os mais pobres, os negros, os índios, as mulheres
@lucasgetum

Álvaro Nascimento, jornalista, mestre e doutor em Medicina Social

“Por todas as circunstâncias, diante dos delitos de desobediência e resistência, após ter sido empregado legitimamente o uso diferenciado da força, tem-se por ocorrida uma fatalidade, desvinculada da ação policial legítima”. “… possivelmente devido a um mal súbito, a equipe foi informada que o indivíduo veio a óbito.” (Boletim da Polícia Rodoviária Federal publicado pela Folha de São Paulo em 27/5/2022, relativo à morte de Genivaldo de Jesus Santos em Umbaúba, Sergipe, assistida em vídeo por todo o Brasil).

Os termos “circunstâncias”, “delito de desobediência” “legitimidade no uso da força”, “fatalidade”, “ação policial legítima”, “mal súbito” utilizados no boletim dos policiais que assassinaram Genivaldo, numa viatura policial transformada em câmara de gás, não retrata apenas o nível de degradação profissional, humana, moral e ética que autoridades de nosso País expõem à luz do dia em episódio determinado. Há algo além disso a ser constatado.

Qualquer pessoa minimamente informada não precisa de mais do que alguns minutos para listar – de memória e sem o auxílio do google – de dez a vinte casos de barbárie explícita ocorridos nos últimos tempos. Todos, invariavelmente, tratados como exceção do que seria um convívio social aceitável, mas que justamente por sua repetição escancaram o que na verdade significam: um elemento constituinte de um projeto de civilização.

O assassinato do músico negro Evaldo dos Santos – que sai de casa com a família e é fuzilado com 80 tiros por soldados do Comando Militar do Leste, no Rio de Janeiro, e junto com ele morre o catador de material reciclável Luciano Macedo, que tenta socorrê-lo – não é um acidente ou mesmo exceção a ser lamentada e punida. É parte de um modelo civilizatório.
Assim como o assassinato de João Alberto Silveira Freitas, também um homem negro, que após um desentendimento com uma funcionária é barbaramente espancado e morto por dois seguranças brancos (um deles PM) no supermercado Carrefour, em Porto Alegre, no Rio Grande do Sul, na véspera do Dia da Consciência Negra.
A barbárie constituinte deste projeto também mata Aluísio Sampaio, presidente regional do Sindicato dos Trabalhadores na Agricultura Familiar (Sintraf), assassinado em Altamira, no Pará, com vários tiros na cabeça, próximo à BR-163. Ele já havia denunciado à Polícia as ameaças de morte que vinha recebendo devido à sua luta em defesa dos agricultores familiares com os grileiros armados até os dentes da região.
O mesmo elemento constitutivo desta civilização produz uma série de ataques, que se transforma na maior chacina já registrada no estado de São Paulo, que resulta em 17 execuções sumárias e sete pessoas feridas em Osasco e Barueri, ao lado da maior e mais rica capital brasileira. Denúncia do Ministério Público de São Paulo afirma que PMs e outros agentes de segurança pública integram o grupo de extermínio criado para vingar o assassinato de um PM e um guarda municipal mortos dias antes na região.
Vítima deste mesmo projeto de civilização, Zezico Rodrigues Guajajara, liderança indígena da Nação Guajajara, é assassinado a tiros no Maranhão. A denúncia é do Conselho Indigenista Missionário. Zezico era um dos líderes da Terra Indígena Araribóia, diretor do Centro de Educação Escolar Indígena Azuru, professor há 23 anos e há anos denunciava a ação dos grileiros de terra. Seu corpo foi encontrado crivado de balas na estrada da Matinha, próximo à sua aldeia, Zutiwa, no município de Arame (MA).
Uma “operação policial” no Jacarezinho, no Rio de Janeiro, que segue a cartilha deste mesmo projeto de civilização, comandada pela Polícia Civil, mata 28 pessoas e se torna a chacina com maior número de mortos na história da cidade. Meses depois, policiais civis derrubam a marretadas um memorial em homenagem aos mortos naquela operação, sob o argumento de que o monumento não teria sido aprovado pela Prefeitura.
Em seu levantamento anual, “Conflitos no Campo Brasil 2021”, a Comissão Pastoral da Terra demonstra que a mesma barbárie constituinte do modelo de ocupação do campo no Brasil contabiliza 1.768 ocorrências, uma média de 34 por semana. São 35 os assassinatos no ano, sendo dez de lideranças indígenas e três de quilombolas. As ocorrências são caracterizadas por conflitos relativos ao uso da terra, acesso à água e ao trabalho escravo.


A mesma barbárie constitutiva deste modelo faz com que moradores retirem os corpos de oito pessoas de um manguezal no bairro do Salgueiro, em São Gonçalo, região metropolitana do Rio de Janeiro. A Polícia Militar anuncia ter entrado em “confronto com suspeitos”, um dia depois de um policial militar ter sido morto durante um patrulhamento. Dos oito mortos, dois não tinham passagem pela polícia. A vice-presidente da Comissão de Direitos Humanos da OAB-Rio, Nadine Borges, diz que os corpos apresentavam sinais de tortura e que a ação foi uma chacina.
Mais uma “operação policial” constitutiva deste modelo, desta vez na Vila Cruzeiro, no Rio de Janeiro – realizada pela Polícia Militar e pela Polícia Rodoviária Federal com a justificativa de prender traficantes – resulta na morte de 23 pessoas, incluindo a cabeleireira Gabrielle Ferreira da Cunha, que estava dentro de sua casa, na comunidade vizinha da Chatuba, quando foi atingida por um tiro.
A lista é imensa, é nacional e é cotidiana. Seu tamanho, dimensão territorial e permanência demonstram que já passou da hora de pararmos de tratá-la como um defeito, uma exceção, um problema que pode e deve ser corrigido com novas políticas públicas, protocolos, medidas regulatórias ou mesmo através de punições, sejam brandas ou aquelas que nunca chegam.
Longe de ser exceção, a barbárie está paulatina e cotidianamente demonstrando ter se transformado em regra social que busca permanente legitimidade. Tal qual os óculos que usamos, isso está tão perto de nossos olhos que não a enxergamos como parte constituinte desta civilização. Enxergar a barbárie como parte integrante do modelo civilizatório em que estamos metidos parece ser o primeiro passo e única forma de superarmos a verdadeira tragédia em que estamos mergulhados, principalmente os mais pobres, os negros, os índios, as mulheres.
É urgente substituirmos o olhar de espanto e indignação frente à inaceitável violência que mata Genivaldo, Evaldo, João Alberto, Aluísio, Zezico, Gabrielle, assim como os 17 mortos em Osasco e Barueri, os 28 no Jacarezinho, os 8 de São Gonçalo, os 23 na Vila Cruzeiro e os demais que a sua memória consiga resgatar. Seguir estranhando a ocorrência destes fatos, mesmo que seja uma estranheza indignada, como se fossem pontos fora da curva, é como construir uma cortina de fumaça que tenta esconder a trágica constatação de que a barbárie é alicerce, combustível e oxigênio deste modelo de sociedade. Superar a barbárie exige enxergá-la como verdadeiramente é. E ter claro o papel imprescindível que ela cumpre na perpetuação do modelo.

Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Jornalistas Livres

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