Prender e confiscar bens são penas justas?

Por frei Gilvander Moreira¹

Ouvi o clamor do Povo escravizado contra seus opressores e conheço seus sofrimentos. Desci para libertar os escravizados do poder do imperialismo dos Egípcios e fazer vocês marcharem para uma terra fértil e espaçosa, terra onde corre leite e mel…” (Ex 3,7-8), bradou o Deus Javé, solidário e libertador, que caminha no meio dos Povos que lutam por libertação.

Novembro, mês da Consciência Negra, tempo oportuno para, de forma crítica, vermos que até os dias atuais acontecem ainda no Brasil relações sociais escravocratas se reproduzindo escamoteadas na precarização do trabalho com a prestação de serviços degradantes. Citando como exemplo os casos de trabalho análogo à escravidão em Fazendas e nas indústrias da construção civil e confecção principalmente, que absorvem mão de obra de migrantes internos e externos em fuga de países ou regiões em conflitos armados, por catástrofes climáticas e/ou em extrema pobreza. Pode-se citar também como forma de precarização do trabalho a chamada “uberização” cuja dependência do prestador de serviços às plataformas das empresas “Rhi tech”, que o submete, sem proteção de leis ou contratos de trabalho e vínculos trabalhistas, a situações de ambientes insalubres, perigosos e extenuantes por sua conta e risco. Portanto, as relações sociais escravocratas como as que se conheceram no passado do Brasil imperial evoluíram para o que se chama hoje em dia de escravidão moderna ou contemporânea.

É oportuno também nesse período das comemorações da Consciência Negra observar em que nível estão as lutas pela superação do capitalismo, máquina brutal de moer vidas, e as lutas pela construção de uma sociedade da “terra sem males”, com as pessoas libertadas e emancipadas. Dia 20 de novembro é dia de celebrarmos e recordarmos o Quilombo dos Palmares, com Zumbi, Dandara e todos/as os/as aquilombados/as que romperam com as relações sociais escravocratas de um Estado imperial, capitalista e racista e c construíram durante cerca de um século uma comunidade socialista, onde o coletivo e o comunitário eram a referência que orientava a atuação de todos/as. É tempo de fortalecermos o aquilombamento em todos os cantos e recantos, nas periferias sociais, no campo e na cidade. 

A escravidão moderna, ainda, infelizmente permeia os subterrâneos do mundo do trabalho provocando relações de dependência econômica do trabalhador explorado ao empregador desonesto. O exemplo do estouro de cativeiro nas vinícolas do estado do Rio Grande do Sul recentemente é mais uma aberração desse sistema que ainda investe na exploração pela forma mais cruel que é a escravidão. Podemos citar outro caso emblemático envolvendo poderosos produtores de feijão e soja de Unaí, MG, que levou ao massacre de fiscais do trabalho que visavam estourar também cativeiro de trabalhadores reduzidos à condição de escravidão em Fazendas da família Mânica.

 Esses fiscais pagaram com a vida para a libertação desses trabalhadores. Em meados de outubro último (de 2024), foi noticiado de forma discreta por vários veículos da imprensa escrita, sem o aprofundamento que o assunto merece, que no processo movido pela Advocacia-Geral da União, o juiz da Justiça Federal, em Unaí, o Dr. André Dias Irigon, condenou os assassinos e os mandantes do massacre dos Fiscais a pagarem 30 milhões de reais para ressarcir ao Governo Federal os valores que este pagou como indenização às quatro famílias vítimas deste bárbaro massacre que ceifou a vida do motorista Ailton Pereira de Oliveira e dos três fiscais do Ministério do Trabalho, Eratóstenes de Almeida Gonçalves, João Batista Soares Lages e Nelson José da Silva, assassinados brutalmente em emboscada na zona rural do município de Unaí, na manhã do dia 28 de janeiro de 2004. 

No caso ocorrido em Unaí, MG, dos homicídios praticados no massacre dos Fiscais do Ministério do Trabalho, as condenações às penas privativas de liberdade juntamente com as penas de ressarcimento econômico pelos prejuízos causados às vitimas foram bem dosadas?

O Governo Federal pleiteou o ressarcimento de dinheiro que desembolsou para pagar indenizações às famílias das vítimas, os auxílios e as bolsas especiais pagos aos dependentes legais dos servidores do Ministério do Trabalho e Emprego, assassinados brutalmente durante ação fiscal no exercício do trabalho deles, incidindo juros e correção monetária. Os réus ainda foram condenados ao pagamento de honorários advocatícios, fixados em 10% do valor total da condenação.

