Às vésperas da cúpula da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN), a ser realizada entre os dias 28 e 30 de junho, a guerra na Ucrânia parece agora mais clara para o mundo. O conflito no leste europeu completou cem dias no início deste mês e o sucesso ucraniano frente às forças russas que a imprensa internacional vendeu, mais que nunca, cai por terra. Só não caem as acusações contra a China em torno da disputa. Desde fevereiro, o país do meio já foi do inferno ao céu, acusado de ser responsável pela invasão da Rússia e de receber informações privilegiadas sobre a operação liderada por Moscou, com os chineses tendo tomado lado no confronto, o que elevou a pressão da opinião pública mundial por uma posição mais firme de Pequim.
Por J. Renato Peneluppi Jr.*
Fato é que a dinâmica geopolítica atual não tem sido favorável nem para a China nem para a Rússia por causa de uma competição em outras esferas com a principal potência internacional, que hoje reina de forma unipolar no mundo. Mas, como ensina Sun Tzu, “o inimigo do meu inimigo é meu amigo”. É nesse contexto que os presidentes Xi Jinping e Vladimir Putin assinaram uma “aliança estratégica” em 4 de fevereiro de 2022, na abertura dos Jogos Olímpicos de Inverno – evento esportivo que, inclusive, sofreu boicote diplomático de nações europeias e dos Estados Unidos.
Ainda que chamada de “sem limites”, a aliança entre China e Rússia esbarra nos princípios chineses das relações internacionais, que foram estabelecidos pelo então primeiro-ministro Zhou Enlai em 1954, no pós-guerra da Coreia para facilitar o diálogo com países asiáticos não comunistas. Os cinco princípios basilares carregam um conceito de que só podem ser aplicados de forma “integrada, interconectada e indivisível”, conforme palavras do Xi em 2014, e tratam da coexistência pacífica, do respeito mútuo pela soberania e território integral; da não confrontação; da não interferência em assuntos internos; e pela equidade e benefício mútuo.
Esses princípios deixam claro que a China está seguindo seu próprio caminho. Não está seguindo o Ocidente, nem está simplesmente correndo ao lado da Rússia. Portanto, existe sim um limite na aliança estratégica entre China e Rússia. Não se deve levar muito ao pé da letra. Aliás, sabe-se bem que historicamente a relação sino-russa nunca foi das melhores e, em alguns períodos, houve conflito, como quando ainda no século XIX, o império czarista fazia parte das oito nações que invadiram a China, tendo ocupado territórios ao norte do país. Ou mesmo, mais recentemente, quando em 1969, a China e a União Soviética lutaram por sete meses um conflito militar na ilha Zhenbao (Domansky) no rio Ussuri (Rusuli), perto da Manchúria. Conflito esse que serviu de sinal para os EUA se reaproximarem da China em tempos de Guerra Fria.
Porém, os tempos são outros e essas nações que formam essa relação triangular vivem uma nova virada na conjuntura, encurraladas por articulações de blocos.
Apenas 20 dias depois do anúncio da “aliança estratégica” firmada entre Xi e Putin, teve início a operação militar russa na Ucrânia. E isso levou as nações do bloco do Atlântico Norte (OTAN) a insinuarem que a China havia sido previamente informada dos ataques e que apoiava a Rússia nesse conflito.
O mundo simplesmente ignorou o contexto geopolítico global da mensagem. A aliança estratégica entre China e Rússia tem por objetivo construir as bases para um mundo multipolar, sendo orientada por questões militares e econômicas do tipo “ganha-ganha”, orientadas ao desenvolvimento. Nessa parceria abrangente de coordenação para um nova era, busca-se ampliar áreas de cooperação através de acordos antimonopólio e do estímulo à competição, ao desenvolvimento sustentável, além da ênfase nas áreas de energia, saúde, esporte, espaço e outros.
Ou seja, não há uma China aliada à Rússia quando se trata, especificamente, da guerra na Ucrânia. Ao contrário, Pequim se recusou a se alinhar a Moscou no conflito com Kiev, mostrando preocupação com a guerra, mas entende os interesses de segurança da Rússia. A propósito, a China não está sozinha nisso, com outros países assumindo mais ou menos a mesma posição.
Tanto que na votação no painel das Nações Unidas (ONU), a China se absteve, juntamente com outras 35 nações, enquanto mais de 140 países votaram a favor de sanções contra a Rússia. Outras cinco nações votaram contra. Esses países que não apoiaram a resolução representam mais da metade da população mundial, o que deixa claro que a aprovação está longe de ser um consenso universal. A China também denunciou o fato de muitas nações estarem enviando armamento à Ucrânia, enfatizando assim a necessidade de diálogo – e não de armas.
Ao mesmo tempo, a China avalia que a Rússia sofre uma opressão e reconhece que o avanço territorial da OTAN é um risco iminente à Moscou. Vale lembrar que o bloco, que surgiu no pós-Segunda Guerra Mundial sob a promessa de defesa militar e não expansionista, nunca parou de crescer. Na época, a aliança atlântica abrangia 15 países e hoje já têm o dobro, estando a algumas centenas de quilômetros de distância da fronteira russa – e também chinesa.
No cenário internacional, porém, pouco se fala sobre as denúncias contra o presidente dos EUA Joe Biden e negócios da família na Ucrânia, envolvendo um esquema de suborno que vai de 2013 até 2018 e que teria tido um papel central durante a crise da Euromaidan, na Ucrânia, em 2014 contra o governo de Viktor Yanukovich, aliado de Putin à época. Essas denúncias mostram o envolvimento pessoal do líder americano com o país em conflito.
