Vereador eleito em BH mora em São Paulo e é de família ‘caça-mandato’

Lucas Ganem usa sobrenome do primo, deputado federal por SP, e só mudou o domicílio eleitoral em fevereiro
O novo vereador de Belo Horizonte é só um dos quase 10 'Ganem' no mundo político pelo país. Foto: Reprodução/Redes

Por LUCAS RAGAZZI* E GUILHERME PEIXOTO, de O FATOR

Os Ganem são uma família muito unida. Primeiro do grupo a se aventurar na política, o deputado federal Bruno Ganem (Podemos-SP) tem orgulho de ostentar nas redes sociais que elegeu quatro vereadores Brasil afora, todos com o “sobrenome” Ganem. A mãe do parlamentar, a deputada estadual paulista Clarice Ganem (Podemos), também comemora pelas redes a vitória da cunhada, Simone Ganem, do mesmo partido, que ocupará uma cadeira na Câmara Municipal de São Paulo a partir de janeiro. O filho de Simone foi outro a dar motivos para celebração. Lucas Ganem (Podemos) foi eleito vereador em Belo Horizonte depois de conquistar mais de 10 mil votos, mesmo morando em São Paulo e sem nunca ter vivido na capital mineira, conforme indicam os sistemas de informação de órgãos públicos dos dois estados, que não o associam a nenhum endereço em BH, mas sim à locais na capital paulista.

Nascido e criado em São Paulo, entre a capital do estado e Indaiatuba, Lucas do Carmo Navarro tem 28 anos e é formado em publicidade pela Unip. Entre fevereiro de 2022 e abril de 2023, atuou como assessor comissionado na Câmara Municipal de Indaiatuba, reduto onde os Ganem criaram raízes políticas. Tanto ele quanto a mãe, agora vereadora de São Paulo, não possuem o sobrenome reconhecido dos familiares: Simone é casada com um irmão de Clarice, tio de Bruno, e, assim como Lucas, “herdou” o nome para ser utilizado nas urnas. Mesmo com candidatos em diversas cidades, os laços com Indaiatuba permanecem: neste ano, Bruno concorreu à prefeitura da cidade, mas terminou na segunda colocação — o município não tem segundo turno.

As redes sociais pessoais do novo vereador de Belo Horizonte exibem pouco do perfil ideológico do futuro integrante do Legislativo. As exceções foram durante as eleições de 2018 e 2022, quando publicou imagens de apoio ao primo, Bruno, e à tia, Clarice. O perfil de Lucas Ganem indica, no entanto, a pouca familiaridade com a capital mineira. A primeira menção à BH nas redes do parlamentar eleito aparece somente em agosto de 2023, com uma foto dele carregando um cachorro no quintal de uma casa. A imagem foi publicada com a localização “Belo Horizante (sic), Minas Gerais, Brazil”.

De onde, para onde

Lucas Ganem também é um desconhecido dos sistemas de informação dos órgãos de Minas Gerais. Seja em registros policiais ou de informações digitais do governo estadual, nunca registrou ou figurou em qualquer ocorrência – e nem em qualquer outro procedimento documental, que envolva uma instituição pública mineira. Também não está ligado a nenhum endereço no estado. Além disso, teve sua Carteira Nacional de Habilitação (CNH) emitida em São Paulo, em junho deste ano, com endereço também registrado na capital paulista, em uma casa na Vila Prudente. 

Depois da curta passagem como servidor comissionado na Prefeitura de Indaiatuba, Lucas passou a atuar como coordenador de Assistência Social do Grupo Executivo de Assistência Patronal (Geap), uma operadora de planos de saúde voltada exclusivamente para servidores públicos. 

A Geap tem sido alvo de críticas por supostamente ter se tornado um reduto de indicados de parlamentares do Podemos. Recentemente, o Sindicato dos Trabalhadores do Seguro Social e Previdência Social no Estado de São Paulo (SINSSP) denunciou, em publicações nas redes sociais, a contratação de pessoas indicadas pelo partido, para áreas de direção da entidade. Procurada por O Fator, a direção nacional do Podemos classificou a acusação como “leviana e irresponsável”. Em novembro de 2023, Lucas Ganem, ainda chamado por seu nome de batismo, Lucas Navarro, participou de negociações do Geap do Paraná com a Prefeitura de Quatro Barras, na região leste paranaense. Segundo o SINSSP, a diretoria do Geap-PR teve seu diretor indicado pelo deputado federal Bruno Ganem.

