por Paulo Nogueira Batista Jr.
Outro dia, fizeram-me a pergunta, inocente, quase rotineira: “Qual é afinal o principal risco que corremos?”. A intenção era provocar uma discussão sobre os dilemas do Brasil e os obstáculos com que se defronta o novo governo. Porém, outra coisa, completamente diferente, e mais urgente, me veio de pronto à mente: o risco de destruição do planeta e da vida humana na Terra. Não por causa da badalada crise climática, mas por outra crise bem mais imediata e mais destrutiva. Refiro-me ao risco de uma catástrofe nuclear, possível desdobramento da guerra na Ucrânia, e o consequente desaparecimento da humanidade. O planeta agradeceria, de certo, mas estaríamos todos liquidados.
Exagero? O brasileiro é um dos povos mais complacentes do planeta. Como todas as nações gigantes, o Brasil é propenso à introversão. Damos atenção apenas relativa, apenas seletiva, ao que ocorre em outros países. Além do mais, somos afortunados. Vivemos na América do Sul, uma região de paz, onde não se vê guerra há muito tempo. Temos boas relações com todos os nossos vizinhos de fronteira, sem exceção. E mais: ficamos razoavelmente preservados dos efeitos destrutivos das duas Guerras Mundiais do século 20. Por todos esses motivos, os brasileiros estão entre os menos alertas para o perigo que o mundo corre desde a invasão da Ucrânia pela Rússia em 2022.
Risco de guerra nuclear
Não é difícil, entretanto, perceber que existe mesmo risco de guerra nuclear. O conflito na Ucrânia envolve, direta ou indiretamente, as duas principais potências nucleares. A Rússia, diretamente. Os Estados Unidos, indiretamente, engajados em uma guerra por procuração em que os ucranianos lutam e morrem por eles. Para os Estado Unidos, o que está em jogo é nada mais nada menos do que o prestígio da sua hegemonia global, desafiada pela invasão da Ucrânia. A Rússia, por seu lado, enxerga na ação do Ocidente, na Ucrânia e em outros países, uma ameaça existencial, e tem dito isso aberta e repetidamente.
O ideal seria que os Estados Unidos fossem menos paranoicos quanto a ameaças à sua liderança mundial. E que a Rússia fosse menos paranoica quanto às ameaças que vêm do exterior. Mas essas paranoias têm raízes profundas. Os americanos estão acostumados a mandar e desmandar, desde a Segunda Guerra Mundial e, em especial, desde o colapso da União Soviética. Os russos, por seu lado, estão acostumados a invasões imperiais ocidentais profundamente ameaçadoras, notadamente a napoleônica e a hitlerista.
Estamos diante da maior ameaça de guerra nuclear desde a crise dos mísseis soviéticos em Cuba, no início dos anos 1960. É bem verdade que, ao longo das últimas décadas, Estados Unidos e União Soviética/Rússia se defrontaram em várias regiões do mundo sem chegar às vias de fato. Instalou-se, assim, a complacência. A guerra nuclear, impensável por seu potencial de destruição mútua, será sempre evitada, acredita-se. Uma teoria, otimista, postula inclusive que a existência de arsenais nucleares constitui, paradoxalmente, uma garantia de paz ou, pelo menos, de ausência de guerras diretas e totais entre potências atômicas.
Paralelos com a Primeira Guerra Mundial
Autoengano? Talvez! O quadro internacional neste início do século 21 lembra muito, mas muito mesmo, aquele que antecedeu a Primeira Guerra Mundial, e esse paralelo tem sido feito por diversos observadores. Recentemente, li um livro sobre a Primeira Guerra, de autoria de Karl Hellferich, destacado economista e político alemão, que foi inclusive o autor intelectual da hiperestabilização alemã de 1923. O que ele escreveu sobre as origens da guerra de 1914 deu-me um frio na espinha – tão grande é a semelhança com o que vivemos hoje, pouco mais de cem anos depois.
Naquela época, como agora, uma potência emergente – a Alemanha então, a China hoje – crescia rapidamente em importância e era vista como ameaça. Ameaçada se sentia, notadamente, a potência hegemônica – a Inglaterra na época, os Estados Unidos agora – e se mostrava disposta a obstruir a ascensão da potência ascendente. A potência em declínio é sempre mais perigosa. A sua disposição de hostilizar e, no limite, provocar uma guerra era aguçada pela percepção de que o tempo corria contra ela. Antes confrontar e até mesmo guerrear agora do que mais tarde, raciocinava a Inglaterra de então, assim como os Estados Unidos de hoje.
Outro traço comum aos dois períodos: o quadro internacional era de multipolaridade, com diversas potências disputando espaço na Europa e/ou no resto do mundo. Inglaterra, França, Rússia, Alemanha, Áustria-Hungria, Japão, Estados Unidos, entre outros, naquela época. Estados Unidos, Alemanha, França, China, Rússia, entre outros, nos dias de hoje. A multipolaridade, tanto hoje como há cem anos, multiplicava os pontos perigosos de atrito. A formação de coalizões, com garantias recíprocas, aumentava o perigo de que um conflito localizado desembocasse em conflagração geral.
