Virada do progressismo na eleição da Costa Rica inspira esquerda latinoamericana

Epsy Campbell, eleita vice-presidenta da Costa Rica - a primeira negra a ocupar esse cargo na América Latina

A democracia mais antiga da América Latina renovou na primeira semana de abril sua escolha pelo progressismo na disputa que elegeu Carlos Alvarado e Epsy Campbell, presidente e vice-presidenta da Costa Rica pelos próximos quatro anos. Conjugando renovação e representatividade a chapa presidencial reverteu um cenário que parecia colocar os costaricenses na rota conservadora da região ao garantir sequência ao projeto de centro esquerda responsável pela diminuição da pobreza e avanços em temas de direitos humanos.

Numa eleição dominada por discussões de viés religioso, provocadas pela consulta acerca do matrimônio igualitário feita pelo atual governo junto à Corte Interamericana de Direitos Humanos, que determinou a adoção da medida, a questão racial trazida pela chegada de Epsy à vice presidência como a primeira negra latinoamericana a ocupar tal cargo foi mais uma das reviravoltas a partir da intensa campanha promovida pelos apoiadores do Partido Ação Cidadã (PAC) nas ruas e redes durante os sessenta dias de segundo turno.

Poucas horas depois do anúncio do resultado com 60% de votos para o PAC, do atual presidente Guillermo Solís, a professora Maria Yglesias demonstrava alívio diante do contundente triunfo. “Não posso explicar a alegria, era uma eleição quase perdida. Pensava como ser possível a descrença pela dignidade humana, mas a maioria por fim mostrou que acredita nas instituições. É uma forte mensagem de esperança”, afirmou durante a comemoração.

O quadro crítico apontado tinha como referência a chamada primeira volta, quando o domínio dos candidatos conservadores revelou-se na soma de um milhão e duzentos mil votos para a direita, alcançando 60% do eleitorado que compareceu às urnas. A liderança de Fabricio Alvarado e a vantagem de contar no segundo turno com o apoio da maior parte dos concorrentes  derrotados indicava a consolidação da candidatura do deputado do Partido Restauração Nacional (PRN) para chegar à presidência. A situação começou a alterar-se a partir da iniciativa de um grupo de cidadãos que combinou a atuação nas redes sociais junto com ações fora delas.

O Coalizão Costa Rica em menos de três dias aglutinou mais de 270 mil pessoas nas plataformas digitais e gerou uma rede nacional de mais de nove mil voluntários, números impressionantes para o país formado por quatro milhões e meio de pessoas. Apesar de ser o local da América Latina com índices mais altos de acesso à banda móvel (95%) e de domicílios com internet (60%), de acordo com a Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal), as atividades de corpo a corpo, a exemplo de debates em comunidades e distribuição de material gráfico foram determinantes para furar a bolha virtual. Em dois meses, Carlos e Epsy saltaram de 440 mil para 1,3 milhão de votos.

“O que nasceu no facebook materializou-se e passou de ser um meio digital para transformar-se em um movimento cidadão que não se havia visto há pelo menos uma década”, relata Esteban Salazar, fundador do movimento. “A população foi vítima de uma profunda manipulação mediática sobre a questão do matrimônio igualitário, isso fez com que evangélicos e parte da Igreja Católica apoiassem inicialmente Fabrício, mas prevaleceu a razão pela opção equilibrada que defende o humanismo”, complementou.

A potência evangélica

A Costa Rica parece repetir o caminho de outros países latinos que atualmente apresentam volumosa  participação de religiosos na atividade política. O processo já naturalizado pelo Brasil diante do poder crescente de influência das bancadas evangélicas será de alguma forma vivenciado pelos costaricenses a partir da nova Assembleia Legislativa.  “Os evangélicos são mais de 20% e colocaram-se como uma força que chegou para ficar. A direita conservadora nacional nasceu com o PRN e com velhos conhecidos que anteriormente não tinham relevância, mas  ganharam peso”, observa Heiner Tames.

O combate à corrupção e a exaltação dos valores da família tradicional são os discursos difundidos e assimilados por diferentes segmentos sociais. “Carlos fez campanha pelo aborto e pelo homossexualismo, a juventude escolheu ele. Fabrício vai contra isso e teve a adesão dos mais velhos.  Outra diferença é  que o presidente eleito está implicado no caso de desvios de dinheiro envolvendo o cimento chinês, enquanto Fabrício tem as mãos limpas”, diz Yariela Sanchez, residente na fronteira entre o país e o Panamá.

Foi na esteira do anúncio da decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos sobre o matrimônio igualitário que o deputado Fabricio Alvarado, até então pouco conhecido, se fez popular a nível nacional depois de gravar um vídeo alegando que a Costa Rica abandonaria a organização para manter a soberania e a moralidade. As pesquisas na véspera do primeiro turno sinalizando a ascensão do parlamentar insuflaram sua votação e o colocaram inesperadamente na disputa final contra Carlos Alvarado, que também aparecia fora da disputa até a semana derradeira do primeiro turno.

A capilaridade dos religiosos encontrou menor resistência especialmente nas regiões afastadas da capital San José e das áreas urbanas diante dos problemas econômicos que persistem nas áreas rurais e costeiras, onde as políticas públicas encontram dificuldade para se estabelecer. “Em estados como Limón e Puntarenas, situados na costa, o PRN triunfou largamente devido ao abandono do atual governo. Esses são os locais com baixos índices de desenvolvimento humano em relação ao resto do país”, contextualiza o deputado David Gourzong Cerdas, eleito pelo Partido Liberação Nacional, o mais tradicional da Costa Rica.

A expansão de programas como a Rede de Cuidados e a Ponte para o Desenvolvimento está relacionada à necessidade de  reduzir a pobreza que persiste para 20% da população, percentual que permanece estável nos últimos vinte anos, período de hegemonia das práticas neoliberais por diferentes governos, apesar da nação estar situada entre as com melhor qualidade de vida da América. “Originalmente tínhamos s uma guerra santa que gradualmente se converteu em guerra intelectural. Muitos viam em Fabricio uma ameaça e, além disso, não queriam votar por ‘el tonto’. A eleição não se decidiu por propostas, a batalha foi entre manter nossa democracia ou correr o risco de cair em uma teocracia”, avalia Esteban Mora, jornalista.

Se o risco no executivo foi debelado, a eleição de 14 membros do Restauração Nacional – dos quais cinco se declaram pastores – além dos representantes de legendas conservadoras e católicas pode configurar-se em futuras tensões no terreno conformado por 56 congressistas, dos quais menos da metade devem perfilar-se como governistas. A correlação de forças já fez com que o novo presidente sinalizasse a conformação de um gabinete ministerial paritário de acordo com a representação congressual, buscando dessa maneira emplacar a ideia de unidade nacional.

Apesar da presença reacionária nos espaços de poder, o otimismo característico dos ticos e o apoio popular angariado pelo governo eleito devem dar fôlego para que Carlos e Epsy solidifiquem suas bases.  No pequeno país centro americano a participação cidadã e o envolvimento popular nas decisões políticas comprovaram que não há eleição perdida, situação capaz de inspirar as esquerdas do continente para as disputas que seguirão ao longo do decisivo ano para a região.

COMENTÁRIOS

Uma resposta

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