Olá, caro leitor.
Prazer em tê-lo por aqui. Meu nome é Caio Coletti, e eu acredito no cinema. Não tenho o costume de me apresentar assim no começo de textos, e já há algumas semanas tenho escrito todas as sextas-feiras para o Jornalistas Livres sem fazê-lo, mas dessa vez achei propício. Durante essa semana, esbarrei com uma discussão complexa e fascinante nas redes sociais: o cinema tem impacto político? É só espelho que condena a nossa sociedade, ou é também martelo que molda a nossa realidade?
Meus 13 anos de pura paixão por essa forma de arte me dizem, instantaneamente, que o cinema é as duas coisas. Como manifestação artística, ele se enraíza e se entrelaça à nossa narrativa social, e serve não só para nos mostrar, agora e no futuro, qual é o estado da sociedade em que vivemos, como para incitar e provocar à ação. Filmes mudam pessoas, e pessoas mudam o mundo. É um processo lento, mas ignorá-lo é empobrecer imensamente a nossa percepção social.
Tome como exemplo o grande assunto dessa semana no plano internacional: a ordem executiva assinada pelo presidente dos EUA, Donald Trump, que foi recebida como uma proibição da entrada de imigrantes muçulmanos no país. Efetivamente, a ordem designa que imigrantes oriundos de sete países do Oriente Médio, todos de maioria muçulmana, não podem entrar nos EUA pelos próximos 120 dias. Além disso, a entrada de imigrantes sírios foi indefinidamente proibida, e o programa de aceitação de refugiados suspenso.
A ordem foi criticada tanto por seu conteúdo quanto por sua implementação, aparentemente mal-planejada pela administração Trump – um garoto de 5 anos, por exemplo, foi detido e algemado em um aeroporto americano, assim como um senhor de meia idade que trabalhou com o exército dos EUA no Iraque, e uma idosa que é portadora do Green Card desde 1997. Os agentes de imigração nos aeroportos não sabem exatamente o que a ordem executiva do presidente implica, e vários juízes por todos os cantos dos EUA estão usando a autonomia dos estados para bloquear ou limitar a sua efetividade.
O público também não ficou feliz com a ordem do presidente. Protestos espontâneos apareceram aos montes pelos aeroportos dos EUA e ao redor do mundo, como aconteceu na semana passada com a Marcha das Mulheres contra Trump, e mutirões da advogados ficaram a postos nos terminais para ajudar imigrantes que iriam lidar com uma recepção bem mais hostil do que aquela que esperavam.
E sim, frente a tudo isso, você pode me achar tolo por dizer que o cinema tem algumas respostas, mas dê uma chance a dois filmes: Brooklyn (2015), de John Crowley; e Invasão Zumbi (2016), de Sang-ho Yeun.
Cinema como história comparada
Em Brooklyn, que foi indicado a 3 prêmios no Oscar (incluindo Melhor Filme), uma jovem irlandesa de nome Eilis se muda para os EUA em busca de maiores oportunidades do que aquelas que encontraria em sua sonolenta cidade litorânea. Lá, ela conhece o ítalo-americano Tony, se apaixona, e começa a ver uma possibilidade real de construir uma vida – ao visitar a Irlanda sob circunstâncias inesperadas, no entanto, ela percebe a solidão da mãe, e conhece outro pretendente, Jim. O dilema entre os dois homens na vida de Eilis serve como metáfora para a decisão entre o confortável e o arriscado, e traduz uma angústia muito típica do imigrante.
Brooklyn enfrentou críticas na época de seu lançamento por retratar a experiência imigrante de forma suave – ninguém no filme é adversário ou antagonista de Eilis, e o conflito dramático é mais interno do que externo. Como brincou o roteirista Nick Hornby, Brooklyn é “um filme sobre pessoas sendo legais umas com as outras”. Tudo isso é verdade, mas o que essas análises perdem na ansiedade de condenar o filme é uma reflexão do porquê a experiência de Eilis como imigrante é tão desimpedida, por assim dizer.
O filme se passa durante os anos 1950, na explosão industrial americana do Pós-2ª Guerra, e o governo americano precisava de imigrantes para preencher a mão de obra de um país em plena construção. É emblemática a experiência ítalo-americana, e é talvez por isso que o filme coloque Tony em cena, mas diversos países da Europa, especialmente os mais ostracizados pela guerra, mandaram jovens trabalhadores para os EUA, que justamente nessa época ganharam a fama de “terra da oportunidade”.
