Jogos e sua preservação: uma história complicada

Preservação de jogos

Por Guilherme Rodrigues

No dia 22 de Março de 1996, um dos jogos mais influentes de todos os tempos foi lançado – Resident Evil, para o primeiro Playstation. Produzido pela japonesa Capcom, o título foi responsável por popularizar de modo definitivo o sub gênero survival horror, inaugurado por Alone In The Dark quatro anos antes. Resident Evil colocava os jogadores na pele de um time de policiais da cidade de Racoon City, que enfrentava zumbis e outras criaturas mutantes em uma misteriosa mansão, cheia de esconderijos e segredos relacionados à enigmática empresa Umbrella Corporation. 

Dessa data até os dias de hoje, a franquia Resident Evil lançou mais 25 games, com o último, Resident Evil Village, de maio de 2021, vendendo três milhões de cópias em quatro dias – um dos maiores sucessos da saga até hoje. Isso sem contar as produções fora do mundo dos games, como os seis filmes estrelados por Milla Jovovich, lançados entre 2002 e 2016, que geraram U$ 1,2 bilhão em bilheteria, sendo a série de filmes de zumbis mais rentável de todos os tempos.

Diante disso, era de se esperar que o ponto de partida dessa história superlativa fosse algo de fácil acesso, para que todos aqueles interessados na evolução da franquia pudessem ter contato com os primórdios da mesma. Mas não é o caso, já que somente o remake do título está disponível para plataformas modernas como o Playstation 4. O original, aquele lançado em 1996, não está acessível de modo rápido e prático. O mesmo vale para os dois jogos seguintes da série, Resident Evil 2 e 3, que tiveram seus respectivos remakes lançados em 2019 e 2020.

A Capcom não é a única empresa a tratar de modo leviano o próprio passado. Em março deste ano, a Sony, que produz o console Playstation e tem sob sua tutela diversos estúdios de jogos, decidiu encerrar o acesso a lojas online dos consoles Playstation 3, PSP e Playstation Vita, intitulada PS Store. A medida encerraria o acesso a mais de 2 mil títulos, com 138 desses disponíveis somente pela loja virtual, jogos que desapareciam totalmente caso a Sony prosseguisse com a medida, que foi revertida devido ao protesto dos consumidores. 


Abertura do primeiro Resident Evil

Outro exemplo recente é a Ubisoft, que lançou em 2010 Scott Pilgrim vs The World: The Game, de modo exclusivamente digital para PS3 e Xbox 360, até o jogo desaparecer em 2014, devido ao possível vencimento da licença. Ele só voltou a ver a luz do dia em 2021, após Bryan Lee O’Malley, criador de Scott Pilgrim, e Edgar Wright, diretor da adaptação cinematográfica, apelarem à Ubisoft para o título ser relançado em comemoração aos 10 anos do filme.

O que os exemplos acima demonstram é que, tanto para jogos antigos quanto para obras recentes, a indústria dos videogames atua de maneira um tanto duvidosa na preservação de sua própria memória, o que só acontece contra a vontade das empresas. O maior testamento disso é a relação destas com o principal meio de preservação de jogos atualmente, que é a emulação.

Emulação é, essencialmente, imitar uma plataforma dentro de outra. Ao baixar um programa como VirtuaNES em um notebook, permite-se que esse dispositivo possa imitar as funções do saudoso Nintendinho, como rodar jogos do console. Isso se dá por meio de arquivos ROM contendo as informações de jogos do NES. Desse modo, é possível uma pessoa em 2021 jogar o primeiro Super Mario Bros. como se fosse no próprio console.

Esse sistema oferece aos usuários praticidade e acesso a uma biblioteca gigante de games sem depender necessariamente de um outro console ou da boa vontade das empresas em disponibilizar o jogo – e, acima de tudo, de modo gratuito. Tudo isso devido ao trabalho de entusiastas voluntários. O que poderia ser uma prática reconhecida pela sua importância na preservação da história dos games é na verdade frequentemente atacada pelas empresas que não se preocuparam com a preservação em primeiro lugar.


Além de ser famosa pelos games, a Nintendo também é conhecida pela rigidez legal com suas obras

Uma das maiores adversárias da emulação é a Nintendo, cuja ação contra essa prática em 2018 resultou no fechamento de diversos sites que disponibilizavam ROMs da empresa para o público, e que em junho deste ano ganhou uma ação multimilionária contra o site RomUniverse.  Em sua página de questionamentos legais, a Nintendo se apresenta veementemente contra a prática. 

