25 anos do Carandiru: o massacre que não terminou

Texto originalmente publicado no blog da Maria Carolina Trevisan

Massacre do Carandiru: detentos monstram pano sujo de sangue da Casa de Detenção de São Paulo, após a intervenção da Polícia Militar. (Foto: Marlene Bergamo/Folhapress)

A chaga deixada pelo Massacre do Carandiru se aprofundou nesses 25 anos. Agravada pela falta de responsabilização de autoridades e agentes do Estado pelas 111 mortes sob sua custódia, a ferida do Carandiru se aprofunda hoje no encarceramento em massa e na violência policial – dois dos principais elementos que permitiram o massacre. Agrega-se a isso o crescente poder das facções e a desestruturação do Estado dando espaço a vertentes fascistas, um barril de pólvora constante.

Toda vez que um comandante geral da Polícia Militar de São Paulo assume a corporação e repete que “não houve massacre, a ferida supura e põe em risco a população mais sujeita à violência policial: negros e pobres. A afirmação que geralmente se segue tenta explicar que a invasão ao Carandiru foi “legítima e necessária”, e é dita sempre que há uma oportunidade.

Foram exatamente essas palavras que o ex-governador de São Paulo, Luiz Antônio Fleury Filho, responsável pela atuação da polícia naquele 2 de outubro de 1992, usou em seu testemunho em 2013, para justificar a entrada violenta no Pavilhão 9 da Casa de Detenção de São Paulo. Acrescentou ainda uma outra justificativa: “quem não reagiu está vivo”, supondo o uso da legítima defesa, apesar de apenas 15 policiais terem se ferido durante a intervenção. Fleury emprestou a expressão do atual governador paulista, Geraldo Alckmin, pronunciada quando a Rota (grupo de elite da PM-SP) matou nove suspeitos, em 2012.

As condições que possibilitaram que o Massacre do Carandiru ocorresse continuam firmes. “Acho até que pioraram”, afirma Deborah Duprat, procuradora federal dos Direitos do Cidadão e ex vice-procuradora geral da República. “Nós vivemos na atualidade a cultura do medo. E o medo torna todas essas práticas efetivas mais violentas.”

VEJA TAMBÉM: Três visões do Carandiru – Relatos de agentes, sobreviventes e PMs

Em janeiro deste ano, 120 pessoas foram mortas em presídios da Amazônia, Roraima e Rio Grande do Norte. Em reação, o Ministério da Justiça e Cidadania criou o Grupo Nacional de Intervenção Penitenciária, a princípio para controlar situações pontuais. Porém, de acordo com Deborah, esse grupo permaneceu dois meses em um presídio no Rio Grande do Norte.

“É um grupo que atua suprimindo todo e qualquer direito dos presos numa situação de rebelião”, alerta a procuradora. “Na hora em que essa força sai, a revolta acumulada pode gerar uma reação ainda muito maior do que a que provocou a primeira rebelião. Acho que estamos num cenário muito preocupante em que se naturalizou a presença de policiais dentro das prisões sem quaisquer protocolos prévios, sem controle do Ministério Público sobre essa força que está dentro das prisões e nas ruas. Isso me preocupa bastante.”

Pelo menos 111 cidadãos aprisionados foram mortos, 85 dentro das celas. Desses, 89 ainda não haviam sido julgados. A polícia disparou 515 vezes. Grande parte foram tiros fatais.

Laudo mostra que preso estava rendido e com as mãos na cabeça ao ser executado no Massacre.

Um estudo sobre os laudos do IML acerca dos mortos no Massacre constatou: a ação da polícia teve características de operações táticas de “incapacitação imediata”, cujo objetivo é produzir a morte do adversário, atingindo alvos específicos do corpo como cabeça, pescoço e tronco. “Durante a observação dos 111 laudos necroscópicos a situação de rendição e impotência à qual se encontravam os detentos foi especialmente evidenciada pela presença de sinais de defesa em membros superiores dos cadáveres conforme relataram os laudos”, escreveu a enfermeira Nanci Tortoreto Christovão em sua tese de mestrado na DireitoGV.

Não há legítima defesa contra quem está rendido.

A importância da memória

A invasão ao Carandiru ocorreu em um momento em que a democracia estava se estabelecendo no país. A Constituição de 1988 acabara de ser promulgada e buscava ratificar direitos. A brutalidade do Massacre apenas quatro anos depois desse pacto social revelou a negação aos apelos em relação aos direitos humanos e demonstrou a fragilidade da democracia.

Pior que isso, a reação àquela violência mostrou o desejo da sociedade de que aniquilar as vidas encarceradas, a sanha por punição e vingança, o medo e a insegurança.

