ARTIGO
Mateus Pereira e Valdei Araujo, professores de História na Universidade Federal de Ouro Preto em Mariana*
Terça-feira, 9, o presidente realizou mais uma reunião ministerial, mas, dessa vez, aberta ao grande público. Quem assistiu a reunião e observou o presidente, talvez tenha percebido a sua expressão doentia. Qual seria o diagnóstico? Ao que todos dizem: psicopatia!
Os fatos e as análises dos últimos 15 dias têm mostrado que o bolsonarismo também está enfermo. Mas, infelizmente, pode ser que para essa doença já se tenha a cura. É sobre isso que vamos falar nesse texto, mas, antes disso, vamos tentar organizar a infodemia que nos assola.
Alguns fatos dos últimos 15 dias. 1) O vírus continua livre leve e solto e a COVID-19 mata sem freios no Brasil. Entramos em desconfinamento quando deveríamos estar em lockdown. 2) O governo federal quer reduzir o número de infectados e de mortos não cuidando das pessoas, mas fraudando os números. Não é preciso chamar os militares para matar dessa vez, o vírus já faz isso. Os militares estão “apenas” fraudando os números com sua celebrada fidelidade canina ao chefe. 3) O governo cancelou diversas anistias concedidas aos perseguidos políticos da Ditadura Militar. 4) Não é mais apenas a direita e extrema-direita que furam a quarentena e vão às ruas protestar. 5) Movimentos antirracistas explodem nos EUA e podem ajudar a definir os rumos da eleição americana.
Algumas hipóteses e especulações que circularam nos últimos 15 dias: 1) O bolsonarismo é a atualização do fascismo à brasileira com lastro no integralismo e na Ditadura. 2) Bolsonaro busca apoio nas Polícias Militares e na liberação das armas para dar um golpe, pois não teria forças suficientes nas Forças Armadas para bancar o golpe. 3) A possibilidade de impedimento de Bolsonaro ou mesmo de toda a chapa volta ao radar, seja por iniciativas no Congresso, STF ou STE. 4) A crise política, econômica e sanitária atingiu um limite e agora será administrada e o governo poderá ter certa estabilidade, já que se aliou ao Centrão. 5) O bolsonarismo é pior que o fascismo, pois representa um laboratório de novas formas de governança do capitalismo global na periferia, a exemplo da Hungria e da Turquia. Assim, esse novo inominável aponta para o aprofundamento da barbárie, da opressão e da destruição do país, provavelmente com Bolsonaro, ainda que esse projeto possa se aprofundar, mesmo sem ele.
Para muitos analistas, haveria uma brecha aberta, uma crise, uma possibilidade de derrotar essa real ameaça às nossas vidas e à democracia brasileira.
É possível que um dos equívocos dessas análises é continuar subestimando a força do bolsonarismo, o seu “parasitismo” e a sua possível “regeneração”, repetindo o mesmo erro de análise já ocorrido ao longo da maior parte da campanha eleitoral. É provável que o bolsonarismo, e, em especial, a energia ligada a ele, seja uma doença que, como a COVID-19, veio para ficar mais tempo do que imaginávamos! Negar esse fato pode ser similar a negar a pandemia. Mas, confessemos, esperamos estar enganados, apesar das evidências em contrário.
Como explicar que o apoio ao governo ainda se mantém entre 25 a 30%? Como explicar essa suposta estabilidade? Nossa hipótese é que, sem entender o fenômeno das fake news é impossível compreender a força do bolsonarismo.
Como afirmou Jorge William em uma reportagem de O Globo: “Muita ficção científica foi produzida no passado, especulando sobre robôs usurpando empregos e até postos de comando humanos, mas pouco se imaginou sobre robôs usurpando o debate público humano, o debate sobre a própria forma de uma sociedade humana se organizar e se deixar liderar.” Mas, não se trata apenas de robôs, trata-se de uma complexa engrenagem de simulação da verdade, como tentamos mostrar em diversos textos publicados aqui nos Jornalistas Livres.
Em livro que lançaremos em breve pela editora Milfontes intitulado “Almanaque da Covid-19, 150 dias para não esquecer: a história do encontro entre um presidente fake e um vírus real” argumentamos que para alguns líderes atualistas, como Bolsonaro e Trump, o passado e o futuro são mobilizados em discursos e prátic
as como dispositivos para a agitação política. O aspecto atualista desse fenômeno não significa uma ausência de remissões ao passado e ao futuro, mas que elas são subordinadas ao objetivo maior de garantir a agitação e a mobilização permanente de seus apoiadores, daí a aparente blindagem desses líderes. Antigas verdades que se revelaram mentiras podem ser apenas esquecidas e substituídas pela “verdade mais recente”, antigos aliados que pareciam cônjuges tornam-se do dia para a noite os mais ferozes inimigos. Como diz o mote de um canal de notícias, em 20 minutos tudo pode mudar.
O caos, a confusão e a distração assentada numa complicada manipulação de eventos e personagens históricos são apenas um ingrediente a mais na receita. Uma de suas consequências é a mobilização política em prol de presentes-passados, passados-presentes e presentes-futuros autoritários, na maioria das vezes sustentada pela negação, nostalgia e ressentimento. O principal projeto de futuro desses movimentos talvez seja a destruição ou, pelo menos, o enfraquecimento das bases da Democracia e do Estado Liberal para o aprofundamento de certas dimensões do capitalismo contemporâneo, que alguns poderiam chamar de anarco-capitalismo. Agora não basta reduzir o tamanho do Estado, não basta privatizar; o objetivo é destruir mesmo a função mediadora do Estado, desregulamentando e retirando qualquer tipo de proteção social construída nos estágios anteriores do capitalismo: passar a boiada, na infame expressão do titular que simula ser o ministro do Meio Ambiente.
