por Leonardo Wexell Severo para o Portal Vermelho
Exemplo de serenidade e abnegação em defesa dos direitos humanos, o jornalista e cientista político Dermi Azevedo, 72 anos, faleceu na manhã desta quarta-feira (1) no hospital do Ipiranga em São Paulo, vítima de um infarto fulminante. Ele convivia há anos com a Doença de Parkinson.
Nascido em 1949 no Jardim do Seridó, no Rio Grande do Norte, foi criado em Currais Novos, cidade que adotou como sua. Foi autor de reportagens na América Latina, África e Europa, tendo sido por duas vezes diretor do Sindicato dos Jornalistas de São Paulo.
Foi presidente do Diretório Acadêmico D. Hélder Câmara, da então Escola de Serviço Social de Natal. Em 1968, com outros líderes estudantis potiguares, participou do XXX Congresso da UNE, onde viveu sua primeira prisão política. Retornou a Natal e, diante da impossibilidade de permanecer em seu Estado, regressou ao Sudeste do país exilando-se depois no Chile em 1970 e 1971. Voltou ao Brasil e foi novamente preso em 1974, por duas vezes.
Em sua extensa trajetória, cobriu o Sinodo Mundial dos Bispos, no Vaticano, por ocasião dos 25 anos do Concílio Vaticano II. Foi um dos fundadores, em 1982, do Movimento Nacional dos Direitos Humanos, do qual foi Secretário Nacional de Comunicação e Políticas Públicas. Foi fundador e primeiro presidente da Cooperativa dos Jornalistas de Natal, ex-presidente da Comissão Justiça e Paz, da Arquidiocese de Natal e ex-professor e Coordenador do Curso de Comunicação Social da Universidade Metodista de Piracicaba.
Sua vivência de tortura da ditadura está contada no documentário “Atordoado, eu permaneço atento”, filme vencedor da Mostra Provocações, uma das categorias competitivas do 8º Curta Brasília – Festival Internacional de Curta-Metragem.
Perfil militante
O filme traça um perfil da militância de Dermi, levado ao Departamento de Ordem Política e Social (DOPS) em 14 de janeiro de 1974, depois de agentes encontrarem em sua casa no bairro do Campo Belo, em São Paulo, o livro “Educação Moral e Cívica e Escalada Fascista no Brasil”, coordenado pela educadora Maria Nilde Mascellani.
A obra trazia uma análise da disciplina Educação Moral e Cívica, imposta pelo regime em todos os currículos escolares do país. A irritação com o jornalista se devia à informação de que o estudo havia sido enviado ao Conselho Mundial de Igrejas, com sede em Genebra, na Suíça, para ser divulgado mundialmente.
Era a segunda detenção de Dermi. A primeira ocorreu em 1968, no Congresso da União Nacional de Estudantes (UNE), em Ibiúna, quando era líder estudantil. Além das agressões na própria carne, o que o dilacerou e que o marcou profundamente pela vida toda, recordou a jornalista Mônica Manir, “é a violência com que os agentes da repressão trataram seu primogênito, Carlos Alexandre Azevedo — o Cacá — na segunda prisão”. “A mãe de Cacá, a pedagoga Darcy Andozia, também tinha sido encarcerada. O bebê de apenas 1 ano e 8 meses havia ficado em casa com a babá. Porque chorava de fome, a criança recebeu um soco na boca. Com os lábios sangrando, também foi ‘conduzida’ ao DOPS, onde teria levado choques elétricos, segundo relato de outros presos”, descreve.
Quando foi entregue aos avós maternos, em São Bernardo do Campo, Cacá foi jogado ao chão. “Tudo isso o marcou profundamente”, contava Dermi. O filho desenvolveu fobia social. Em 2013, aos 40 anos, suicidou-se com uma overdose de medicamentos.
Dermi casou-se novamente em 2011 com a pedagoga Elis Regina Brito Almeida, que agregou o sobrenome Azevedo. É cofundador do Núcleo Maximiliano Kobe, voltado à defesa dos direitos humanos e da justiça social e, com este compromisso, lançou em 2018 o livro “Nenhum Direito a Menos: Direitos Humanos – Teoria e Prática”. Cinco anos antes, havia lançado “Travessias Torturadas”, um registro autobiográfico e político do período entre 1964/1985.
CARTA AO MEU FILHO
Caro Carlos Alexandre Azevedo (Cacá)
Meu querido filho,
Bom dia!
Faz hoje exatamente um ano que você partiu para outra vida. Como aconteceu com muitas outras crianças, você foi uma das vítimas da cruel e sanguinária ditadura civil-militar de 1964. Com apenas um e ano oito meses, você foi submetido a torturas pela “equipe” do delegado Josecyr Cuoco, subordinado ao delegado Sérgio Paranhos Fleury, um dos mais violentos esbirros da história contemporânea.
Já no sofá da pequena casa em que morávamos no bairro de Campo Belo, na zona sul paulistana, os investigadores da repressão quebraram os seus dentinhos; mais tarde, você foi submetido a novos vexames na sede do DEOPS. Em seguida, na madrugada de 14 de janeiro de 1974, você foi levado a São Bernardo do Campo, onde moravam seus avós Carlos e Joana. Eles foram acordados com o barulho dos agentes que jogaram você no piso da sala…
Toda a sua vida foi marcada por esses acontecimentos. Quando você, anos mais tarde, tomou conhecimento do que viveu, você leu muito e estudou a história da repressão fascista. Em entrevista à repórter Solange Azevedo, da ISTO É, você sussurrou: “Minha família nunca conseguiu se recuperar totalmente dos abusos sofridos durante a ditadura… Muita gente ainda acha que não houve ditadura nem tortura no Brasil…”.
É isto mesmo, meu filho. Ainda há muita gente que não acredita que milhares de brasileiros e de brasileiras, de estrangeiros e de estrangeiras que viviam no Brasil, dedicados aos mais oprimidos e excluídos, tenham sido perseguidos e esmagados pela ditadura…”
Ainda há cidadãos, fardados ou não, no Brasil e na América Latina, que praticam e legitimam a tortura…
Definitivamente marcado pela dor…por sua dor e pelo sofrimento (inenarrável ) de sua mãe e de seus irmãos, você decidiu partir..
Cabe a mim, seu pai, a tarefa quase apenas de compartilhar a narração do seu calvário, de denunciar – como jornalista – os crimes da ditadura e de lutar para que dores e agonias, como as que você viveu, nunca mais aconteçam…
Do seu pai
Dermi Azevedo
Matéria original publicada em: https://vermelho.org.br/2021/09/01/dermi-azevedo-abnegacao-em-defesa-dos-direitos-humanos/?utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=dermi-azevedo-abnegacao-em-defesa-dos-direitos-humanos