“A aplicação da justiça penal pode ser identificada como o último reduto do autoritarismo digno da ditadura militar. Mais que resquício, ela é a base desse autoritarismo”, afirma Luciana Zaffalon, pesquisadora da Fundação Getúlio Vargas e ex-ouvidora externa da Defensoria Pública de São Paulo. “O Poder Judiciário foi o único dos poderes da República que nem sequer se aproximou da ideia da transição.”

A história do Massacre do Carandiru diz muito sobre o funcionamento da Justiça até hoje. Talvez por isso, o empenho em apagar a sua memória. Um dos principais atores na tentativa de silenciar o Massacre é o Tribunal de Justiça de São Paulo. Em 2006, declarou a absolvição do coronel Ubiratan Guimarães, condenado a mais de 600 anos de prisão em júri popular por chefiar a ação policial. Dez anos depois, o desembargador Ivan Sartori afirmou que “não houve massacre” e pediu o anulamento e absolvição do júri popular que condenou os policiais que participaram do Massacre, em um dos mais longos e complexos julgamentos da história brasileira. Nesses 25 anos, o TJSP vem também diminuindo sistematicamente o valor das indenizações das famílias das vítimas, como demonstram as professoras Maíra Rocha Machado e Marta Machado, no livro Carandiru não é coisa do passado.

“O ciclo de violências, autoritarismos e silenciamentos se renova a cada dia e a responsabilidade da Justiça precisa estar no centro dos debates”, alerta Luciana. “Apagar a história de um Massacre da magnitude do vivenciado no Carandiru permite que sigamos naturalizando a barbárie e é mesmo muito difícil refutar qualquer conclusão que aponte que governo e Justiça se empenham para isso.”

Corredor alagado de sangue no pavilhão da Casa de Detenção. (Foto: Niels Andreas/Folhapress)

O apagamento da memória é perigoso porque demonstra, de certa forma, que aquilo é um exemplo a ser seguido. A falta de reconhecimento por parte do Estado de que houve um Massacre reforça a tentativa de emudecer o que ocorreu.

As iniciativas para esquecer o Massacre acontecem desde o primeiro minuto em que cerca de 350 policiais entraram na Casa de Detenção naquela tarde de 2 de outubro de 1992. O relatório enviado à Comissão Interamericana de Direitos Humanos, em 2000, com a investigação feita por parlamentares da Assembleia Legislativa de São Paulo, revela uma série de ações de encobrimento dos fatos: os juízes presentes (que hoje aparecem como testemunhas de defesa dos policiais no voto de Sartori) foram impedidos de entrar nos pavilhões no momento da rendição, enquanto presos que testemunharam o início do Massacre continuavam a ser executados (a maioria das vítimas foi alvejada nos primeiros 30 minutos de ação); o sangue foi lavado do cenário das mortes; fotógrafos tiveram o acesso bloqueado; informações oficiais sobre policiais feridos foram exageradas; não foram feitas as provas balísticas; 13 armas de fogo foram plantadas e atribuídas aos detentos; os primeiros oito feridos leves encaminhados ao hospital foram, aparentemente, executados no trajeto.

Também demorou muito para que o Massacre fosse oficialmente divulgado. Na manhã seguinte, os jornais informaram a morte de oito presos em consequência de uma “rebelião”. O número real de mortos só foi comunicado à imprensa e aos familiares no dia 3 de outubro, às 16h30, meia hora depois de cerradas as urnas da eleição municipal realizada naquela data. Só em 4 de outubro as capas dos periódicos trouxeram a notícia correta.

Eleitores paulistanos escolheram Paulo Maluf (PDS) e Eduardo Suplicy (PT) para disputar o segundo turno da Prefeitura de São Paulo. Suplicy foi um dos primeiros a entrar no presídio após o Massacre. Maluf declarou ser admirador da Rota, tropa que mais matou na intervenção que levou ao Massacre. Em 15 de novembro, Maluf foi eleito prefeito da capital paulista com 58% dos votos contra 41,9% de Suplicy.

As tentativas de silenciamento continuam acontecendo. Em 2002, o governador Geraldo Alckmin (PSDB) implodiu a Casa de Detenção e no lugar ergueu o Parque da Juventude, que não faz nenhuma menção aos mortos no Massacre. Um Projeto de Lei que tramita na Assembleia Legislativa propõe trocar o nome da estação de Metrô Carandiru para Parque da Juventude.

“No Museu Penitenciário de São Paulo não há referência ao Massacre, a sala ‘Memória do Carandiru’ continua vazia”, alerta o professor de Direitos Humanos Guilherme de Almeida, da Faculdade de Direito da USP. “É fundamental o Estado brasileiro reconhecer a ocorrência de graves violações de direitos humanos por parte dos agentes estatais, como o caso do Carandiru. Enquanto isso não acontecer, não conseguiremos aprofundar a democracia no País”, completa.