A casa

Apesar de ter crescido e trabalhado fora de Minas, Lucas Ganem registrou domicílio eleitoral em Belo Horizonte, em 19 de fevereiro deste ano. O endereço indicado pelo vereador eleito é uma casa geminada no bairro Trevo, na região da Pampulha. O imóvel, segundo apuração de O Fator, está registrado em nome do representante do Geap em Minas Gerais, o empresário Grijalva de Carvalho Lage Duarte Junior. 

A reportagem foi até a residência registrada por Lucas, em Belo Horizonte, na tarde desta terça-feira (15). Ninguém atendeu ao interfone durante de 25 minutos. Procurado, o empresário Grijalva Duarte Júnior afirmou, por mensagem, que a reportagem deveria contactar Lucas Ganem.

A Justiça Eleitoral estabeleceu o dia 6 de abril como data-limite para a troca de domicílio de voto — e candidatura. Lucas, portanto, transferiu o título de eleitor para a capital mineira dois meses antes do fim do prazo. Vereadores com mandato em BH, entretanto, precisam cumprir outro requisito, explica o advogado Jorge Washington Cançado, especialista em Direito Público e Eleitoral.

“O Direito Eleitoral permite que os eleitores votem onde tenham vínculos reais, ainda que não sejam no município de sua moradia, na tentativa de eliminar possíveis injustiças a quem queira lançar candidatura em local diverso de onde mora, mas que a ele esteja vinculado e viabilizar a organização das eleições. No entanto, no caso de Belo Horizonte, a Lei Orgânica prevê que o vereador deve comprovar residência no município. Caso contrário, poderá ter o mandato questionado”, assinala.

Estratégia

Apesar da curiosidade pela falta de vínculos claros entre Belo Horizonte e Lucas Ganem, a candidatura do vereador eleito não é ilegal. Aliás, o Ministério Público Eleitoral (MPE), durante o processo de registro, deu parecer favorável à candidatura, indicando que toda a documentação do paulistano estava em conformidade com a legislação. O Tribunal Regional Eleitoral (TRE-MG) deferiu a candidatura na sequência.

Mesmo sem ser belo-horizontino de nascimento ou ter criado identidade com a cidade ao longo dos últimos anos, Lucas Ganem ultrapassou a barreira dos 10 mil votos — marca que apenas 17 dos 41 escolhidos para a nova composição da Câmara Municipal alcançaram nas urnas. 

A boa votação deixa cidadãos afeitos à política impressionados. A tática dos Ganem, aliás, impressiona mesmo, principalmente no uso das redes sociais. Cada “candidato Ganem” cria três contas temáticas no Instagram: as mais comuns são de perfis usados para publicações voltadas para a “causa animal”. Há, ainda, perfis direcionados à saúde mental e segurança pública.

As imagens publicadas nas contas são as mesmas, com exceção das assinaturas dos nomes de cada candidato. Lucas, Clarice e os outros candidatos da “família Ganem” publicam, nos mesmos dias, as mesmas imagens com mensagens motivacionais e em defesa das pautas estabelecidas em cada perfil temático. Outro ponto em comum é a divulgação de abaixo-assinados em defesa desses temas. Acessando o link, o internauta se depara com o pedido para inscrever o nome e o telefone para concordar com o pleito – criando-se, a partir dali, um grande banco de dados que pode ser de grande valia em uma eleição. 

Os “adotados”

Além de Lucas e Simone, os Ganem também elegeram outros dois vereadores: os assessores Rodolfo Antonio Lima de Oliveira e Hebert Garaganani. Rodolfo foi eleito vereador em Sorocaba, enquanto Hebert irá ocupar uma vaga na Câmara Municipal de Campinas. Como reza a tradição do clã, ambos “abandonaram” o sobrenome de batismo para adotar a alcunha Ganem.

Tanto Rodolfo quanto Hebert atuam no grupo político familiar há algum tempo. Os dois já passaram por cargos de assessoria nos gabinetes de Bruno Ganem e também de Clarice Ganem.

Apesar dos sucessos em São Paulo e BH, os Ganem falharam em outras cidades. No Rio de Janeiro, por exemplo, o assessor Flávio Ganem (Avante) não conseguiu se eleger, mesmo contando com alto investimento do grupo – inclusive político. Flávio teve o número de urna 70.000, considerado o mais “valioso” das legendas por causa da facilidade de recordá-lo.

Em 2022, a companheira de Bruno Ganem, Amanda Beatriz Foltran, integrou a chapa de candidatos do Avante a deputados federais por Minas Gerais. Com 30 anos à época, ela também lançou mão do sobrenome “Ganem”, mas não foi eleita. Embora os dados cadastrais enviados à Justiça Eleitoral, dois anos atrás, apontem Amanda como solteira, ela recebeu uma declaração de amor feita por Bruno no Instagram, no último dia 2. No post, o parlamentar a chama de “companheira de vida”.