Já a China tem se reafirmado como potencial líder global e interlocutor para o diálogo entre as duas nações em conflito, chamando ainda outras nações para compor esse processo. Na China, as lideranças costumam observar por um tempo antes de tomar qualquer ação, observando os desdobramentos passo a passo para poder agir com flexibilidade, uma vez que é um importante parceiro comercial tanto da Rússia quanto da Ucrânia e almeja manter boa relação com ambos os países.
O Ministro das Relações Exteriores da Ucrânia, Dmytro Kuleba, em conversa com Wang Yi, agradeceu o apoio humanitário dado ao seu país, reconheceu que a China atua no cenário internacional segundo seus “Cinco princípios da coexistência pacífica”, definiu como construtiva a posição da China, reafirmou o compromisso com uma solução pacífica, e espera que a China continue a desempenhar um papel importante para alcançar o cessar-fogo e por fim ao conflito. Não obstante, deixou claro, que trabalha para a Ucrânia se tornar os portões da Europa.
Seja como for, o conflito na Ucrânia formou uma profecia, dois anos depois do início da pandemia da covid-19, representando a peste e a guerra, ou os dois primeiros dos quatro cavaleiros do Apocalipse. Agora, o mundo é assombrado pelo terceiro cavaleiro, a “fome”, uma vez que o risco de uma crise alimentar global devido à dependência de diversos tipos de grãos e fertilizantes tanto da Ucrânia quanto da Rússia vai se consolidando, podendo levar ao último cavaleiro, à morte. O mundo, então, vai vivendo consequências diretas de uma crise econômica, energética e geopolítica.
Frente a esses desafios, o crescimento econômico chinês segue impulsionando o país em direção à primeira posição como maior economia do mundo, ao mesmo tempo em que a atual crise econômica atinge diferentes setores nos EUA, o que somada à perda de influência no cenário internacional levam à necessidade de Washington de reagir nessa disputa. Como bem previa a Graham T.Allison na “Armadilha de Tucídides”, há uma aparente tendência inexorável à guerra quando uma potência emergente ameaça substituir uma grande potência, já consolidada como hegemônica, no sistema internacional.
Ainda mais contundente fica esse conceito quando a Casa Branca e seu serviço de inteligência reafirmam que “o grande e maior desafio geopolítico que os EUA têm como país, no longo prazo, é a China”.
Sendo assim, há um resgate da política de cercamento praticada pelos EUA como estratégia na Guerra Fria, herdada do império Britânico no começo da Segunda Guerra mundial, a partir dos conceitos de Nicholas J. Spykman e Halford J. Mackinder, no voo da águia que busca o “Heartland ou o Rimland” da Eurásia, e que simbolicamente mostra a importância de controlar os mares para o poder global.
Foi essa política de cercamento da Guerra Fria que gerou a tensão no Paralelo 38, dividindo a Coreia em duas, e também em Taiwan, correspondendo pontos importantes para a estratégia americana de controlar a Ásia a partir de áreas insulares. Porém, insistentemente, a China afirma que a província rebelde chinesa é uma questão doméstica e ninguém irá separar a ilha do território chinês.
Aqui, o conceito de território deve ser compreendido conforme definido por Milton Santos, que trata de um espaço organizado socialmente por um conjunto de pessoas definidas historicamente por processos tanto do passado como do presente. Nessa concepção, o “homem” ganha um papel central, em detrimento à dimensão política e à formação de um Estado-nação.
Só que ao fim da Guerra Fria, em 1991, ficou claro que o controle dos mares já não é superioridade. É preciso lembrar também do poder atômico do dólar desde o fim do Acordo de Bretton Woods, no início dos anos de 1970, e a financeirização da economia mundial a partir daí, colocando em lados diametralmente opostos o “capital fictício”, do qual já falava Marx, frente ao capital produtivo. Aliás, o cenário atual de guerra na Ucrânia e da aliança estratégica entre Rússia e China realça bem essa disputa multipolar entre a produção de bens e commodities versus a “especulação de coisas” no mercado financeiro.
Há, ainda, outra celeuma, que trata do domínio espacial imposto pelos EUA desde o programa SDI, informalmente conhecido como Star Wars, durante o governo Reagan, que havia sido abandonado com o Tratado do Espaço Sideral, mas acabou sendo rompido pelo ex-presidente Donald Trump, reavivando o papel do espaço na dominação da geopolítica global. A militarização espacial tem como ator principal o bilionário Elon Musk e seus foguetes que visam a exploração de terras-raras na lua, onde esse conjunto de elementos químicos essenciais para a tecnologia de ponta são encontrados em grande quantidade.
Diante do exposto, não é de se estranhar porque a China é cercada por organizações como QUAD, Cinco Olhos, AUKUS, Indo-Pacífico, como se os EUA estivessem tentando criar uma “mini OTAN” na Ásia. E a China vê esse cerco como uma ameaça. Da mesma forma, também fica claro que só ser a primeira economia do mundo não será garantia de nada. Vale lembrar que em 1820 a China era responsável por 1/3 PIB mundial, e isso tampouco impediu a invasão e aniquilação do território chinês por potências estrangeiras, dando início ao chamado “século de humilhação”.
Por tudo isso, frente a guerra da Ucrânia, a China tem reafirmado que sua política internacional é econômica, em uma perspectiva essencialmente leninista de promover o comércio mundial, com o país socialista mostrando-se “tão comerciante quanto os capitalistas”. Assim, a China seguirá fortalecendo o diálogo e o mercado através de parcerias e blocos multipolares, com base nos seus tradicionais cinco princípios de coexistência pacífica.
(Colaborou Olívia Bulla**)
*Advogado, especialista em Administração Pública Chinesa, residente na China desde 2010; [email protected]
** Jornalista, especialista em Economia; [email protected]