Valéria Dallegrave: Sobre bandeiras e vermelhos

Por Valéria Dallegrave*, especial para os Jornalistas Livres

Em primeiro lugar, o MEDO do fantasma do “comunismo”. Acontece que o brasileiro assombrado não sabe dizer aonde vê na realidade este fantasma… Ou sabe. Acredita que qualquer mínima tentativa de justiça social é um uivo da assombração. Permitir que filhos de empregadas domésticas tenham curso superior é comunismo, dar condições de adquirir casa a quem não tem, comunismo. Dar de comer a quem tem fome, comunismo (espera, isso não é bíblico!?)…O medo é, em boa parte, inconsciente. Foi plantado pelos Estados Unidos da América desde a guerra fria. Naquela época, acreditava-se até que os comunistas comiam criancinhas (já voltaram a acreditar!?). Os EUA, o país por excelência do capitalismo selvagem, que divulgou, com sua indústria de entretenimento, a imagem de terra das oportunidades, agora faz um muro para impedir a entrada daqueles que seduziu. A mesma pátria que ensinou ao mundo um individualismo doentio e simplificou a vida com a divisão entre mocinhos e bandidos em filmes de bang-bang. Bem, por esta e outras fontes aprendemos que o egoísmo é regra e a solidariedade, exceção…

Aquele aprisionado pelo medo teme que o pouco que tem lhe seja tirado para dar a quem tem menos. Por trás de tudo isso, há a certeza de carestia, de que pouco há disponível para dividir. Ele não percebe que há pouco apenas porque a abundância é restrita à área vip. Acostumado a fazer parte da ralé, que precisa se estapear pelas migalhas do andar de cima, e bem disciplinado para não tentar invadir a área vip, o que melhor faz é estapear quem está ao lado, tão miserável, pobre ou classe média quanto ele…

Mas o medo também tem outra faceta: de que seja roubada a chance única na vida! A chance de, em algum golpe de sorte, tornar-se ele mesmo o acumulador de posses, o novo-rico, o Patinhas dos trópicos, o que deixa cair as migalhas lá em baixo para os esfomeados…

A grande mídia, claro, corrobora esta visão de mundo egoísta (lembre, visão de mundo = ideologia). Nos atuais tempos sombrios, ganha mais voz quem é preconceituoso, machista, misógino, homofóbico. Além das novelas, que moldaram muito nossa visão de mundo (“vale tudo”), os jornais, ao selecionarem notícias e entrevistados, constroem uma “normalidade” padrão em que é preciso ter uma arma (ou duas?) para se defender (viva as ações da Taurus!)…

E se a norma fosse a solidariedade e o egoísmo, a exceção!? Quantas boas notícias de gente que se solidariza com o próximo são descartadas diariamente? Há ideologia em tentar mudar o mundo para melhor!? Mas quem aceita toda esta construção artificial de uma “normalidade” não está mergulhado, afogado, dissolvido em uma ideologia criada por outros!?

Fica por último, mesmo, a questão que parecia a principal, a cor da bandeira.

Por que o vermelho é tão polêmico? É verdade que algumas bandeiras usam a cor como simbologia para a revolução comunista, mas há quem a use como representação da fraternidade (liberté, egalité, fraternité). Na bandeira da Espanha, o vermelho, entre outros significados, é homenagem à valentia e às conquistas do povo espanhol. Nas bandeiras da Costa Rica, do Chile e da Itália, o vermelho pode ser interpretado como o sangue de heróis e mártires que lutaram pela independência de suas nações.

A interpretação mais curiosa do uso da cor (além de trazer o tema religioso, presente em diversas bandeiras), vem da Inglaterra, representada por uma cruz vermelha sobre fundo branco. A cruz simboliza São Jorge, padroeiro da Inglaterra. Segundo a lenda, o santo, para salvar uma princesa, enfrentou e matou um dragão, com o sangue deste fez a cruz sobre o escudo…

Já a bandeira brasileira que, como todos sabem, não tem a presença do vermelho, foi inspirada na bandeira do império, na qual o verde e o amarelo nada tinham de beleza simbólica. O verde era a cor da casa real dos Bragança (família de D. Pedro I) e o amarelo, da casa dos Habsburgo-Lorena, família de Dona Leopoldina, primeira esposa do imperador. A interpretação dada a estas cores, mantidas no modelo republicano da bandeira, atribui o verde às matas, o amarelo ao ouro, o azul aos céus e rios, e o branco à aspiração pela paz. As estrelas seriam os Estados brasileiros e o lema “ordem e progresso” veio do pensamento positivista.
A ausência do vermelho pode ser um traço da hipocrisia nacional. É como se não tivesse acontecido derramamento de sangue na construção de nossa pátria. Nem Canudos, nem Caldeirão. Nem Tiradentes, nem Inconfidência. Nem Balaiada ou Guerra do Paraguai. Nem Candelária, nem Marielle Franco e tantos já esquecidos. Nem genocídio indígena, nem escravidão. Nem, é claro, as torturas e mortes no período da ditadura militar, sobre as quais talvez não nos seja mais permitido falar. Nossos mortos não tem direito à justiça. Nem os vivos…

É que há quem não tolere o vermelho, e tenha escolhido permanecer deitado em berço esplêndido. E agora o verde das matas é hasteado por quem adota a estratégia de desmerecer a força e o valor das florestas (e de seus guardiães, os índios). Estamos em época de combater teorias científicas aceitas pelo mundo inteiro, que alertam sobre os danos possíveis ao planeta ao se menosprezar a preservação das matas. O ouro amarelo (e verde como o pau-brasil), já foi levado pelos europeus. O recente ouro-negro das descobertas do pré-sal, que quase financiou melhorias na saúde e na educação, agora é entregue às multinacionais. A aspiração à paz é substituída pela ameaça de guerra contra a Venezuela. A “ordem” é para ser obedecida, o “progresso” é para poucos, à custa de muitos, inclusive da poluição dos rios por mineradores e industriais irresponsáveis. Nos resta, à maioria dos brasileiros, o céu (cinza?), que pode ser contemplado pelos moribundos, caídos de fome e de vergonha ao chão…Por fim, quero lembrar a frase de Augusto Comte que inspirou nosso lema “ordem e progresso” : “L’amour pour principe et l’ordre pour base; le progrès pour but”, ou “o amor como princípio e a ordem como base; o progresso como meta”. Como podemos observar, faltou amor. Vai ver é por que ele é vermelho…

Alguns podem até não gostar disso, mas nosso sangue jamais será verde-amarelo.

 

*Valéria Dallegrave é graduada em jornalismo pela UFRGS, Mestre em Letras pela UFC, escritora e dramaturga com curso de roteiro pela EICTV (Cuba)

Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Jornalistas Livres

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