Por Carolina de Mendonça e Luisa Lins*
A população em situação de rua sofre de uma invisibilidade histórica. Constantemente vítimas de violações de direitos, como o ocorrido na Praça da Sé (São Paulo – SP) entre 19 e 22 de agosto de 2004, quando policiais com justificativa de combate ao tráfico de drogas na região realizaram uma chacina com pessoas que estavam em situação de rua naquela região.
A população em situação de rua é estigmatizada e excluída dos direitos fundamentais de todos cidadãos brasileiros; direitos que são garantidos pela Constituição, conforme expressamente previsto em seu artigo 6° – que trata sobre os direitos sociais fundamentais – e na Lei da Reforma Psiquiátrica 10.2016, que garante o acesso ao tratamento no SUS, sem qualquer tipo de discriminação. Nilton Policena, acadêmico em serviço social e mobilizador do Movimento Nacional de Luta em Defesa da População em Situação de Rua (MNPR), concedeu entrevista à Frente Ampliada em Defesa da Saúde Mental, da Luta Antimanicomial e da Reforma Psiquiátrica (FASM) e analisou a conjuntura da oferta de serviços públicos, em especial o atendimento do SUS, para a população em situação de rua.
Estudo recente do Instituto de Pesquisa Econômica e Aplicada (Ipea) apontou um aumento de aproximadamente 140% de pessoas em situação de rua nos últimos oito anos no Brasil. As possíveis explicações para tal se dão pela crise econômica, aumento de desemprego e instabilidade empregatícia do país nos últimos anos. O contexto pandêmico aumentou a vulnerabilidade desse grupo, por conta da dificuldade em manter isolamento social e garantia de higiene e acesso à saúde.
FASM: Como os serviços de saúde, no SUS, atuam com a população em situação de rua?
Nilton: O SUS é a porta de entrada, muitas vezes a UPA [Unidades de Pronto-Atendimento] ou atendimento que tem com a população de rua, mas para a população em situação de rua ainda tem uma precariedade. Não é em muitos espaços que se tem o atendimento à população de rua, para chegar a ser diagnosticado e encaminhado para um centro mais especializado. Falando de saúde mental é complicado essa abordagem da população em situação de rua, em municípios pequenos onde não tem abordagem específica com a população em situação de rua, como Consultório na Rua.
Vivi dez anos em situação de rua e nunca tive uma abordagem social. Muitas vezes fui procurar hospitais, procurar UPAs e não fui atendido. E isso é a precariedade, tem muita gente que sofre de transtornos mentais e está bem abalada por causa de violências sofridas na rua e traumas que já vem de vínculos quebrados com a família. Não tem todo aquele suporte, ainda tem um pouco, sei que alguns profissionais fazem o que está em alcance, mas vejo que o SUS tem uma deficiência com a população em situação de rua nessa parte.
FASM: Como se dá a violência contra população em situação de rua?
Nilton: O preconceito é uma violência que a gente sofre diariamente, fora as agressões físicas essa exclusão da sociedade é uma violência que gera muitos traumas. Muitas vezes tu tenta sair dessa situação de vulnerabilidade social e tu não consegue. As portas são fechadas. É muito difícil ter amparo. Nossa legislação nos garante o trabalho, a assistência social, a previdência social, a saúde, mas na hora de cumprir essas políticas públicas para a população em situação de rua é muito difícil. E isso é uma violência constitucional, porque nós estamos fora de tudo.
A população em situação de rua não tem um projeto que estimule a saída da população em situação de rua. Se acontece um projeto, é com muita luta dos movimentos sociais para que aconteça. Não parte do poder público fazer essas ações, é muito complicado.
FASM: Atualmente há projetos em política pública para auxiliar a população em situação de rua?
Tem alguns projetos em andamento. Já havia um projeto no projeto de lei 2842/ 2015, que destina 3% dos projetos habitacionais sociais para a população em situação de rua. Já é um grande avanço. Mas não adianta serem destinados 3% dos projetos habitacionais para a população em situação de rua ou 30% de um outro plano. Não adianta oferecer se não tem os projetos.
Temos o Decreto nº 7053 que tem vários vieses de como lidar com política pública com população em situação de rua, mas não queremos políticas públicas exclusivas. Não queremos chegar num CAPS (Centro de Atenção Psicossocial) ou numa UPA e ter uma sala destinada à população em situação de rua, queremos ser assistidos juntos com as outras pessoas. Não queremos políticas públicas exclusivas, queremos ser incluídos nas políticas públicas que já existem.
