Ezequiel: falsos profetas tapeiam o povo

Frei Gilvander Moreira¹

Em 2024, em setembro, mês da Bíblia, as comunidades cristãs são convidadas a refletir e a aprofundar sobre e a partir do livro de Ezequiel, profeta e sacerdote. Eis um 5º pequeno texto que busca alimentar a reflexão e a prática cristã de forma justa e libertadora. Ezequiel foi exilado junto com a elite judaica para a Babilônia, mas não escravizado como o “resto” do povo, os sem-terra, os deserdados, que ficaram na Palestina, mas sem acesso à terra. O processo de libertação da terra dos que foram jogados no cativeiro foi sofrido, pois “comerão o pão com angústia e beberão água com pavor” (Ez 12,19), profetizava Ezequiel. Enquanto a elite dominante continuar desgovernando o povo, Javé não será reconhecido (Ez 12,20). Todo sistema econômico e político injusto tenta se justificar com ideologia religiosa. 

Ezequiel repudia as visões e presságios mentirosos (Ez 24), os que vão empurrando o povo com a barriga, de ilusão em ilusão. No capítulo 12, Ezequiel enfatiza que a incompreensão de Deus está levando o povo ao exílio, à deportação. Os que estão no poder, ao serem alertados sobre as consequências de suas más ações, tentam se justificar alegando que não terão consequências imediatas e que, talvez, ocorram, mas em tempo muito distante. O profeta Ezequiel insiste que as consequências serão muito mais rápidas do que se pensa e pesadas. 

Em Ez 13, em um olhar panorâmico, Ezequiel se volta contra os “profetas de Israel” que profetizam segundo “o seu próprio coração/espírito e são cegos” (Ez 13,3). “Ai dos profetas insensatos, que são como raposas no meio de ruínas” (Ez 13,3-4), porque não vigiaram e nem construíram resistência (Ez 13,5). São mentirosos ao dizerem “Oráculo de Javé”, pois têm visões vãs e promessas mentirosas. Javé não tolera os falsos profetas com falsas visões. Eles devem ser excluídos do Conselho do Povo e não terão direito de retornar do exílio (Ez 13,9). Os falsos profetas desencaminham o povo com falsas propostas de paz com apaziguamento que não passam por relações sociais da ética e da justiça (Ez 13,10). Não é com simples reboco que se conquistará paz como fruto da justiça. É preciso reconstruir as relações sociais e não apenas remendar (Ez 13,10). A profecia profunda de Ezequiel diz que reboco não terá força de resistir a chuva torrencial (Ez 13,13) e que “o muro está demolido e os alicerces ficarão à vista e vós perecereis debaixo dos escombros” (Ez 13,14). 

Profecia de reboco é idolatria, é falsidade, é mais do mesmo, porque esconde as rachaduras do sistema capitalista e do mercado idolatrado e também das idolatrias religiosas. Esperança alienante é ilusão, é farsa. 

As falsas profetisas também são denunciadas com veemência pela profecia de Ezequiel, pois elas seduzem o povo pela aparência e são venais, “se vendem por um punhado de cevada, por uns pedaços de pão” (Ez 13,19a) e “condenam à morte quem não deve morrer e poupam a vida de quem deve morrer” (Ez 13,19b). Ezequiel tolera mais “o povo que ouve as mentiras” (Ez 13,19) do que as falsas profetisas, pois estas têm mais poder de violentar o povo do que o povo quase sem poder. De forma enfática diz a profecia de Ezequiel sobre as falsas profetisas: “Libertarei o meu povo das vossas mãos e sabereis que eu sou Javé” (Ez 13,23). 

Olhando mais de perto, aqueles e aquelas que são lideranças religiosas estão oprimindo e explorando o povo tanto quanto ou mais que o rei e seus comparsas. Contexto de teocracia. Ez 13 é um dos muitos textos bíblicos que mostram o perigo de lideranças religiosas que se apresentam como mensageiras de Deus, mas na prática tosquiam o povo. 

Em uma visão panorâmica, Ez 14 denuncia com veemência a idolatria praticada por “alguns anciãos de Israel” (Ez 14,10), o que deixa Deus irado (Ez 4). Quem está enleado em idolatria não tem moral para se dirigir a Deus. Convertam-se de sua idolatria! Só no primeiro semestre de 2024, no Brasil, mais de 80 pastores foram presos por vários crimes. 