Outra semelhança inquietante. Até a eclosão da guerra em 1914, ocorreram diversos episódios de conflito envolvendo as potências centrais, a Alemanha e a Áustria-Hungria, de um lado, e a Tríplice Entente, França, Rússia e Inglaterra, de outro. Nos Bálcãs, em Marrocos, no Mediterrâneo, no Oriente Médio, irrompiam crises e disputas que ameaçavam provocar uma confrontação militar entre as potências centrais e a Tríplice Entente. Muitos sabiam que uma nova guerra na Europa seria destrutiva como nenhuma anterior. A cegueira não era total. E, no entanto, como cada episódio de conflito acabava sendo resolvido sem guerra, instalou-se uma perigosa complacência.
A marcha da insensatez e outros cenários
Não é, mutatis mutandis, o que vivemos agora? Tantas vezes tem sido possível evitar que confrontos localizados desaguem em confronto nuclear. Os líderes dos países atômicos não serão irresponsáveis, confiamos. Eles sabem que uma guerra nuclear deixaria no chinelo as Guerras Mundiais do século 20. E os mais otimistas entre nós acreditam na evolução do ser humano e que a experiência histórica deixa lições.
Pois bem. É justamente a experiência histórica milenar que desautoriza essas crenças. A humanidade não progride, ela sequer existe, disse Nietzsche. Como haveria de aprender com os desastres históricos? O que se tem, de certa forma e como também dizia Nietzsche, é o eterno retorno do mesmo. Mudam as aparências, mas persiste o que a historiadora Barbara Tuchman chamou de “marcha da insensatez”. E a célebre frase de Marx merece uma modificação. A história se repete: na primeira vez como tragédia, na segunda também.
Este é o quadro sinistro que queria delinear hoje. Nem tudo está perdido, claro. E o inexorável nem sempre acontece. Há cenários, mais ou menos plausíveis, em que a catástrofe nuclear seria evitada. A vitória da Ucrânia, com expulsão das tropas russas do seu território, não parece provável, mas não pode ser inteiramente descartada, dada a extensão do apoio militar e financeiro do Ocidente. A vitória da Rússia, mais concebível, dada a sua superioridade militar, econômica e populacional, encontra resistência cerrada do bloco ocidental.
Um terceiro cenário, mais provável, seria o chamado congelamento da guerra, um conflito de longa duração, sem solução no campo de batalha e sem solução diplomática. Um “congelamento” da guerra manteria vivo o risco de um confronto nuclear. A passagem do tempo multiplicaria os incidentes capazes de levar à sua materialização. Para os países envolvidos, principalmente a Ucrânia, o prolongamento da guerra traria custos enormes em termos humanos e econômicos. Já severamente abalada pela invasão, a Ucrânia sofreria mais ainda. A Rússia também pagaria um preço elevado em termos humanos, políticos e econômicos. O Ocidente arcaria com uma conta cada vez mais pesada. O resto do mundo continuaria sofrendo as consequências econômicas da guerra.
Clube da paz?
Volto ao Brasil. Lideranças políticas como Lula e outras estão plenamente conscientes, tudo indica, dessas ameaças todas. É compreensível e louvável que tentem ajudar a restabelecer a paz. Países como China, Índia, Indonésia, Turquia, Brasil aparecem como possíveis mediadores. O caminho talvez seja aquele apresentado inicialmente pelo Brasil – a formação de um grupo de países que atuariam conjuntamente em prol do fim das hostilidades e de uma solução duradoura para os conflitos no Leste da Europa. Evidentemente, Brasil e outros podem acabar saindo de mãos abanando. Por maiores que sejam seus esforços, só haverá paz se as partes envolvidas na guerra estiverem realmente dispostos a negociar. Tendo em vista, porém, a dimensão dos riscos que corremos, vale a pena persistir na busca de uma solução pacífica.
O Brasil exerce a presidência de turno do G-20 em 2024, grupo que inclui todos os principais países envolvidos no conflito, com exceção da Ucrânia. É a oportunidade que talvez se apresente para superar a guerra e seus riscos.
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Uma versão resumida deste artigo foi publicada na revista “Carta Capital”.
O autor é economista, foi vice-presidente do Novo Banco de Desenvolvimento, estabelecido pelos BRICS em Xangai, de 2015 a 2017, e diretor executivo no FMI pelo Brasil e mais dez países em Washington, de 2007 a 2015. Lançou no final de 2019, pela editora LeYa, o livro O Brasil não cabe no quintal de ninguém: bastidores da vida de um economista brasileiro no FMI e nos BRICS e outros textos sobre nacionalismo e nosso complexo de vira-lata. A segunda edição, atualizada e ampliada, começou a circular em março de 2021.
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