Fornecedores em comum

As prestações de contas enviadas pelos integrantes da “família Ganem” mostram, também, um padrão nas contratações de prestadores de serviços que atuaram nas campanhas. A gráfica e editora WBL, de Ferraz de Vasconcelos (SP), por exemplo, foi contratada por Bruno, Lucas, Simone, Hebert e Rodolfo. Juntos, o quinteto desembolsou cerca de R$156,3 mil para contar com o trabalho da empresa. A maior fatia do montante foi injetada por Bruno, que gastou R$ 93,2 mil — o segundo maior dispêndio em sua chapa neste ano.

Conforme levantamento de O Fator junto à base de dados da Justiça Eleitoral, os cinco componentes do clã contrataram os serviços de outra gráfica, a AG Click, situada em Campinas. O grupo gastou R$ 92,6 mil e, dessa vez, quem pagou o maior valor foi Simone: exatos R$ 50.810,00.

Os quatro parlamentares eleitos — Simone, Lucas, Hebert e Rodolfo — lançaram mão de ao menos outros dois prestadores de serviço iguais. Na lista, está a consultoria de Comunicação Napoz. Localizada em Indaiatuba (SP), ponto de partida da trajetória política dos Ganem, a firma recebeu R$ 7,4 mil de Lucas, R$ 5,7 mil de Rodolfo, R$ 20 mil de Simone e R$ 3,8 mil de Hebert. Os futuros vereadores ainda apostaram na mesma empresa de contabilidade: a Mairinck Assessoria. Enquanto Hebert e Rodolfo desembolsaram R$ 2 mil cada, Lucas aportou R$ 5 mil. Simone, por sua vez, gastou R$ 10 mil.

‘Árvore genealógica’ mostra atuação dos Ganem na política eleitoral. Foto: Editoria de Arte/O Fator

Procurados

A primeira tentativa de contato com o vereador eleito foi em um telefone registrado em nome de Lucas Ganem, com o DDD de São Paulo, 11. A mensagem não foi respondida. Depois, uma assessora do gabinete de Clarice Ganem, na Assembleia Legislativa de São Paulo (Alesp), acionada pela reportagem, encaminhou um número de DDD, 31, de Belo Horizonte, indicando que o contato seria do novo parlamentar de BH. Em pesquisa aberta na internet, o número do celular repassado pela assessora é o antigo telefone de um canil da raça cane corso

No início da tarde desta terça-feira, O Fator enviou dez perguntas ao vereador eleito, Lucas Ganem, sobre sua vinda a Belo Horizonte, os motivos de se candidatar na capital mineira, a propriedade da residência em que declarou domicilio eleitoral e a relação com o Podemos. Ganem, inicialmente, afirmou que responderia aos questionamentos, mas que estava prestes a embarcar em um voo. Até a manhã desta quarta (16), contudo, o novo parlamentar belo-horizontino ainda não havia enviado respostas.

O Fator procurou o Podemos, legenda que abriga Bruno Ganem e os vereadores do clã, eleitos para a próxima legislatura. A reportagem encaminhou, à Secretaria Nacional de Comunicação do partido, uma série de questionamentos a fim de entender a articulação que levou Lucas Ganem a ser candidato em BH. 

“São assuntos atinentes ao deputado Bruno Ganem. A executiva nacional respeita as estratégias individuais de cada parlamentar”, informou a agremiação.

O gabinete de Bruno Ganem também foi procurado mas, até o momento, também não respondeu aos questionamentos da reportagem.

(*) Lucas Ragazzi é jornalista investigativo com foco em política. Integrou o Núcleo de Jornalismo Investigativo da TV Globo e tem passagem pelo jornal O Tempo, onde cobriu o Congresso Nacional e comandou a coluna Minas na Esplanada, direto de Brasília, e pela Itatiaia. É autor do livro-reportagem “Brumadinho: a engenharia de um crime”.

COMENTÁRIOS

POSTS RELACIONADOS

Há futuro para a esquerda brasileira?

Por RODRIGO PEREZ OLIVEIRA, professor de História da Universidade Federal da Bahia O 1° turno das eleições municipais confirma o ciclo de derrotas que marca

Banho de sangue na Venezuela?

Mídia hegemônica no Brasil distorce falas de Maduro atiçando radicais e acirrando conflitos que podem, esses sim, levar a golpe e guerra civil