Ezequiel: “Quem não denuncia o injusto, cúmplice é”

O profeta Ezequiel, de Aleijadinho, no adro da Basílica de Congonhas, MG

Frei Gilvander Moreira¹

Vem aí o mês da Bíblia de 2024, setembro, sobre o Livro de Ezequiel. Nós do Centro Ecumênico de Estudos Bíblicos (CEBI/MG), buscando contribuir para a superação de interpretações fundamentalistas, literalistas e moralistas de textos bíblicos, publicamos, como fazemos anualmente há trinta anos, um livro texto-base com o título “LIVRO DE EZEQUIEL: reconstruir, sim, mas como?” e uma Cartilha Bíblica Popular com o título “Profecia de Ezequiel: da morte renasce a vida”, CEBI/MG, 2024. Eis aqui um 4º pequeno texto fragmento do livro acima. 

Ao comentar a cena da apresentação do menino Jesus ao templo, narrada em Lucas 2,22-40, o teólogo e biblista Marcelo Barros analisa: “O primeiro anúncio é dirigido a um sacerdote, no templo, de forma solene e junto ao lugar mais santo, o altar. Conforme esse evangelho, mesmo da religião ritual ainda pode nascer a profecia. Zacarias é símbolo do que ainda há de bom na religião: o evangelho diz isso ao salientar: Zacarias e sua esposa Isabel eram justos diante de Deus. Mas eram velhos e não tinham filhos. Ela era estéril. Talvez, ao dizer isso deles, o evangelho queira aludir que a religião sacerdotal é assim: é boa se se coloca do lado da justiça (eles eram justos) e mesmo assim é velha e estéril se não se abrir à profecia. No entanto, qual sacerdote de religião ritual adere realmente ao anúncio do nascimento de um profeta? Desde os tempos antigos do primeiro testamento, sacerdote nunca gostou de profeta. No tempo de Amós, o sacerdote Amasias tramou com o rei a morte do profeta Amós. Agora, vem um mensageiro de Deus e ao lado do altar do templo anuncia ao sacerdote que ele vai gerar um profeta… Será que sacerdote pode mesmo gerar profeta? Zacarias não acredita e fica mudo.”

Em Jer 39,1-18 está a narrativa segundo a qual a capital Jerusalém foi cercada em 587 antes da era cristã (a.E.C.) e caiu nas mãos do exército babilônico em 586 a.E.C. A palavra de Jeremias se cumpriu: a cidade foi incendiada, as fortalezas destruídas e a elite da população foi exilada. A profecia de Jeremias faz questão de dizer que “os mais pobres do povo, os que não possuíam nada, Nabuzardã os deixou na terra de Judá e deu-lhes vinhas e terra para cultivar” (Jer 39,10). De forma semelhante também narrado no apêndice ao livro de Jeremias: Só deixou ficar uma parte dos pobres da terra como trabalhadores das vinhas e pequenos lavradores” (Jer 52,16). Entretanto, a teologia detroronomista e o cronista oficial dizem que não ficou ninguém na terra. Na realidade, ficou um “resto” na terra prometida, os mais indesejados.

E a “profecia” de Ezequiel? Os capítulos 1 a 37 do livro de Ezequiel (Ez 1-37) foram escritos provavelmente na época do Exílio na Babilônia, de 587 a 538 antes da Era Cristã. Portanto Ez 12-14 são profecias do Exílio babilônico. Ezequiel como sacerdote pertencia provavelmente à elite que foi deportada para a Babilônia: rei, funcionários da corte monárquica. Não foram levados como escravos, mas como prisioneiros de guerra, para trabalhar para o império babilônico. Com frequência, no exílio, Ezequiel era consultado. Ezequiel não pertence ao “resto de Israel”, os sem-terra que ficaram na terra da Palestina. 

Ezequiel busca refazer a aliança do povo com Javé, infundindo um espírito de vida e um “novo coração”, “coração de carne”, não mais de pedra. Coração novo não vem do templo e nem do culto e de nenhuma instituição, mas vem do “resto”, os sem-terra e os que de forma radical questionam inclusive as propostas moderadas que “são mais do mesmo”. 

O profeta Ezequiel, como a maioria dos profetas de todos os tempos, não é chamado por Deus para cumprir missão no meio dos estranhos. “Tu não és enviado a um povo de idioma obscuro ou de língua estranha, mas à casa de Israel” (Ez 3,5). Observando atentamente o texto, o contexto de exílio e o pretexto, concluímos que Ezequiel foi enviado com missão para os da “casa de Israel”, “os seus”, “os exilados” (Ez 3,11.15), diríamos hoje para pessoas que se dizem cristãs, mas que são idólatras, pois têm o “coração endurecido” (Ez 2,4; 3,7; 36,26), um “coração de pedra” “povo que tem olhos para ver, mas não vê, tem ouvidos para ouvir, mas não ouve” (Ez 12,2). 

