Há conciliação com a Faria Lima?

A verdade é que o Banco Central se comporta como Quarto Poder

por Paulo Nogueira Batista Jr.

Estou entre os críticos mais insistentes, mais renitentes da política de juros do Banco Central. Fora o presidente Lula, claro, que é hors concours. Ele tem feito críticas sempre pertinentes, quase sempre certeiras. Volto à carga hoje, acompanhando modestamente os esforços críticos do nosso Presidente.

O tema é vasto, mereceria um ensaio de 50 páginas, no mínimo. Vou tentar ser sintético. Começo com os apelos do ministro Haddad, que há algum tempo vem pedindo harmonia entre as políticas monetária e fiscal. Faz todo sentido. O termo mais usado na literatura é coordenação fiscal-monetária. Em todos os países razoavelmente organizados, mesmo um BC autônomo se vê obrigado a coordenar as suas ações com as do Tesouro. Isso significa não só a troca regular de informações entre as duas instâncias, mas o cuidado de levar em conta as ações da outra parte na definição e implementação das suas. Se há alguma prevalência, esta é das autoridades fiscais, que representam o governo eleito. Em alguns países, o Tesouro tem até mesmo representação formal nos comitês que definem a política monetária.

Esforços em prol da harmonia fiscal/monetária

O ministro Haddad, a bem da verdade, não se limita a lançar apelos públicos em prol da harmonia. Vem fazendo o possível para aplacar o BC e, mais importante, a base social da autoridade monetária – a Faria Lima, também conhecida como turma da bufunfa. Não é fácil, leitor, mas o Ministro da Fazenda se esforça. Em janeiro, anunciou um pacote de ajuste fiscal. Em seguida, abandou ou postergou o aumento das metas de inflação, aceitando os argumentos do BC de que isso seria contraproducente. Em abril, anunciou um “arcabouço fiscal” com travas ao gasto público, na esperança de convencer o BC de que o risco fiscal será pequeno daqui para a frente.  

Haddad deu sinais, além disso, de que pretende negociar com o presidente do BC os nomes dos dois novos integrantes da diretoria da instituição. Pela lei de autonomia, é prerrogativa do Presidente da República nomear agora dois dos nove integrantes da diretoria do BC e do Copom. Os mandatos de dois diretores venceram em final de fevereiro e o governo, não se sabe bem por que, ainda não indicou os substitutos. No momento em que escrevo, início de maio, as indicações continuam pendentes. Se dependesse apenas da Fazenda, os nomes seriam submetidos à aprovação de Roberto Campos Neto. Não quero ser injusto, mas é a impressão que a Fazenda está passando. Na verdade, o próprio ministro deu declarações nesse sentido há algum tempo. É mais do que apenas impressão, portanto.

Banco Central, um Quarto Poder

Os apelos de Haddad em favor da harmonização têm caído no vazio até agora. É que o comando do BC vê a proposta como tentativa velada de suprimir ou condicionar a sua sacrossanta autonomia. O BC brasileiro tem a pretensão extravagante, tudo indica, de definir os seus passos sem considerar a política do Tesouro.

Vamos ser mais claros. A verdade é que o BC se comporta como Quarto Poder. Não é apenas autônomo, mas independente. Isso ao arrepio do que a lei pretendia. A distinção convencional, incorporada à legislação brasileira, estabelece que o BC autônomo tem a liberdade de buscar o cumprimento de metas que lhe foram fixadas pelo poder político eleito, por meio do Conselho Monetário Nacional (CMN). Já um BC independente teria a prerrogativa de fixar as próprias metas de inflação. Essa distinção, no caso brasileiro, é mais teórica do que prática. Ocorre que o BC tem um dos três votos do CMN; os dois outros são da Fazenda e do Planejamento. Além disso, o BC exerce a secretaria do Conselho, o que lhe confere poder adicional. Para completar o quadro, a Fazenda e o Planejamento não conseguem ou não desejam, ao que parece, fazer face à ortodoxia do BC.

Sentindo cheiro de sangue, a Faria Lima avançou. O comando do BC já dá repetidos sinais de que pretende enquadrar a política econômica do governo eleito. Veja bem, leitor, não apenas a política fiscal, que deve fazer “o dever de casa” a que se refere insistentemente a ministra Tebet, mas também os bancos públicos federais, que têm sido admoestados pelo BC, em seus comunicados e atas de reuniões, a não adotar políticas que visem estimular a atividade econômica, pois isto reduziria, supostamente, a eficácia da política monetária.