Estamos amparados pelas leis, mas muitas vezes não são cumpridas as leis a nosso favor. Sempre contra. Costumam tipificar a população de rua como pessoas que são drogadas como pessoas que usam algum tipo de entorpecente, por isso está na rua.. Isso é mito. A maioria da população de rua quando saí pra rua não são dependentes de nada, mas essa pressão que fazem em não nos dar uma chance de sair das ruas nos leva muitas vezes ao uso do álcool, uso da droga. Muitas vezes a pessoa está fragilizada, com uma depressão, anda sozinho pela rua. Muitas pessoas têm uma psicose (sic.) por esses traumas sofridos seja pelos vínculos quebrados ou seja por uma abordagem hostil da brigada militar ou de outros órgãos que fazem a segurança pública.
FASM: Você trouxe a questão que por conta da situação das ruas algumas pessoas utilizam de forma abusiva álcool e outras drogas. Quais projetos para essa questão?
Nilton: A redução de danos. Nem todos conseguem ficar em abstinência, pois cada um tem uma forma de reagir a sua saída ou permanência nas ruas. Sou a favor da redução de danos, vai diminuir os males para a pessoa que não consegue largar. É um jeito que vi que muitos saíram da rua. Fora essa não tem muitas outras.
FASM: Há políticas públicas voltadas à questão da empregabilidade da população em situação de rua atualmente?
Nilton: Era para ter, não sei se está em vigor em São Paulo, também teria uma porcentagem das licitações dos trabalhos em obras voltadas à população em situação de rua. Mas é uma outra coisa que deixa muito a desejar, porque a população em situação de rua é vista como alguém que tem que trabalhar no serviço braçal. É um serviço gratificante, mas não podemos associar essa população sempre com trabalhos de limpeza e trabalhos braçais como construção civil.
Há muitas pessoas qualificadas em situação de rua que não têm perfil para trabalhos braçais, mas a maioria das portas que abrem são desses serviços. Aqui em Torres (RS) tem um projeto que é chamado “Frente de Trabalho” que é um projeto que leva as pessoas para limpar as ruas, pois aqui é uma cidade turística. Estamos tentando vincular com um projeto voltado a arte, pro turismo ou outras frentes que tenham a ver com a população. Não somente a parte braçal. Normalmente quando se olha são projetos de reciclagem, de sustentabilidade. Certo, é muito gratificante, além de gerar lucro poder cuidar da natureza. Mas não acho que seja a única porta que teria que estar aberta para população em situação de rua na questão de trabalho.
FASM: Para finalizarmos, caso tenha algum ponto que considera importante falar sobre o tema
Nilton: Esse mês de agosto é o mês de luta em defesa da população em situação de rua, devido à Chacina na Praça da Sé, onde foram brutalmente assassinadas. Não é um mês de alegria, é um mês de luta. Toda vez que a população em situação de rua é barrada na entrada de uma UPA, é barrada procurando emprego, é barrada em algum órgão público a gente volta a ter a mesma chacina. Acontece diariamente, não foi apenas no 19 de agosto [de 2004], a chacina da população em de rua ocorre quando tem uma repressão, quando tem truculência de órgãos que deveriam proteger.
Teve o fato do índio Galdino que foi queimado vivo na praça, pois acharam que ele era um mendigo, como disseram os que atearam fogo nele. Então, a pessoa em situação de rua pode morrer queimada? O descaso e a falta de preparo da nossa sociedade em ter um olhar mais sensível. Que muitos possam estar junto nessa luta que não é apenas dos movimentos sociais, mas de todo Brasil. É uma luta grandiosa e só juntos podemos ganhar.
E também gostaria de falar das comunidades terapêuticas que muitas vezes as pessoas em situação de rua são levadas para essas clínicas. Nesses locais essas pessoas têm trabalhos forçados e não tem nenhum auxílio, algum tratamento psicossocial. É degradante como tem várias pessoas sofrendo internações compulsórias por uso de substâncias. Somos totalmente contra esse tipo de prática, não só para população em situação de rua, mas para todas as pessoas. Não é possível ajudar alguém obrigando a algo, é preciso deixá-la no tempo dela.
A FASM está realizando no seu canal do youtube o ciclo de Debates Nacionais e apoia as Conferências Populares Antimanicomiais que estão acontecendo nos estados (RJ, SP, SC,) ciclo de Debates Nacionais preparatórios à I Conferência Popular Nacional de Saúde Mental Antimanicomial com o tema + Liberdade + Diversidade + Direitos = Democracia será realizada de 9 a 12 de outubro de 2021. As discussões do “FASM Esperançar – Série Debates Nacionais” ocorrem no Youtube da FASM e são abertas a todos que desejam conhecer mais sobre as interfaces entre a luta antimanicomial e a liberdade.
(*) Carolina de Mendonça, graduanda em Psicologia, colunista na Revista Badaró, colaboradora na Frente Ampliada em Defesa da Saúde Mental, da Reforma Psiquiátrica e Luta Antimanicomial (FASM). Luisa Lins, jornalista, envolvida com temáticas relacionadas a direitos humanos e colaboradora da FASM.