O processo de conversão do profeta Ezequiel foi dolorido e conturbado. Ele ficou “desolado por sete dias no meio dos exilados” (Ez 3,15), antes de compreender sua missão. Ezequiel fez a experiência de vida/Deus que na vida não pode haver espaço para a neutralidade e muito menos para a omissão, pois em uma sociedade estruturalmente desigual e forjada para reproduzir a injustiça, quem se omite ou fica neutro diante das injustiças, cúmplice se torna das injustiças. Por isso, “se tu não advertires o injusto de que ele está sendo injusto e por isso morrerá, eu pedirei contas de tua mão” (Ez 3,18), mas “se tu advertires o injusto sobre a violência que ele está praticando, você se salvará e ele será o responsável pela sua morte” (Ez 3,19). 

A devastação não é castigo de Deus, mas consequência das ações opressoras e exploradoras de um sistema de morte movido e reproduzido por que lucra e acumula riqueza e poder à custa da maioria do povo violentado. 

Em olhar panorâmico, em Ez 12, o profeta Ezequiel faz a experiência humana de que Deus está lhe dirigindo a palavra, chamando-o de “Filho do homem” ou “Criatura humana” (Ez 12,2.3.9.18.22.27), de forma enfática lhe dá a missão de profetizar, primeiro, por ação, atitude: jogar nas costas um saco com o que for possível levar e partir, “à vista do povo” – (isto é enfatizado se repetindo várias vezes!) – para o exílio por um buraco do muro da cidade sitiada. Será sinal de que o rei e seus funcionários também serão exilados. Deus lhe pede para cobrir o rosto para não ver a terra que será perdida (Ez 12,6.12). De fato, para o camponês que ama a terra e a tem como mãe, como “herança de Deus” (Ez 45,1; Dt 26,1-3; Gn 15,7-8; Sl 135,12), deixar a terra dói muito e cobrir o rosto pode ser um jeito de esconder as lágrimas para estar sendo empurrado para o exílio, onde, sem terra, será escravizado novamente como seus pais foram no Egito durantes muitos séculos sob o imperialismo dos faraós. 

Ezequiel faz um gesto profético dramático, mas não é compreendido pela parcela do povo que tinha o coração endurecido. Sob inspiração divina, Ezequiel tenta ajudar “o príncipe e os seus” a compreenderem que o gesto profético dele significava que todo o povo seria exilado, mas não compreendem. O rei, sua guarda e suas tropas também sofrerão as consequências da deportação e do exílio, mas “um resto escapará à espada, à fome e à peste” (Ez 12,16). Este “resto” será o pavio que não se apagará e terá a missão de contar a todos os povos todas as abominações, injustiças e violências que aconteceram sobre o povo (Ez 12,16).

Olhando mais de perto, para além das linhas, nas entrelinhas e no contexto, percebemos que Ez 12 aponta a profecia tendo missão árdua de atuar sempre na contramão da maioria e questionando quem está no poder. O predominante é que quem está no poder, como “o rei e os seus funcionários”, rejeite a profecia e apenas “um pequeno resto”, uma minoria abraâmica, terá a sabedoria de acolher os gritos proféticos e não deixará que o pavio se apague, pois serão a consciência libertária ao longo da história. Ez 12 nos faz lembrar a fábula rabínica do galo e o Morcego, que diz que o galo, mesmo na escuridão da noite, ele intui que virá uma nova aurora e canta para anunciá-la. Ou seja, o galo vê luz no meio da escuridão. Já o morcego, por outro lado, só consegue voar e circular na escuridão, pois a luz o cega. Assim também com a profecia, quem está agarrado a algum poder opressor fica como Ulisses amarrado no mastro do navio seduzido pelo canto da sereia da sociedade capitalista idolátrica e não consegue se libertar. 

Obs.: No próximo texto, o 5º, continuaremos refletindo a partir do Livro de Ezequiel, livro do Mês da Bíblia de 2024. 

2/7/2024

¹ Frei e padre da Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em , 2000. p. 118.Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico, em Roma, Itália; assessor da CPT, CEBI, SAB e Ocupações Urbanas; prof. de “Movimentos Sociais Populares e Direitos Humanos” no IDH, em Belo Horizonte, MG. Autor de livros e artigos. E “cineasta amador” (videotuber) com mais de 6.000 vídeos de luta por direitos no youtube, canal “Frei Gilvander luta pela terra e por direitos”. E-mail: [email protected] – www.gilvander.org.br – www.freigilvander.blogspot.com.br      –       www.twitter.com/gilvanderluis        –     Facebook: Gilvander Moreira

Obs.: As videorreportagens no link, abaixo, versam sobre o assunto tratado, acima.

1 – Ezequiel, que tipo de Profeta e de Sacerdote? E nós? Vem aí o mês da Bíblia 2024. Por frei Gilvander

2 – Ezequiel: a glória de Javé com os deserdados da terra? – Mês da Bíblia 2024 – Por frei Gilvander – Vídeo 2 – Junho/2024

3 – Um Tom de resistência – Combatendo o fundamentalismo cristão na política

4 – Bíblia: privatizada ou lida de forma crítica libertadora? Por frei Gilvander, no Palavra Ética 

5 – Deram-nos a Bíblia. “Fechem os olhos!” Roubaram nossa terra. Xukuru-Kariri, Brumadinho/MG. Vídeo 5

6 – Bíblia, Ética e Cidadania, com Frei Gilvander para CEBI Sudeste

7 – CEBI: 43 anos de história! Centro Ecumênico de Estudos Bíblicos lendo Bíblia com Opção pelos Pobres

Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Jornalistas Livres

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