Uma das perguntas no site em questão é a seguinte: “Pessoas que fazem emuladores Nintendo e ROMs estão ajudando a disponibilizar jogos antigos que não estão mais sendo vendidos pelo proprietário dos direitos autorais. Isso não prejudica ninguém e permite que os jogadores joguem seus velhos favoritos. Qual é o problema?”. A resposta é curta e grossa: “Porque é ilegal”, seguida de uma dissertação sobre leis de Copyright. Uma parte dessa resposta é bastante curiosa, e traz à tona um episódio muito simbólico da importância da emulação para o ecossistema dos jogos.

“A Nintendo é famosa por trazer de volta à vida seus personagens populares para seus sistemas mais recentes, por exemplo, Mario e Donkey Kong desfrutaram de suas aventuras em todas as plataformas Nintendo”, diz a empresa no texto. Isso, de fato, é verdade – não faltam maneiras de acessar essas obras mais famosas, mas há um porém nisso tudo. 

A Nintendo tem o seu próprio sistema de emulação, chamado “Virtual Console”, e por meio dele é possível jogar o Super Mario Bros. original de NES em consoles recentes da empresa. Em 2016, durante a Game Developer’s Conference (Conferência de Desenvolvedores de Jogos), Frank Cifaldi, diretor da Video Games History Foundation (Fundação da História dos Videogames), revelou que, ao se olhar o código dessa versão de Super Mario Bros., é possível encontrar uma linha de código que só existe em jogos que foram convertidos para ROM, ou seja, que tiveram seu conteúdo transferido do cartucho para um computador. Com isso, Cifaldi é categórico em afirmar que a Nintendo baixou um ROM em algum dos sites que ela procurou fechar e o vendeu de volta para o público.


Frank Cifaldi na GDC 2016

Além da hipocrisia, o episódio mostra algo preocupante: a própria Nintendo não tem acesso fácil a um dos jogos que são quase sinônimos da empresa, evidenciando, novamente, o quanto a preservação não é uma preocupação. Em entrevista para a Gaming Bible, Iain Simons, diretor do National Videogame Museum (Museu Nacional do Videogame), diz que dentro das empresas simplesmente não há um processo de armazenamento e preservação de materiais. “Estúdios realizam outros projetos, e arquivos gradualmente se perdem. Jogos nos anos 80 eram desenvolvidos muito rapidamente, sem serem documentados devidamente, e há histórias de disquetes contendo arquivos sendo jogados fora por serem considerados lixo”, declara. 

Cifaldi, na mesma conferência onde o uso de ROM’s pela Nintendo foi revelado, trouxe outro dado triste: de 16 jogos notáveis do ano de 1989, somente 5 estavam disponíveis de maneira legal, e somente um em mais de uma plataforma até a data da conferência. Entre os títulos disponíveis, está o primeiro Prince Of Persia, considerado um dos jogos mais importantes de todos os tempos, que trouxe uma nova roupagem para os chamados jogos de plataforma.

Por que isso acontece com tanta frequência? Muito se deve ao fato de que as empresas não entendem suas produções interativas como um objeto cultural, mas única e exclusivamente como um produto a ser disponibilizado quando há interesse financeiro, que será substituído quando o próximo produto chegar, ou uma versão mais atualizada, como foi o caso do Resident Evil original. Na visão de Simons, as empresas nem mesmo têm a responsabilidade de sustentar esse acesso: “A discussão tem que ser de plataformas e desenvolvedores trabalhando em conjunto com instituições de preservação, para garantir o seu acesso legal”, diz ele. 

Essa preservação importa não somente para que uma pessoa comum possa resgatar a sensação de jogar seu jogo favorito, mas também para que estudos acadêmicos sobre a área possam se desenvolver sem recorrer a meios ilegais para isso, ajudando a compreender plenamente a evolução da tecnologia, assim como preservar o trabalho ao qual centenas de pessoas dedicaram uma parte das suas vida.

Guilherme Rodrigues é jornalista e escreve sobre cultura pop desde 2018. Atualmente pode ser encontrado nos sites Corre! Mídia, Senta Aí e Cineplot.

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