O lockdown em Xangai completa sete semanas com regras bem menos rígidas,
mas a incerteza em relação ao fim do bloqueio serve de lembrete ao mundo que a
pandemia ainda não acabou e novas ondas da covid-19 podem surgir. O impacto da
variante ômicron na megalópole chinesa mostra os riscos de flexibilizar demais os
protocolos de prevenção contra o coronavírus – algo que o Ocidente vem fazendo há
algum tempo, banalizando a morte pela doença, que matou cerca de 15 milhões.
A cidade mais populosa da China quis seguir um protocolo próprio de gestão,
flexibilizando a abordagem dinâmica de “Covid Zero” e considerando padrões mais
ocidentais de “aprender a conviver com o vírus”. Essa investida teve consequências
graves ao país, resultando nas primeiras mortes em dois anos por covid-19 e um
recorde de milhares de casos diários, conforme dados oficiais.
Afinal, o que o lockdown em Xangai ensina?
Diferentemente da “louquidão” no Ocidente, onde medidas de controle oscilam
conforme surgem novos surtos, a prioridade na China é proteger a vida e a saúde
das pessoas. Desde o início da pandemia, ficou evidente a visão do governo chinês
de que a força de trabalho é peça-central e insubstituível, servindo de motor ao
crescimento econômico.
Não houve, como no Ocidente, a imposição de um falso dilema, como se as
pessoas tivessem de escolher entre viver ou ganhar dinheiro. Com isso, a China
entra no terceiro ano da pandemia mostrando que segue eficaz no combate ao
coronavírus, tendo um baixo índice de infecções e mortes, inferior a 0,1%, cada,
mesmo sendo um dos países mais populosos do mundo, com 1,4 bilhão de
habitantes.
Enquanto isso, os Estados Unidos já superam a marca de mais de um milhão de
óbitos, ou mais de 15% do total global de mortes pela doença, mesmo depois de
completar 500 dias desde a aprovação da primeira vacina contra a covid-19. E o
Brasil reproduz essa lógica com mais 660 mil mortes, respondendo por cerca de
10% do total de óbitos no mundo, e o carnaval fora de época podendo agravar os
números.
Portanto, a China reafirma o que tem feito desde que identificou um novo
coronavírus, na virada de 2019 para 2020, e mostra ao mundo que não tem que se
adaptar às regras do Ocidente – algo que foi lembrado pelo país neste início de maio
com a celebração do Dia do Trabalho prolongada pelo Dia da Juventude, data
festejada no dia 4 em memória ao movimento anti-imperialista de 1919 que também
marcou mudanças culturais, políticas e sociais, reafirmando os valores nacionais.
Xangai não é Wuhan
O princípio na China de salvar vidas é fundamentado por um protocolo em quatro
etapas: isolamento social (lockdown e quarentena), testagem em massa,
rastreamento e tratamento dos infectados. Essas ações são acompanhadas de
outras frentes, como a mobilização de trabalhadores, a reconversão industrial, a
logística para distribuição de itens básicos e suprimentos médicos, além da
participação de voluntários no apoio à organização de bairros.
Tal controle severo foi organizado com base na experiência dos 76 dias de lockdown
em Wuhan, entre janeiro e abril de 2020, dando origem à política de “Covid Zero”.
Desde então, a cidade conhecida como a “China em miniatura” tornou-se modelo
em todo o país no combate à doença.
Mas cada novo surto contou com adaptações e especificidades para atender aos
desafios de cada cidade, conforme as condições de gestão e o contexto geopolítico
e econômico. Daí porque os recorrentes relatos em Xangai de problemas
relacionados à falta de alimentos e estrutura hospitalar insuficiente, ainda mais em
uma cidade com 25 milhões de habitantes.
Os recentes ciclos da covid-19 neste ano em outras províncias chinesas mostram
uma duração média de 30 a 35 dias. Tanto que Jilin, no nordeste do país, diminuiu
gradualmente o bloqueio assim que deixou de registrar casos de transmissão
comunitária. No início do ano, a antiga cidade de Xi’an permaneceu bloqueada por
um mês, enquanto Shenzhen, no sul, retomou as atividades em apenas duas
semanas, sem passar por lockdown.
Só que Xangai trouxe novas lições, ao flexibilizar o “Covid Zero”, aproveitando-se do
status de administração direta, que lhe garante autonomia na gestão, respondendo
diretamente apenas ao governo central, na capital chinesa. Fato é que,
historicamente, a chamada “Pérola do Oriente” vive em descompasso com a China.
