Por Dirce Waltrick do Amarante
Escritora, ensaísta e tradutora. Publicou recentemente crônicas inéditas no livro Contágios, Contos & Crónicas (Visgarolho, Portugal), fruto de um projeto coletivo de artistas unidos num projeto cultural, tendo a língua portuguesa como denominador comum.
Lê-se na página principal do site da Bienal do Livro de São Paulo que, para “essa edição histórica, teremos como Convidado de Honra – Portugal, quando celebramos os 200 anos da independência do Brasil, unidos eternamente em nossa língua mátria”, assim mesmo, em destaque. A propósito, valeria destacar também que o convidado de honra é Portugal e não o idioma português.
Para homenagear a terra de Camões, a antiga colônia convidou para a festa outras ex-colônias, como Moçambique e Angola, que, como o Brasil, decretaram em seus países o idioma do colonizador como oficial, em detrimento de suas outras tantas línguas ancestrais, essas, sim, as línguas mátrias. O português, diria, segue sendo a língua pátria em pelo menos dois sentidos dados pelo lexicógrafo e gramático lisboeta Caldas Aulete, ou seja, “relativo à pátria: Amor pátrio” e “pertencente ou relativo aos pais, paterno: Pátrio poder”. Aqui o gramático remete ao conceito de poder que fala especificamente em “força física”, “império, soberania”.
Mátria é palavra usada na chamada da Bienal e, embora tenha sido afirmado em artigo de um famoso romancista e jornalista que é uma invenção de Caetano Veloso, criada na letra da música “Língua”, ela consta do dicionário do lexicógrafo português e significa “adj. relativo a mãe.// F. por anal. Com pátrio, lat. patris”.
O Brasil é uma mãe (ou uma mulher violentada, dependendo do ponto de vista) que acolhe todos os filhos; nesse sentido o português seria nossa língua mátria.
Convidado de honra: piada
Voltemos então à chamada da Bienal. Quem lê rapidamente a informação sobre o convidado de honra no site oficial da festa em plena celebração dos 200 anos de independência do Brasil pode até pensar que se trata de uma piada e que, portanto, o humor seja a tônica do evento deste ano. Mas não, a Bienal do Livro de São Paulo parece ser um revival (ou a revanche) da Flip de 2019, que queria homenagear Elizabeth Bishop, escritora norte-americana que morou no Brasil, escreveu nele e sobre ele em língua inglesa e com a visão do estrangeiro colonizador.
A Bienal foi mais sorrateira, pois quando anunciou o convidado de honra já era tarde, ele já havia sentado à mesa e como anfitriões deixemos como está e sejamos cordiais.
É bem verdade também que não deveríamos confundir Portugal de hoje com aquele que invadiu o Brasil em 1500. Hoje nossas relações seriam diferentes e quando se trata de livros parece que o comércio entre os dois países tende a crescer, com pelo menos uma grande editora brasileira em terras portuguesas. No bicentenário da independência, business is business, e isso aprendemos com os colonizadores; por isso, decerto, não foram as culturas nem as línguas ancestrais, nem mesmo os povos vindos da África, que receberam o convite de honra da Bienal.
Em Discurso sobre o colonialismo, Aimé Césaire, poeta, dramaturgo e pensador da Martinica, lembra que é preciso entender “atrevidamente” e “responder claro à inocente pergunta inicial: o que é, em seu princípio a colonização? Reconhecer que ela não é evangelização, nem empreitada filantrópica, nem vontade de fazer retroceder as fronteiras da ignorância, da enfermidade, da tirania; nem a expansão de Deus, nem a extensão do Direito; admitir de uma vez por todas, sem titubear, por receio das consequências, que na colonização o gesto decisivo é o do aventureiro e o do pirata, o do mercador e do armador, do caçador de ouro e do comerciante, o do apetite e da força, com a maléfica sombra projetada por trás por uma forma de civilização que em um momento de sua história se sente obrigada, endogenamente, a estender a concorrência de suas economias antagônicas à escala mundial”.
Não somos mais colônia de Portugal, mas é sempre bom recordar as consequências da colonização que “resulta em sociedades esvaziadas delas mesmas, de culturas pisoteadas, de instituições minadas, de terras confiscadas, de religiões assassinadas, de magnificências artísticas aniquiladas, de extraordinárias possibilidades suprimidas”, como diz Aimé Césaire. No ano do bicentenário da independência do Brasil, nós, brasileiros, não retomamos e atualizamos o que nos foi inculcado pelo colonizador, assumindo as mesmas atitudes elencadas acima? Muitas vezes, concluiu Aimé Césaire sarcasticamente, o “complexo de inferioridade” obscurece os nossos olhos “com toneladas exportadas de algodão ou cacau, com hectares plantados de oliveiras ou de uvas”.
É claro que, como prossegue o pensador da Martinica, “resolvido isto, admito que é bom pôr em contato civilizações diferentes entre si; que unir mundos diferentes é excelente; que uma civilização, qualquer que seja seu gênio íntimo, murcha ao dobrar-se sobre si mesma; que o intercâmbio é o oxigênio […]”.
E aqui voltamos a Caetano Veloso e sua “Língua”: “Gosto de sentir a minha língua roçar a língua de Luís de Camões/ Gosto de ser e de estar/ E quero me dedicar a criar confusões de prosódias/ E uma profusão de paródias/ Que encurtem dores/ E furtem cores como camaleões// Gosto do Pessoa na pessoa/ Da rosa no Rosa/ E sei que a poesia está para a prosa/ Assim como o amor está para a amizade”. Gosto também quando a língua de Luís de Camões se confunde com a de Cervantes e a de Macunaíma para desaguar no portunhol de Wilson Bueno, Douglas Diegues…
Nessa Bienal, Amália Rodrigues podia fazer uma dobradinha com Caetano Veloso e cantar “Nem às paredes confesso”: “Quem sabe se te esqueci ou se te quero/ Quem sabe até se é por ti por quem eu espero/ Se eu gosto ou não afinal, isso é comigo/
Mesmo que penses que me convences nada te digo// De quem eu gosto nem às paredes confesso/ E até aposto que não gosto de ninguém”.
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