Governo de mãos amarradas

A prevalecer a “harmonia”, tal como entendida pelo BC, o governo ficará de mãos atadas, inerte, provavelmente incapaz de agir para relançar uma economia que está estagnada há dez anos! A política fiscal, limitada pelo arcabouço, conseguirá orientar-se para um papel ativo? O governo poderá determinar ao BNDES, ao Banco do Brasil e à Caixa Econômica que forneçam um volume de crédito suficiente, a taxas e prazos atrativos, para destravar os investimentos na economia brasileira? Se depender do BC, não, nunca e jamais. Ficarão todas essas instâncias submetidas, harmonicamente, ao objetivo de assegurar a estabilidade monetária e o cumprimento das metas de inflação. O presidente da República, por sua vez, poderá continuar, sossegado, as suas críticas aos juros altos. A harmonia continuará sem sobressaltos.

Repare, leitor, que essa “harmonia” inclui também o direito que se reserva o BC de lançar petardos contra a política fiscal! A política de juros altos, por exemplo, eleva o custo da dívida e o déficit público. Mas essa é uma fonte de “risco fiscal” que, Deus sabe por que, não precisa ser considerada. Os juros altos derrubam, também, os níveis de atividade e de emprego, reduzindo as bases de incidência da tributação e, tudo o mais constante, as receitas do governo. Em ambiente de desaquecimento da economia, qualquer tentativa de aumentar a arrecadação, ou de tentar mantê-la estável, mesmo sem necessariamente recorrer a novos impostos ou aumentos de alíquotas, como pretende o ministro da Fazenda, encontrará tenaz resistência dos contribuintes, que redobrarão seus esforços para escapar da tributação.

Vamos elaborar um pouco esse ponto. O arcabouço fiscal estabeleceu, como metas centrais, déficit primário zero em 2024 e superávits nos anos seguintes. Se a economia continuar estagnada ou, pior, entrar em recessão, o esforço para alcançar a meta será maior e tenderá a acentuar a tendência à estagnação da economia. A política fiscal será pró-cíclica, em outras palavras. Uma solução para evitar a estagnação/recessão seria adotar medidas fiscais expansionistas. Mas o arcabouço fiscal dará espaço para uma política antirrecessão? Duvidoso, dadas as travas à despesa pública inseridas no marco fiscal. Outra solução seria acionar os bancos públicos federais para prover o crédito que os banco privados não proveem, especialmente em períodos de juros altos e estagnação. Possível? Em tese, sim, mas o BC já avisou que isso atrapalha a política monetária…

Finalmente, não vamos esquecer do seguinte. Os déficits públicos, desde Keynes, são vistos como admissíveis em períodos de estagnação ou recessão. Nessas situações, recomenda-se deixar os estabilizadores automáticos atuarem (isto é, a retração cíclica da carga tributária e o aumento de certas despesas ligadas à atividade econômica) e inserir componentes anticíclicos na política fiscal, expandindo por exemplo investimentos públicos e transferências sociais, com efeitos em termos de desconcentração da renda e multiplicadores da demanda e da atividade.

Veja o absurdo, leitor. O aumento do déficit público resultante dos juros altos não tem qualquer efeito positivo. Eleva o risco fiscal, sem benefícios em termos de reativação da economia e com efeito concentrador da renda. Só mesmo na Faria Lima essa política merecerá aplausos – e frenéticos. Simples entender por quê. Os juros elevados significam transferência de renda para os setores mais aquinhoados da sociedade. Beneficiam todos aqueles que têm poupança financeira ou reservas de caixa aplicadas em títulos públicos e outros ativos. Ora, os pobres e remediados, e mesmo a classe média baixa, pouco ou nada possuem em termos de poupança financeira. Quem recebe a renda adicional são os super-ricos – sobretudo os bilionários, as grandes empresas e os bancos que têm aplicações vultosas em títulos públicos e outros ativos líquidos. Vida mansa. Alta rentabilidade, com liquidez e sem risco. O paraíso do rentista.

Esses mesmos aquinhoados não gastam nada ou quase nada da renda adicional que recebem em função da generosa política do BC. O dinheiro recebido fica entesourado e aplicado em títulos públicos e outros ativos. Não circula na economia, nem ajuda a reativá-la.

Concluo aqui essa diatribe que já me saiu longa demais. Já não tenho, confesso, muita esperança de ajudar a modificar o quadro macroeconômico. O que escrevi aqui é apenas o desabafo de um brasileiro que assiste há décadas, revoltado, a repetição dos mesmos absurdos.

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Uma versão resumida deste artigo foi publicada na revista “Carta Capital”.

O autor é economista, foi vice-presidente do Novo Banco de Desenvolvimento, estabelecido pelos BRICS em Xangai, de 2015 a 2017, e diretor executivo no FMI pelo Brasil e mais dez países em Washington, de 2007 a 2015. Lançou no final de 2019, pela editora LeYa, o livro O Brasil não cabe no quintal de ninguémbastidores da vida de um economista brasileiro no FMI e nos BRICS e outros textos sobre nacionalismo e nosso complexo de vira-lata. A segunda edição, atualizada e ampliada, começou a circular em março de 2021.

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