Artigo de Rodrigo Perez Oliveira, professor de Teoria da História na UFBA, com ilustração de Humberto
Sei bem que o foco está em Lula, como não poderia deixar de ser, mas peço licença ao leitor para falar um cadinho sobre Zé Dirceu, mais especificamente sobre sua última entrevista, publicada em 28 de abril na “Folha de São Paulo”.
É que tenho a sensação que falamos pouco sobre Zé Dirceu, aquele que talvez seja o melhor quadro da história da esquerda brasileira.
Falar pouco sobre Zé Dirceu é um erro gravíssimo, pois foi exatamente por isso que não demos a devida atenção ao que aconteceu na Ação Penal 470, no julgamento do “Mensalão”.
Tudo começou ali: a criminalização da esquerda, a condenação seletiva de lideranças populares com base em indícios, o concubinato entre o Sistema de Justiça e a mídia hegemônica. O mensalão foi o ensaio geral do golpe. Mas não é disso que quero falar. Quero falar mesmo é da entrevista, pois temos ali uma aula de política.
Mas como assim, “política”? O que é “política”?
A definição mais antiga de política que sobreviveu ao tempo e chegou a nós foi desenvolvida por Aristóteles em algum momento no IV século a.c.
O grego nos apresenta uma definição de “política” que me parece ser a chave ideal para a compreensão da trajetória pública de José Dirceu, algo que fica muito claro na entrevista que o ex-ministro concedeu à “Folha de São Paulo”.
“EU NÃO POSSO BRIGAR COM A CADEIA.”
Esse é o título, em letras garrafais, da entrevista.
Sei que à primeira vista parece conformismo.
Parece que Zé Dirceu é um velho fraco, entregue, passivo. Mas tão logo passamos pelo título essa sensação se dilui no ar. Não é fraqueza, não é fragilidade. É inteligência política. É inteligência política no sentido aristotélico.
Vejamos como é possível esse salto da antiguidade grega ao Brasil contemporâneo, de Aristóteles a Zé Dirceu.
No tratado “Ética a Nicômaco”, Aristóteles faz uma crítica à ética política platônica. Para Platão, a ética na política deveria ser fundada na ideia de “bem comum”. Ou seja, o político deveria agir conduzido por ideias universais, gerais, a respeito do bem e do mal.
Aristóteles, antecipando em séculos o que seria formulado de maneira mais clara por autores como Tomás de Aquino e Maquiavel, diz que não é bem assim. Aristóteles diz que na política a ética precisa ser específica, que não pode deixar se levar por generalidades, pois cada evento político é único.
Nas palavras do próprio Aristóteles:
“Uma vez que a presente investigação não visa ao conhecimento teórico como as outras – porque não investigamos para saber o que é a virtude, mas a fim de nos tornarmos bons, do contrário o nosso estudo seria inútil -, devemos examinar agora a natureza dos atos, isto é, como devemos praticá-los; pois que, como dissemos, eles determinam a natureza dos estados de caráter que daí surgem. (ARISTÓTELES, 1991, p. 30)”.
Sei que texto é meio truncado, confuso, mas o sentido é fácil, fácil de entender. O Grego tá falando que o objetivo do estudo político não é viajar em teorias, mas, sim, se debruçar sobre as especificidades dos fatos. Aristóteles chamou de “phronesis” essa ética circunstanciada, adequada aos eventos políticos.
Caberia, então, ao homem político a atuação sempre contextualizada, levando em conta os limites das circunstâncias. Quando a realidade se apresenta na sua dimensão mais opressora, restaria ao político entendê-la, sabendo que somente é possível modificá-la parcialmente, dentro dos limites que já estão postos. O político seria, nesse sentido, o especialista nas possibilidades e não herói quixotesco que luta contra moinhos de vento como quem se debate com poderosos gigantes.
Mas o que isso tudo tem a ver com Zé Dirceu?
Para responder, voltamos ao título da entrevista.
“EU NÃO POSSO BRIGAR COM A CADEIA”.
Zé Dirceu sabe muito bem que o Estado é o objeto das disputas políticas. Na prática, o que as forças políticas fazem é disputar o Estado.
Sempre que se envolvem em campanha eleitoral, sempre que fomentam um golpe ou sempre que trocam chumbo e pólvora em guerra civil, é o controle do Estado o objetivo dos grupos organizados politicamente.
E o Estado é um latifúndio enorme, muito grande mesmo.
Dificilmente, um grupo consegue ocupar sozinho todo o latifúndio do Estado. Por isso, as disputas pelo controle do Estado não se dão apenas fora dele, onde os grupos excluídos do poder tentam entrar. As disputas também acontecem dentro do próprio Estado, onde os grupos já estabelecidos disputam território, tentam aumentar o espaço do seu quinhão de poder e, por consequência, diminuir o tamanho do quinhão do grupo rival.
Em 2003, quando Lula subiu a rampa, o campo popular ocupou um pedaço do Estado. um quinhão relevante e importante, mas apenas um lote. Os outros lotes, os pedações, sempre estiveram sob o controle das forças do atraso. Quem pensou diferente, quem achou que tendo apenas a Presidência da República seria possível revolucionar a sociedade brasileira foi ingênuo, muito ingênuo. Em política, a ingenuidade é o pior dos vícios.