O ciclo da injustiça

Fernanda Vicentina da Silva, filha de uma das vítimas

Fernanda Vicentina da Silva tinha 9 anos quando seu pai, Antonio Querino da Silva, foi assassinado no Massacre. Naquele 2 de outubro, ela esperava no portão da Casa de Detenção para o dia de visita junto com dezenas de famílias.

Como grande parte dos familiares dos presos do Carandiru, Fernanda vivia em condição de extrema vulnerabilidade. A mãe abandonou Fernanda e o irmão. Moraram na rua até que uma tia apareceu para tomar conta deles.

Fernanda tem breves lembrança do pai. Diz que ele costurava bonecas para dar de presente a ela no dia de visita. O laço afetivo que ela construiu com Antonio é o enorme desejo de ter tido um pai, ainda que ele tivesse cometido crimes. “O mais difícil é que não consigo mais enxergar o rosto dele. Eu sonho com ele e tenho muito amor por ele”, diz. Fernanda tem três filhos e renda familiar de 700 reais, que tira da venda de material reciclado.

Ela não sabia que tinha direito a indenização. Por isso, foi uma das últimas a pedir a reparação porque por acaso o advogado Carlos Klomfahs ouviu falar da precariedade de sua situação e decidiu ajudar. A indenização estabelecida pela Justiça para Fernanda, em torno de 20 mil reais, é uma das mais baixas dos cerca de 73 casos julgados procedentes. A procuradora do Estado de São Paulo Mirna Cianci, na defesa do Estado, alegou que Antonio “não era um exemplo de pai” e que o fato ocorreu quando seu pai estava recolhido ao cárcere “portanto, despido de laços familiares, a ponto de a mãe abandoná-los à própria sorte, provavelmente esgotada por uma condição que lhe foi imposta em seu prejuízo, de ter que criar sem qualquer auxílio dois filhos menores, de pai criminoso”.

A procuradora afirma que estava cumprindo o papel de defender o Estado ao argumentar pelo baixo valor de uma indenização por dano moral. “É diferente um pai que você convive de um pai que leva uma vida criminosa e fica longe”, explica. O advogado está recorrendo.

A vulnerabilidade se agrava a cada dia.


Reatualização do Massacre

Os presos mortos no IML (Instituto Médico Legal), no dia 4 de outubro. (Foto: Marlene Bergamo/Folhapress)

“O Massacre do Carandiru em nenhuma medida serviu de baliza moral para a sociedade”, afirma o sociólogo Matheus Gato de Jesus, pós doutorando na Universidade de Harvard. “Poderia ter sido um ponto de inflexão social para que esse tipo de prática violenta e uma noção de segurança e desenvolvimento, não fosse consumida com tamanha criminalização dos pretos e pobres.”

O caminho foi oposto. O genocídio da população negra continua ocorrendo de maneira naturalizada, sem causar comoção ou mudanças na sociedade. São mais de 40 mil jovens negros assassinados por ano no Brasil, cerca de 70% do total das vítimas de homicídio. Há uma enorme tolerância ao sofrimento negro. O caso de Rafael Braga, agora tuberculoso pelas condições de vida no presídio, é emblemático nesse sentido.

O encarceramento mira esse grupo populacional: duas a cada três pessoas privadas de liberdade é negra. “O que torna o acontecimento no Carandiru um Massacre não é só o fato em si, mas toda a gama de violência que se vê chancelada em um ato daquele”, afirma Matheus.

No primeiro semestre de 2017, a letalidade da Polícia Militar de São Paulo foi a maior dos últimos 14 anos. Tirou a vida de 459 pessoas, segundo a Secretaria de Segurança Pública de São Paulo.

O Massacre do Carandiru também representa a ideia de que “bandido bom é bandido morto”. “A experiência da prisão é a morte em vida. Nos presídios brasileiros a chance de morrer é 10 vezes maior do que fora. Quando o Estado decide liquidar a vida dos presos, no fundo, o que estamos colocando em prática é essa política criminal violadora de direitos humanos, autoritária”, alerta Cristiano Maronna, presidente do Instituto Brasileiros de Ciências Criminais.

Há mais de 620 mil presos no sistema em que cabem 400 mil. “São campos de concentração onde a tortura é sistemática”, afirma Maronna. O Massacre do Carandiru é o símbolo da violação de direitos dos presos.

É a gestão penal da miséria em que o sistema de justiça criminal atua como protagonista da manutenção dessa situação violadora sistemática. “Tudo isso é uma opção que tem no hiperpunitivismo as ferramentas que permitem esse tipo de gestão. O sistema de justiça criminal precisa ser repensado e orientado segundo outros critérios.”

De acordo com Maronna, a prisão é o monumento ao fracasso do processo civilizatório. Por isso a urgente necessidade de diversificar as formas de punir e evitar a prisão como regra. “Os excluídos têm a prisão como destino”, conclui.

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