O juiz federal, na decisão destacou: “As condutas dos criminosos causaram um dano não só às famílias dos servidores assassinados, mas também à Previdência Própria, que foi obrigada a arcar com as consequências dos atos, bem como à União, que pagou valores indenizatórios, antecipando-se às ações a serem movidas pelas famílias contra o próprio Estado, pedindo reparação dos danos.” Para além do ressarcimento aos cofres públicos, a condenação busca pedagogicamente inibir outros massacres de agentes públicos federais no exercício de suas competências, pois aponta que, além da prisão, poderão ter prejuízos econômicos vultosos. Ou seja, o crime poderá custar caro. Pensaram que pagando 55 mil reais para os jagunços e ignorando que não existe crime perfeito – “marcas e indícios são sempre encontrados” -, além da prisão, terão que pagar 30 milhões de reais, se não conseguirem derrubar a decisão do juiz de 1ª instância da Justiça Federal nos muitos recursos que apresentarão, até como manobras judiciais para ir empurrando com a barriga o pagamento que a decisão judicial obriga. 

Os mandantes e assassinos já recorreram da condenação em 1ª instância para pagar os 30 milhões de reais e “com recursos intermináveis” podemos prever que poderá durar mais dez ou vinte anos até transitar em julgado a decisão de 1ª instância. Com esta morosidade, o Poder Judiciário na prática atua fomentando a violência e a reprodução de casos de escravidão contemporânea. Prova disso é que o estado de Minas Gerais há mais de dez anos aparece no livro anual da Comissão Pastoral da Terra Conflitos no Campo Brasil como estado campeão em trabalho escravo. A Lista Suja do Trabalho Escravo Contemporâneo do Ministério do Trabalho está crescendo. Recentemente 176 nomes de empresários latifundiários – nomes dos escravocratas, CNPJ/CPF, nome da Fazenda, município e estado – foram inseridos na Lista Suja que já conta com 727 nomes. 

Sobre o massacre dos fiscais, que ensanguentou o Noroeste de MG e todo o Brasil, perpetrado contra trabalhadores que estavam de forma justa e idônea cumprindo sua missão de vistoriar a existência ou não de trabalho escravo nas fazendas dos Mânicas, temos que recordar e jamais esquecer que um dos assassinos teve a pena prescrita, porque o julgamento demorou demais para ser realizado. Só foi realizado o julgamento dos jagunços em 2013, nove anos após o massacre; os quatro mandantes só foram julgados 13 anos após, em 2015. Somente após 20 anos do massacre, com recursos e manobras jurídicas intermináveis, com a lentidão absurda do Judiciário aconteceu a prisão de três mandantes, sendo que um, o Norberto Mânica, continua foragido. Até quando? Os irmãos Mânica Antero e Norberto foram condenados a 100 anos de prisão como mandantes do crime e recorreram em liberdade por quase 20 anos. Conseguiram redução da pena de reclusão para menos de 90 anos. Os empresários José Alberto de Castro e Hugo Pimenta foram condenados por terem contratado os jagunços e também ficaram livres por quase 20 anos. Recordemos que o Antero Mânica declarou em vídeo apoio à reeleição de Jair Bolsonaro. Se este político de extrema-direita tivesse sido reeleito, dificilmente Antero estaria preso cumprindo a pena de 89 anos. 

Por que os latifúndios dos Mânicas, onde foi constatado trabalho análogo à escravidão – Várias multas foram expedidas após vistorias nas fazendas deles – não foram caracterizados como latifúndios que não cumprem sua função social e desapropriados para fins de reforma agrária, se o Art. 243 da Constituição Federal de 1988 prescreve que “as propriedades rurais e urbanas de qualquer região do País onde forem localizadas culturas ilegais de plantas psicotrópicas ou a exploração de trabalho escravo na forma da lei serão expropriadas e destinadas à reforma agrária e a programas de habitação popular, sem qualquer indenização ao proprietário e sem prejuízo de outras sanções previstas em lei…”? O Art. 243 da CF/88 está respaldado pela Emenda Constitucional nº 81, de 2014, que diz no seu Parágrafo único: “Todo e qualquer bem de valor econômico apreendido em decorrência do tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins e da exploração de trabalho escravo será confiscado e reverterá a fundo especial com destinação específica, na forma da lei.” 

E a Lei 10.803, de 11/12/2003, que diz: “Art. 1º do art. 149 do Decreto-Lei no 2.848, de 07/12/1940, passa a vigorar com a seguinte redação: “Art. 149. Reduzir alguém a condição análoga à de escravo, quer submetendo-o a trabalhos forçados ou a jornada exaustiva, quer sujeitando-o a condições degradantes de trabalho, quer restringindo, por qualquer meio, sua locomoção em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto: Pena – reclusão, de dois a oito anos, e multa, além da pena correspondente à violência. § 1º – Nas mesmas penas incorre quem: I – cerceia o uso de qualquer meio de transporte por parte do trabalhador, com o fim de retê-lo no local de trabalho; II – mantém vigilância ostensiva no local de trabalho ou se apodera de documentos.”

