Por RODRIGO PEREZ OLIVEIRA, professor de História na Universidade Federal da Bahia
A vitória de Donald Trump nas eleições presidenciais dos EUA aqueceu de vez o debate a respeito daquilo que se convencionou chamar de “identitarismo”. A temperatura das discussões já estava alta, com a crescente onda de críticas formuladas por intelectuais e lideranças políticas progressistas. Definitivamente, o debate veio para ficar. As práticas de cancelamento mobilizadas por alguns setores dos ativismos identitários já não têm a mesma eficiência.
Minha pretensão neste ensaio é colaborar com essa discussão, apontando aquele que me parece ser o principal equívoco teórico das militâncias identitárias: a confusão entre os conceitos “privilégio” e “direitos não universalizados”, o que tem desdobramentos catastróficos no plano das práticas políticas. Antes de desenvolver meu argumento, é importante definir o que é o tal “identitarismo”.
A politização das identidades é algo tão antigo quanto a própria atividade política. Onde existem seres humanos vivendo coletivamente, veremos identidades sendo politizadas. Não existe o lugar da “não-identidade”. O que convencionamos chamar de “identitarismo” pode ser definido como uma modalidade específica de politização das identidades que surgiu nos EUA ao longo da segunda metade do século XX, sendo caracterizada pela expressão política de identidades ontologizadas, com os ativistas silenciando, consciente ou ingenuamente, sobre as circunstâncias sociais e históricas que condicionam a construção identitária.
Primeiro, à esquerda, com as “identidades dissidentes” de raça e gênero (pessoas negras, mulheres e lgbts) chamando atenção para o fato de que a exploração do trabalho não atinge igualmente todas as pessoas. Estava instituído, assim, o paradigma da diferença no campo político da esquerda, que desde o século XIX reivindicava o paradigma da universalidade. A resposta da direita também assumiu a gramática identitária, com as identidades hegemônicas (masculina, branca heterossexual e cristã) se organizando como movimento político/eleitoral, o que explica, em parte, a vitória de Donald Trump nos EUA e a força do bolsonarismo no Brasil.
Não seria exagerado dizer que, hoje, os embates políticos são travados entre formulações identitárias rivais, com o identitarismo de direita sendo politicamente mais forte porque é mais eficiente em dialogar com as percepções de mundo das maiorias numéricas. Obviamente, esse é um trunfo muito importante nas modernas democracias de massa, onde têm o direito de governar aqueles que vencem eleições. Temos, então, um dilema para o qual as forças políticas progressistas vêm demonstrando dificuldade em apresentar respostas eficientes: como conquistar o apoio da maioria?
Sou muito cético de que esse impasse possa ser resolvido nos termos adotados pelos identitarismos de esquerda, que costumam tomar como “privilégios” aquilo que, na verdade, são direitos não universalizados.
Por exemplo: ser tratado com respeito pela autoridade policial, andar na rua sem se preocupar com o risco do assédio sexual ou do estupro, não ser afetado por nenhum tipo de preconceito de raça e gênero. Nada disso é “privilégio”, mas sim direitos que não foram universalizados para mulheres, pessoas negras e lgbts.
Privilégio é o latifúndio, é a concentração de renda, são os supersalários dos parlamentares e da elite do Poder Judiciário, é o lobby que permite que as grandes corporações sequestrem o Estado, é a estrutura tributária que não taxa as grandes fortunas.
Privilégios devem ser abolidos e direitos devem ser universalizados. São duas coisas bastante diferentes.
Ao confundir privilégios com direitos não universalizados, os identitarismos de esquerda incorrem em um equívoco conceitual que compromete toda sua atuação política e isso ajuda a explicar o atual ciclo de derrotas que vem sendo imposto às forças políticas progressistas.
É certo que os milhares de trabalhadores homens não sofrem na própria pele os efeitos do sexismo e do racismo, mas convivem com todos os outros sofrimentos que a acumulação capitalista impõe às populações empobrecidas: precarização do trabalho, violência urbana, efeitos da catástrofe climática, péssima qualidade no transporte público, crescente degradação das condições de vida, restrição do poder de consumo, frustração, depressão, tristeza. Estatisticamente, essa parte da população é mais afetada pela violência urbana e mais vulnerável ao suicídio. Considerar que são “privilegiados” aqueles que vivem nessa situação é algo que não faz o menor sentido.
Ao tratar subalternizados como privilegiados, os identitarismos de esquerda aumentam a quantidade de adversários a serem enfrentados, transformando em inimigos aqueles que são diretamente interessados na vitória das lutas políticas emancipatórias, mesmo que não tenham clareza disso. E ainda colaboram para manter nas sombras os verdadeiros privilegiados. É provável que nem eu e nem vocês, leitores e leitoras, jamais tenhamos encontrado pessoalmente com alguém que seja, de fato, privilegiado. Essa gente não está andando nas ruas, não está na fila do supermercado ou no transporte público. Eles não frequentam os mesmos lugares que nós, não bebem o que bebemos, não comem o que comemos. Não sentem o frio e o calor que sentimos, não sentem o medo que nos aflige. A única experiência humana de sofrimento que ainda não conseguem contornar é a morte. Efetivamente, não vivem no mesmo mundo em que vivemos.
As direitas radicais entenderam perfeitamente que os homens pobres são o caminho para conquistar o apoio da maioria numérica, vencer eleições e chegar ao poder. Duplamente excluídos, pela realidade social e pelos ativismos políticos de esquerda, os homens pobres estão se vingando na cabine eleitoral, sozinhos com a urna, onde os tribunais de cancelamento não os alcançam.