por Gabriel Rocha Gaspar
De todos os gritos entusiasmados que ecoaram da maré vermelha de Brasília neste domingo (1), o mais significativo – e desafiador, do ponto de vista da política institucional do novo governo – foi “Sem anistia!” Lula pausou o discurso, concedendo palco para um justificado desejo de punição. E seguiu em sua apologia da responsabilização. Firme, mas liturgicamente comedido, falando em conter o “revanchismo”.
Não é detrimento nenhum que a vontade lulista de perseguir justiça histórica seja contida pela liturgia. Pelo contrário: esse respeito à delimitação cível do cargo Executivo é, por si só, um ato inicial de contraposição à concepção bolsonarista de governo. Afinal, uma das facetas que ajudam a caracterizar cientificamente o bolsonarismo como fascismo é a deliberada confusão entre exercício do poder e militância. Na presidência, Bolsonaro fez mais do que misturar esses dois papéis; ele ocupou o Estado em oposição constante ao Estado, atribuindo sua inépcia contumaz às restrições impostas pelo compromisso democrático que um presidente é obrigado a assumir com as instituições.
Fraco como figura de poder, inábil como articulador, Bolsonaro viveu quatro anos de um paradoxo. Pois o que o catapultou ao poder foi sua capacidade de vender a imagem artificial de um patriarca, homem forte, que não leva desaforo para essa “casa” chamada governo brasileiro. Ao mesmo tempo, ele vinha de décadas da mais profunda irrelevância política e administrativa, o que não lhe garantia nenhuma condição de, subitamente, exercer intramuros o poder patriarcal que sempre bradou para fora, desde a famigerada homenagem ao torturador Brilhante Ustra até os últimos dias de cercadinho, onde exerceu os derradeiros arroubos de macharia, antes de desabar em lágrimas e fugir acovardado para os resorts do Tio Sam. Para alguém tão impotente no cargo, a liturgia surgiu como único palco possível para a performance da violência. E o que se produziu foi um poder politicamente brochado, exercido sob o coro de “imbrochável”.
Ao endossar a responsabilização dessa administração genocida com respeito à solenidade da presidência e deixar ressoarem os clamores populares pela não-anistia, Lula restaura a dinâmica normal da dicotomia representante/representado na estrutura de uma democracia liberal burguesa. É um pequeno gesto que contribui para o restabelecimento das bases institucionais sobre as quais o futuro pode se assentar, ajudando a criar, inclusive, a confiabilidade necessária para o escrutínio do fascismo. O que Lula fez foi restaurar a missão da institucionalidade. Agora, a bola está com a militância. A radicalidade e urgência dessa responsabilização depende da capacidade da esquerda organizada de consubstanciar teórica e politicamente o grito de “Sem anistia”.
Afinal, “sem anistia” para quem? Pelo quê? Que tipo de Justiça a classe trabalhadora brasileira quer ver servida a seus algozes? Ao militar que, alegando-se especialista em logística, transformou cidades brasileiras inteiras em campos de concentração visando uma prova perversa da imunidade de rebanho? A ministros de Estado que trabalharam pela legalização da jagunçagem em solo brasileiro (índigena, principalmente, mas não só), flexibilizando a legislação ambiental e o acesso a armamentos de uso exclusivo das Forças Armadas? Ou à companhia nacional de produção armamentista que endossou essa aberração política e fez promoção de pistola no sete de setembro escolhido pelo presidente como data-palanque do golpe? Ou a outra empresa, aquela do ramo de saúde que, numa ação de orgulhar o médico-monstro de Auschwitz Joseph Mengele, conduziu testes não-consentidos de medicamentos ineficazes em idosos, sob o lema “óbito também é alta”? Ou ao próprio presidente que, entre tantos outros crimes, extrapolou do cargo ao bom-senso para fazer propaganda desses mesmos fármacos, à revelia da ciência? Ao chanceler seguidor de um astrólogo morto, que usou o Itamaraty para marginalizar o Brasil na comunidade internacional? Ao racista negro que usou a Fundação Palmares para promover uma agenda supremacista branca? Aos donos de veículos de comunicação que esposaram ou toleraram todas essas teses misantrópicas, atenuando o banditismo fascista do poder da vez e oferecendo palanque para racismo, machismo, LGBTQIAfobia e, acima de tudo, classismo brutal? Por falar em classismo, o que fazer do ministro da economia que, fiel à escola de Chicago que o formou, restaurou à luz do dia os laços históricos entre neoliberalismo e autoritarismo, cuidadosamente costurados de Carl Schmitt (fundador dessa religião pseudo-econômica e entusiasmado membro do Partido Nazista) a Mises e o pinochetista Hayek? Por falar em Partido Nazista, merece o quê o ministro da Cultura que fez cosplay de Goebbels? Ou o preconceituoso reincidente que, em seu último pronunciamento como vice-presidente, evocou a teoria racista do “destino manifesto”, base do genocídio indígena decorrente da expansão ocidental dos Estados Unidos no século XIX e inspiração da ideologia colonialista de Adolf Hitler?
A lista segue… São tantos crimes, tantos CPFs e CNPJs delinquentes e tantas vítimas – as mais óbvias, os mortos pela COVID e suas famílias; além das populações vulneráveis: indígena, negra, ribeirinha, LGBTQIA+, quilombola etc -, que é fundamental a instauração de um organismo específico para investigá-los. Talvez a substância institucional que nos cabe dar ao grito “Sem Anistia” seja a instauração de um Tribunal Especial. Como sugeriu o professor Lincoln Secco, o Tribunal de Manaus, significativo e adequado o suficiente. E que, com toda liturgia e observância jurídica necessárias, ele seja capaz de exercer a missão histórica negligenciada pela Constituinte de 1988: fechar, para sempre, as portas da institucionalidade brasileira ao fascismo.
Gabriel Rocha Gaspar é jornalista e escritor, mestre em literatura pela universidade Sorbonne Nouvelle Paris 3. Por cinco anos, foi correspondente na França para diversos veículos de mídia do Brasil, além de trabalhar como apresentador e repórter na rádio pública francesa RFI. Também em Paris, se especializou em geopolítica e foi um dos fundadores do Movimento Democrático 18 de Março (MD18). Hoje, escreve sobre política internacional e co-apresenta o podcast FRONTeiras.
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