Em certa cena de Brooklyn, Eilis visita uma igreja comandada por um pastor irlandês, e acaba ajudando a alimentar moradores de rua, muitos deles imigrados da mesma terra que ela, largados à miséria após fazerem sua parte na construção da nação. Após o jantar, um dos imigrantes canta uma típica canção irlandesa, e o olhar da atriz Saoirse Ronan, que está excepcional durante todo o filme, traduz um coração quebrado que vai muito além da saudade de casa. Eilis aceita a bagagem da história de seu povo nos EUA e entende que aquele sentimento complicado de ser um “peixe fora d’água” nunca vai passar.
Como jornada emocional, Brooklyn é universal, mesmo que não o seja como experiência concreta. Como documento de história comparada, é mais valioso ainda, por que faz nas entrelinhas a pergunta essencial: se vocês queriam imigrantes antes, por que não querem agora?
Cinema como metáfora
Invasão Zumbi, que ganhou um título estranhamente explícito no Brasil (o original é apenas Trem para Busan, uma cidade coreana), é um terror de ação que continua uma longa tradição de metáfora social no subgênero. Afinal, esse é um mito que nasceu com A Noite dos Mortos-Vivos (1968), uma pouco velada crítica à paranoia comunista que assolava os EUA durante a Guerra Fria. O filme de George A. Romero brincava com o medo político dos “agentes disfarçados” do regime russo ao mesmo tempo em que postulava que deveríamos ter mais medo de nós mesmos do que dessas estranhas e elusivas criaturas.
Em Invasão Zumbi, acompanhamos um egoísta trabalhador do mercado financeiro, Seok Woo, que embarca em um trem para a cidade de Busan com a filha, Soo-an, a fim de visitar a mãe da menina, de quem é divorciado. O problema é que, durante a viagem, o apocalipse zumbi começa – e, presos no claustrofóbico ambiente do trem, Seok Woo, Soo-an e os outros passageiros precisam encontrar uma maneira de se salvarem de situações cada vez mais angustiantes.
O filme de Sang-ho Yeon é eficiente como entretenimento: com 118 minutos, parece ser muito mais longo, porque coloca o espectador em estado de alerta e é capaz de inventividade infinita quanto às situações precárias em que pode colocar seus protagonistas. Como metáfora, no entanto, é ainda mais potente – se para Romero os zumbis representavam a percebida ameaça do comunismo, para Yeon eles representam o terrorismo, e mais especificamente o terrorismo islâmico. Assim como Romero, no entanto, o diretor coreano aplica uma esperta reviravolta quanto ao vilão de seu filme.
Conforme o filme se aproxima do terceiro ato, passamos a odiar menos os zumbis, e mais Yong-Suk, que surge como um oficial do governo paranoico que usa de retórica tristemente familiar para jogar grupos de sobreviventes uns contra os outros. Alimentado por seu próprio medo, Yong-Suk convence um grupo de personagens secundários a trancar os protagonistas para fora do vagão seguro em que estavam abrigados, desconsiderando divisões de famílias e qualquer tipo de solidariedade humana no processo.
Não dá para dizer que o diretor e roteirista Yeon fez desse vilão um agente governamental por coincidência. Com a retórica anti-imigração crescendo no mundo todo, o sul-coreano encontrou uma boa oportunidade para nos mostrar, em um contexto ficcional, como essa lógica desumana funciona. A barreira entre um vagão de trem seguro e outro infestado por zumbis (que, vale lembrar, servem de “substitutos” para os terroristas nessa história) parece mais real para quem vê, e para quem está desde o começo mergulhado na perspectiva dos protagonistas, do que a fronteira entre dois países.
Como metáfora, o cinema tem poder de nos fazer ver o que talvez não conseguíssemos no caos do mundo real. Não muito diferente do jornalismo, ele pega uma multiplicidade de vozes e as organiza em uma narrativa em que elas se tornam mais fáceis de compreender. O cinema, às vezes, é instrumento bruto para forçar empatia na mente de quem não a pratica muito no mundo real – se for capaz de mudar uma opinião, afetar uma atitude ou adicionar um número em qualquer luta que seja, já está mudando o mundo.
*Caio Coletti é um jornalista de Itatiba (SP), formado na PUC-Campinas. Colaborador do Taste of Cinema e do Jornalistas Livres.
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