A nossa hipótese, portanto, é a de que, em certas dimensões da temporalidade atualista em que vivemos, a verdade que mais importa é aquela que nos chega na forma de notícia, de news. A maior parte das pessoas tomam decisões orientadas por um ambiente de notícias em fluxo contínuo, consumido como entretenimento, embaladas pela crença de que quanto mais recente e atual é a notícia, mais relevante se torna para nossas vidas.
Controlar a produção incessante das news – pouco importa se verdadeiras ou simuladas (fakes) – tornou-se a mais importante fonte de poder político, até mais relevante do que partidos e outros sujeitos tradicionais. Esse universo paralelo, da simulação da notícia como arma política, com seus agentes e estruturas, é o fato mais relevante para compreendermos a história da COVID-19 no Brasil. Esses ambiente de universos simulados é o hospedeiro que o bolsonarismo, e também o trumpismo, parasitam em simbiose.
E, nesse sentido, uma das coisas mais interessantes da reunião ministerial pode ter sido uma possível atualização do discurso do Paulo Guedes. O projeto (agora apoiado por ele?) de expandir, renomear e ampliar o Bolsa Família pode apontar para o futuro do bolsonarismo. Uma atualização do Bolsa Família pode significar uma recomposição da base do bolsonarismo, a exemplo do que ocorreu no primeiro governo Lula, como mostra a tese do lulismo de André Singer?
Improvável de acontecer de novo? Tomara que não aconteça. Mas, em história o improvável vive acontecendo e os estrategistas militares do Planalto sabem disso muito bem. Aliás, eles já devem ter acesso a diversas pesquisas indicando esse caminho de sobrevivência na base da sociedade. Uma delas, divulgada pelo jornalista José Roberto Toledo, apontava que Bolsonaro perdeu apoio entre a elite durante a pandemia e a queda de Moro.
Mas, que a avaliação em ótimo e bom do governo continuava na casa dos 25 a 30% divididos, mais ou menos, assim: 8-10% bolsonaristas raiz (olavistas, emprededores reais e ficcionais, armamentistas, policiais e militares); 6-8% religiosos, em especial, neopetencostais; 5-7% ultraliberais, guedistas; 5% pobres que receberam o auxílio emergencial de 600 reais. Ampliar ou não esses novos 5% passa a ser um das escolhas políticas do governo. Em política, por vezes, a sobrevivência é mais forte do que qualquer ideologia.
A pandemia possibilitaria conciliar a agenda anarco-liberal, o ataque ao Estado, ao funcionalismo, a qualquer tipo de garantia ou proteção social com um projeto de renda mínima ou básica? Ao que parece, sim. O governo aliou-se ao centrão para sobreviver e isso foi amortecido junto à sua base de forma relativamente eficiente, mesmo representando uma ruptura com o discurso de campanha.
O reagrupamento de boa parte da base de apoio pós-queda de Moro é um fenômeno que precisa ser visto com muita atenção. Foi muito rápido e parcialmente eficiente. Talvez haja uma atualização do discurso econômico tendo em vista a conjunção das crises que vivemos. A reunião de terça-feira aponta para isso. Em poucas palavras: pode estar sendo gestado o Bolsonarismo 2.0. Afinal, o projeto econômico de Guedes é não ter projeto algum, apostar no caos e na capacidade dos poderosos revertê-lo em benefício privado.
A máquina de fake news rapidamente pode contribuir para ajustar o discurso para a base já consolidada. E o novo grupo que poderá chegar pode ser, também, rapidamente introduzido no interior dessa verdadeira máquina de guerra de simulação da verdade. Mesmo que se perca uma parte do apoio ultra-liberal, ele poderá ser compensado com o ingresso de novos membros nessa torcida fanática e perigosa.
O número de avaliação regular está diminuído e migrando para o ruim e péssimo. Mas, tudo tem limite. Podemos supor uma unidade, que não existe, entre os 70%. Mas, não seria impossível que sejamos traídos, isto é, que a médio prazo, apesar de tudo, a avaliação de Bolsonaro aumente. Não significa que vai acontecer, mas é um cenário possível, ainda que improvável neste momento.
Talvez o cálculo seja que o Bolsonarismo 2.0 ajude a brecar a queda de popularidade e também mantenha a base. Impeachment sem grande insatisfação não passa. E Rodrigo Maia sabe. Ele pode dar um bote ainda? Aparentemente foi neutralizado.
Enfim, a ideia básica que pode fazer surgir o Bolsonarismo 2.0 é: não basta comprar o Centrão, é preciso comprar também base popular.
E a boa notícia? Quem é um dos maiores fiadores do bolsonarismo? Trump! Talvez a boa notícia que tanto esperamos esse ano possa vir não daqui de dentro, mas da eleição americana. A derrota de Trump seria como a tão esperada vacina. Não depende de nós.
Assim, o que podemos fazer nesse momento é contribuir para a desaprovação do governo continuar a crescer por meio da militância nas redes e nas ruas. As duas ações exigem de nós novas sabedorias práticas, o que significa novas atualizações em sentido positivo. Além disso, toda e qualquer ação de combate e controle das fake news são necessárias no plano micro e macro de nossa vida social.
(*) Autores do livro Atualismo 1.0: como a ideia de atualização mudou o século XXI e organizadores de Do Fake ao Fato: (des)atualizando Bolsonaro, com Bruna Klem.
Esse artigo contou com a colaboração de Mayra Marques, doutoranda em História pela UFOP
2 respostas
Gostei muito. Esquerdas unidas um passo a frente! Sem Ciroses e com Marina Eco