No início do século XX, por exemplo, várias áreas da cidade eram concedidas a
países estrangeiros, como Reino Unido e França. Desde então, Xangai é conhecida
por um desenvolvimento econômico singular e grande população de estrangeiros –
estimada hoje em mais de 150 mil pessoas.
A capital financeira da China é também um centro nacional de comércio, transporte
e inovação, com o maior e mais importante porto do país, sendo um ponto
nevrálgico da cadeia global de produção. Esse vínculo com o mercado internacional
é fruto do processo de reforma e abertura conduzido por Deng Xiaoping desde o fim
dos anos 70, quando algumas áreas se enriqueceram antes de outras.
Só que isso fortaleceu Xangai não apenas economicamente, mas também
politicamente. Jiang Zemin, que fez carreira política na região, foi escolhido pelo
líder supremo como sucessor e durante 1993 a 2003 deu vazão aos “heróis
econômicos” e a empresas “campeãs nacionais”, principalmente no setor imobiliário.
A famigerada Evergrande, por exemplo, nasceu nesse período. A partir daí, viu-se o
advento de milionários em Xangai, a entrada de representantes da burguesia no
Partido Comunista Chinês e também a corrupção na microestrutura da cidade.
Xi Eterno
Como o poder financeiro que Xangai dispõe se traduz também em termos políticos,
é senso comum associar o surto de coronavírus na cidade à disputa que antecede o
Congresso do Partido, no fim deste ano, que definirá a cúpula da liderança do país e
deve marcar um inédito terceiro mandato ao presidente Xi Jinping. Mas essa análise
é exagerada.
Também é crucial entender que desde o início da pandemia a China está em “guerra
popular contra um inimigo invisível”, convocada pelo atual líder chinês. Ou seja,
quando o contágio do coronavírus em Xangai saiu de controle, tornando-se uma
ameaça à segurança interna, Pequim entrou em ação.
O termo “guerra popular” é também uma noção política, sendo que “guerra” define
um objetivo de batalha e “popular” caracteriza a natureza da luta. Assim, ao
contrário dos conflitos do século XX, a guerra popular contra a covid-19 foi travada
para deter o vírus por meio da mobilização da população e de métodos científicos –
e não para gerar novos sujeitos políticos.
Por isso, o duelo entre Xangai e Pequim representa uma queda-de-braço entre
lideranças chinesas que defendem uma governança mais descentralizada frente a
um grupo que acredita na autoridade central forte. Desde a década de 1950, após o
Grande Salto Adiante, os governos regionais conquistaram maior autonomia,
principalmente econômica, competindo com outras províncias.
Esse gosto pela independência resultou nos dias de hoje na resistência de certas
localidades, como Xangai, e de parte da população local em adotar medidas
draconianas de combate à covid-19, dificultando a “volta ao normal”. A cidade que
tem vivido a glória e riqueza oriunda da profunda relação com o Ocidente acabou
fiando-se aos valores liberais, refutando os deveres coletivos.
Mesmo frente a tudo isso, a política do “Covid Zero” na China protege a vida sem
castigar o setor produtivo. Tanto que a economia chinesa foi a única, entre as
grandes do mundo, a registrar crescimento em 2020, de 2,3%, acelerando a
expansão no ano seguinte para 8,1%, acima do esperado por entidades
internacionais, como o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional (FMI).
Em 2022, a meta é de alta de 5,5% do PIB. Ousada ou não, a China almeja reduzir
a desigualdade social entre o litoral e o interior caminhando em direção à
“prosperidade comum” e consolidando a eliminação da pobreza extrema, alcançada
em pleno primeiro ano da pandemia, para construir uma sociedade socialista
moderna até meados deste século.
Por tudo isso, o método de combate à covid-19 na China é o mais eficaz e consolida
uma forma de governar para o povo, pelo rejuvenescimento da nação. Embora o
mundo se recuse a aceitar, novas ondas do vírus e novos lockdowns virão, e o
homem doente não será mais o da Ásia – e muito menos o da China.
Por J. Renato Peneluppi Jr.* e Olívia Bulla**
*Advogado, doutor em Administração Pública Chinesa pela Huazhong University of
Science and Technology (HUST), diretor-executivo na China University Summer
Schools Association (CUSSA), associado ao think tank não-governamental Center
for China and Globalization (CCG) e integrante do coletivo Camélias do Leblon.
**Jornalista, doutoranda em Economia e Política Mundial pela Universidade Federal
do ABC (UFABC), mestre em Ciências da Comunicação pela Universidade de São
Paulo (USP), especialista em Economia e Mercado Financeiro, integrante do
coletivo Camélias do Leblon