Embora a expropriação de latifúndios onde foi encontrada situação de trabalho escravo e sua destinação à reforma agrária esteja prevista no artigo 243 da Constituição Federal, ainda não foi posta em prática, por ausência de regulamentação pelo Congresso Nacional. Ou seja, um tipo de pena que de fato atingiria o poder econômico de quem comete crimes continua sendo letra morta na Constituição Federal e com um Congresso Nacional com 292 deputados integrando as bancadas da bala, do boi e do agronegócio, essa regulamentação não será feita. Dedução óbvia: quem vota em empresário do poder econômico, midiático ou da fé está votando contra a classe camponesa e está sendo cúmplice da violência no campo que continua por meio de despejos, ameaças de morte, assassinatos e a hedionda impunidade para quem mata ou manda matar.

A Defensoria Pública da União (DPU) entrou com ação judicial no Supremo Tribunal Federal exigindo que o STF obrigue o Congresso Nacional a regulamentar o Art. 243 da CF/88 que prescreve que as propriedades e bens de proprietários onde for constatado trabalho escravo sejam expropriados e confiscados. A DPU propõe que os bens apreendidos sejam direcionados à reforma agrária e a programas de habitação popular, como forma de estimular a justiça social. O julgamento está parado no STF, que assim se faz cúmplice da reprodução do trabalho escravo também. 

No entanto, o STF decidiu no que tange ao descumprimento da FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE em caso de fazendas onde se constata trabalho escravo. O STF validou, por unanimidade, dispositivos da Lei da Reforma Agrária que permitem a desapropriação de terras que, mesmo produtivas, não estejam cumprindo a sua função social. A função social da terra é atingida quando o produtor cumpre as demais legislações pertinentes à atividade agrária, como as leis trabalhistas, ambientais e tributárias.

À vista de tudo que foi acima relatado, a sociedade não pode aceitar como normal que o sistema político e o regime econômico adotado pelo Brasil permitam ou façam vistas grossas a essa hedionda forma de escravidão moderna. As penas para insidiosos crimes como o massacre dos fiscais não podem ser apenas a restrição de liberdade com a pena de prisão; esta não pode ser a única forma de repressão à escravidão moderna. A sociedade deve e tem o direito de exigir como imprescindível a indenização pelos estragos cometidos, pois, desse modo não só afetará o poder econômico dos criminosos, mas também desmantelará essas organizações empresariais que se utilizam de métodos criminosos para o enriquecimento ilícito à custa de vidas humanas. Por fim, essas riquezas conquistadas pelas formas mais cruéis e injustas devem ser devolvidas para as vítimas e/ou aplicadas para a erradicação da pobreza e a redução das desigualdades sociais que são objetivos fundamentais do Estado brasileiro, prescrito no Art. 3º, & 3 da Constituição Federal, de 1988. 

Em suma, a restrição de liberdade, a prisão, não pode ser a única pena justa a ser imputada a criminosos, mas também a indenização pelos estragos cometidos, expropriação e confisco de bens são imprescindíveis, pois afetarão o poder econômico geralmente acumulado de várias formas injustas.  

5/11/2024.

¹Frei e padre da Ordem dos carmelitas; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico de Roma, Itália; doutor em Educação pela FAE/UFMG; assessor da CPT, CEBI, Movimentos Sociais e Ocupações.  

E-mail: [email protected]www.freigilvander.blogspot.com.br      –       www.gilvander.org.brwww.twitter.com/gilvanderluis        –     Face book: Gilvander Moreira III – Canal no You Tube: Frei Gilvander luta pela terra e por direitos

² Trabalhadores em situação vulnerável expõem a precarização dos direitos trabalhistas no Brasil. Organização Internacional do Trabalho aponta que desaceleração da economia pode forçar aumento de aceitação de empregos degradantes, intensificando desigualdade; entenda o que é precarização do trabalho em: https://www.conectas.org/noticias/trabalhadores-em-situacao-vulneravel-expoem-a-precarizacao-dos-direitos-trabalhistas-no-brasil/

Obs.: As videorreportagens nos links, abaixo, versam sobre o assunto tratado, acima.

1 – Trabalho Escravo Contemporâneo: É preciso romper as correntes para garantir vida digna – 28/01/2021

2 – Palavra Ética na TVC-BH: Barragem se rompe e Trabalho escravo contemporâneo. Por Gilvander-13/6/2020

3 – Mineradora SAM, no norte de MG: política escravocrata de “pão com circo”! Fora, SAM dos Territórios!

4 – História da Sesmaria de Bicas, do Cemitério dos Escravos e de Santa Luzia, MG, na Romaria das Águas

5 – Fora, Rodoanel do “Cemitério dos Escravos”, em Fechos, Pinhões, Santa Luzia, MG! – Vídeo 1 -02/11/21

6 – Palavra Ética na TVC/BH: Coronelismo, Vale S/A matou Júlio César e “Trabalho Escravo, Não!” -06/3/21

7 – História de vida do posseiro Carramanchão, escravo durante 31 anos, Manga, norte de MG – 18/7/2010

Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Jornalistas Livres

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