Zé Dirceu, que de ingênuo nunca teve nada, sabe muito bem que o Estado brasileiro está completamente ocupado pelas forças do atraso. Esse foi o resultado político mais nefasto do golpe. As forças do atraso, que já ocupavam o Legislativo e o Sistema de Justiça, agora estão também com o controle do Poder Executivo. Numa situação dessas, não sobra muito espaço para devaneios e esperanças tolas.
“O país vive uma situação de insegurança e instabilidade, de violação dos direitos e garantias individuais. O aparato judicial policial se transformou em polícia política”.
Zé Dirceu sabe que para sua própria saúde mental é importante não brigar com a cadeia. Ele sabe que precisa conviver amigavelmente com Eduardo Cunha, com Palocci e outros que estão por lá. Pouco importa se Cunha foi um dos principais artífices do golpe. Pouco importa se Palocci é o antigo companheiro desonrado. Dentro da cadeia são todos presos, dividem os mesmos metros quadrados. É bom que o convívio seja cordial.
Não adianta brigar com uma realidade tão difícil, tão opressora. Não adianta evocar uma ideia abstrata de “justiça” segundo a qual inocentes não são presos e todos são iguais perante a lei. Não é isso que está acontecendo no Brasil, e já há algum tempo.
Mas não confundam a agudeza de percepção com conformismo. Mesmo com todas as dificuldades, há algo a ser feito, e é disso que Zé Dirceu fala na entrevista. A entrevista tem, justamente, essa função. Zé Dirceu está falando para seus correligionários que a ação precisa ser calculada dentro das possibilidades abertas pela realidade.
O campo popular não ocupou as Forças Armadas, não ocupou os aparelhos policiais do Estado. Não adianta acalentar o desejo de resistência pela força. Zé Dirceu já viveu muito, já passou por muita coisa, para saber que somente devemos usar a força quando temos alguma chance de vencer, quando temos algum poder de fogo. Não é esse o caso, não temos nenhum poder de fogo.
Fazemos o que, então?
Zé Dirceu explica, com didática de professor: “Como minha vida é o PT e o projeto que Lula lidera, eu tenho que me preparar para continuar fazendo política. Eu não posso me render ao fato de que vou ser preso.”
O melhor a fazer, então, é se adaptar às circunstâncias continuar fazendo política. A agenda de José Dirceu está focada menos na sua liberdade pessoal e mais no seu direito de continuar fazendo política, mesmo que preso, ainda que de dentro da cadeia.
Trata-se de Franciscanismo? De um sentimento nobre de abnegação? Zé Dirceu não deseja ser solto, ter o corpo livre, poder ir e vir sem constrangimentos?
É claro que ele quer ser solto. Porém, ao olhar pra realidade, o cabra percebe que no atual estado das coisas, o desejo é improvável.
Desejo improvável deve ser evitado.
Desejo improvável inviabiliza a capacidade de desejar, pois quando desejamos o improvável, deixamos de desejar o possível.
O possível, para José Dirceu, hoje, é continuar fazendo política, é continuar disputando o Estado, agora fora dele, completamente fora dele. Continuar fazendo política e esperando um momento político melhor, onde seja possível voltar a ocupar um quinhão do Estado.
Pra isso, tem que investir na campanha eleitoral, tem que eleger senadores, deputados. Pra isso, é importante eleger um presidente que seja disputável. Zé Dirceu sabe que a candidatura de Lula é improvável, quase impossível.
Zé Dirceu sabe que não existe um herdeiro claro e que já começarão as lutas fratricidas pelo legado de Lula. Por isso, o fundamental é evitar a eleição de um tucano puro sangue, de um candidato explicitamente vinculado aos interesses do mercado. A todo custo, o campo popular deve impedir a vitória de Geraldo Alckmin, que na prática significaria a lavagem eleitoral do golpe.
Pra isso, diz Zé Dirceu, até mesmo a candidatura de Joaquim Barbosa pode ser importante, útil.
Não custa lembrar que Joaquim Barbosa foi o principal algoz de José Dirceu.
Dirceu, preso, cumprindo a pena que lhe foi imposta por Barbosa, afirma que a candidatura do seu carrasco pode ser cooptada pela esquerda. Na ausência de Lula, na ausência de um herdeiro viável, se só sobrar Joaquim Barbosa como adversário do candidato do golpe, o campo popular não deve hesitar em escolher um lado.
Se o voto em Barbosa significar o veto a Alckmin, o campo popular não pode hesitar. O mesmo vale para Ciro Gomes, para Boulos ou para qualquer outra candidatura que seja minimamente disputável pela esquerda.
Encerro com uma confissão pessoal.
Aprendo sobre política sempre que leio Aristóteles. Aprendo sobre política sempre que leio e ouço Zé Dirceu. É que os dois estão dizendo algo muito parecido.
Estão dizendo que, no limite, o homem político deve agir como Sancho, como o leal escudeiro que com alguma impaciência e com agudo senso de realidade diz a Quixote: “Moinhos de vento não são gigantes. Lide com isso e pare com os devaneios”.
Uma resposta
As vezes penso como a minha opinião estava sendo ridicularizada quando falava a respeito do Ze, cara fico imaginando o sabor da sutileza em suas opinioes e em suas pronúncias, o Zé Dirceu, e e sempre sera um expoente que a esquerda tem que preservar e aprender com o mestre. Obrigado Ze.