Em Ez 14,13-23, Ezequiel sintetiza os efeitos da profecia apresentada em Ez 12,1-14,12, ao ponderar que mesmo com o exílio de quase todo o povo e a deportação, não ficará apenas terra arrasada, mas a esperança continuará de pé, porque “um resto” sobreviverá e assim como Noé, Daniel e Jó, heróis populares que ficaram no imaginário do povo como fiéis e justos, alguns manterão acesa a chama da profecia. 

Refletindo a partir da profecia de Ez 12-14, é necessário reconhecer que por trás dos textos proféticos de endurecimento há o mistério da liberdade humana e da soberania divina, que é o amor infinito de Deus. Em relação a Deus, há uma consciência profética que as obras e a Palavra de Deus não podem permanecer sem efeito (cf. Is 55,11), são sempre eficazes (diferente de eficiente). Se não produzem imediatamente a conversão, devem amadurecer a pessoa (ou o povo) para um novo encontro com a verdade, o que, em última análise, não exclui a possibilidade de conversão. 

Ezequiel enfatiza que a profecia se cumprirá para que os destinatários da profecia fiquem “sabendo que há um profeta aqui contra eles” (Ez 2,5; 33,33), para que “saibam que Javé falou” (Ez 5,13), “que foi Javé que tirou de diante das nações” (Ez 21,10) e para que “fiquem sabendo que eu sou Javé”, repetido dezenas de vezes para enfatizar. No livro de Ezequiel, por 53 vezes se repete “para que fiquem sabendo que eu sou Javé”. Por que e para que tanta repetição? Esta repetição é um refrão repetido à exaustão ao longo dos 48 capítulos de Ezequiel. 

Indica várias coisas. Primeiro, que a profecia de Ezequiel acontece no meio de uma brutal idolatria, sendo apego a outros deuses ou, pior, manipulação do Deus Javé. Neste contexto de idolatria a todo vapor, torna necessário afirmar e reafirmar a identidade do Deus da Aliança, que não é qualquer Deus, mas Javé, Deus solidário e libertador, o que ouviu o grito dos povos escravizados, desceu para libertá-los e se tornou companheiro de caminhada na luta por terra, pão e liberdade (Ex 3,7-9). Segundo, indica que Javé jamais abandona seus povos, marca presença constante e permanente no meio dos povos injustiçados, mesmo sendo muitas vezes ignorado e rejeitado. Terceiro, Javé jamais se omite diante das injustiças e nem se faz cúmplice dos esquemas de exploração e opressão que levam os povos à morte. 

Obs.: No próximo texto, o 6º, continuaremos refletindo a partir do Livro de Ezequiel, livro do Mês da Bíblia de 2024. 

9/7/2024

¹ Frei e padre da Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico, em Roma, Itália; assessor da CPT, CEBI, SAB e Ocupações Urbanas; prof. de “Movimentos Sociais Populares e Direitos Humanos” no IDH, em Belo Horizonte, MG. E-mail: [email protected] – www.gilvander.org.br – www.freigilvander.blogspot.com.br      –       www.twitter.com/gilvanderluis        –     Facebook: Gilvander Moreira III

Obs.: As videorreportagens no link, abaixo, versam sobre o assunto tratado, acima.

1 – Ezequiel, que tipo de Profeta e de Sacerdote? E nós? Vem aí o mês da Bíblia 2024. Por frei Gilvander

2 – Ezequiel: a glória de Javé com os deserdados da terra? – Mês da Bíblia 2024 – Por frei Gilvander – Vídeo 2 – Junho/2024

3 – Um Tom de resistência – Combatendo o fundamentalismo cristão na política

4 – Bíblia: privatizada ou lida de forma crítica libertadora? Por frei Gilvander, no Palavra Ética 

² Cf. Ez 6,7.10.13.14; 7,4.9.27; 11,10.12; 12,15.16; 13,9.21; 14,8; 15,7; 16,62; 20,38.42.44; 22,16.22; 23,49; 24,24.27; 25,5.7.11; 26,6; 28,22.23.24.26; 29,6.9.16.21; 30,8.19.25.26; 32,15; 33,29; 34,27.30; 35,4.9.12.15; 36,11.23.36.38; 37,6.13.14.28; 38,23; 39,6.7.22.23.28.

5 – Deram-nos a Bíblia. “Fechem os olhos!” Roubaram nossa terra. Xukuru-Kariri, Brumadinho/MG. Vídeo 5

6 – Bíblia, Ética e Cidadania, com Frei Gilvander para CEBI Sudeste

7 – CEBI: 43 anos de história! Centro Ecumênico de Estudos Bíblicos lendo Bíblia com Opção pelos Pobres

Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Jornalistas Livres

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