Por Pollyana Martins Santos*
Quisera eu que o assunto abordado nestas linhas não precisasse mais ser discutido. Que se reduzisse a uma mancha horrível na nossa história enquanto sociedade, relegado a um passado vergonhoso, porém, felizmente, superado. Contudo, para o bem ou para o mal, nem tudo que desejamos é possível, e novamente uma bolha desse caldeirão de imundícies estoura e espalha a podridão na ordem do dia. Porque aqui, uma vez mais, falaremos de racismo.
Em uma das mais glamourosas noites norte-americanas, durante a premiação do Oscar 2022, o comediante Chris Rock “adornou” seu discurso com uma anedota, a seu ver, divertidíssima e espirituosa (pois, vejam bem, que profissional do humor, em sã consciência, deliberadamente lançaria mão de uma piada sem graça em um evento tão badalado?) – sobre Jada Pinkett Smith, atriz e esposa do ator Will Smith. Aparentemente, Rock achou muito engraçado fazer piada com a calvície de Jada, comparando-a a uma personagem careca de outro filme. Só por isso já seria de se perguntar, onde, afinal de contas, está a tal “graça” vista pelo comediante. Mas quando se lembra que a alopecia da atriz é decorrência de uma doença que ela tem enfrentado publicamente desde 2018, afirmando reiteradamente o quanto foi assustador e doloroso lidar com a calvície, a empreitada é absolutamente impossível.
Bom, sabemos que Will Smith, pelo menos, falhou miseravelmente em enxergar a tal graça que parecia saltar aos olhos de Chris Rock. Em uma cena digna de Hollywood (com perdão do trocadilho) o ator subiu ao palco e esbofeteou sonoramente o comediante, voltou ao seu lugar e, em resposta a mais uma tentativa ridícula de Rock de fazer graça onde não há nenhuma, bradou em alto e bom som que o comediante tirasse o nome de Jada de sua boca. Não exatamente com essas palavras tão triviais, mas o sentido foi esse. Algum tempo após o tabefe em Rock, Smith subiu novamente ao palco, desta vez para receber a estatueta dourada pelo prêmio de melhor ator. Em lágrimas, ele se desculpou pelo ato, mas afirmou que, naquela noite, como em inúmeras outras ocasiões, um limite fora violado, e dessa vez faltou-lhe o controle necessário – ou melhor, esperado – para lidar com a situação.
No Brasil
O que a estupefata plateia hollywoodiana provavelmente desconhecia era que, pouco mais de 20 dias antes, a mais de 6 mil quilômetros dali, os irmãos Luiz César Marques Júnior, de 24 anos, e Gustavo Borges Marques, de 20 anos, estavam conversando apoiados em um carro estacionado em frente ao bar no município de Diadema, São Paulo. Acontece que o dito veículo havia sido roubado, e tinha um rastreador. A polícia chegou, e os dois jovens foram presos em flagrante, reconhecidos que foram pelas vítimas do crime.
Até então, nada de extraordinário na cena acima, ainda mais em se tratando de terras tupiniquins. O extraordinário é que o crime pelo qual Luiz e Gustavo foram presos aconteceu a três quilômetros do local onde estavam. E mais extraordinário ainda é que, exatamente enquanto o delito acontecia, precisamente às 18h40, os irmãos permaneciam ali, no bar, acompanhados pelo pai, como foi comprovado pelas câmeras de segurança do local.
Só que essa comprovação chegou um pouco tarde para Gustavo e Luiz, pois, antes disso, tiveram que amargar injustamente mais de um mês de cadeia, até que uma decisão judicial determinasse a soltura deles. E para isso, foram apresentadas, pela defesa, as imagens da câmera de segurança, várias mensagens trocadas pelos irmãos, e fotos dos dois em frente ao bar – todas provas obtidas pela própria família dos rapazes, e não pela polícia. Ah, e um pequeno pormenor: a decisão (ironicamente do dia 1º de abril) não é no sentido de eximir Gustavo e Luiz de culpa, mas simplesmente de permitir que eles respondam ao processo criminal em liberdade. Ou seja: apesar de tudo, ainda são réus.
Quanto a Will Smith e Chris Rock, as circunstâncias são um pouco diferentes. Após a agressão, Smith tem amargado a fortíssima rejeição pública pelo ato cometido. Suspenso da Academia por tempo indeterminado, o ator responde a procedimento administrativo, o que pode lhe render, inclusive, o banimento definitivo do mundo de Hollywood, além da perda do esperado e merecido Oscar de melhor ator. Contratos milionários têm sido cancelados (Sony, Apple e Netflix teriam abandonado projetos com o ator) sendo que a última triste notícia envolvendo o caso diz respeito à internação de Smith em uma clínica de reabilitação.
O que se entende por violência?
E veja-se aqui a importância do que se entende por “violência”. O que Smith fez é, de fato, um ato de violência. Um ato de agressão física, chocante, brutal, que carrega atrás de si todo um contexto que, evidentemente, não pode ser ignorado, mas sim, é um ato de violência. E como tal, repudiável socialmente. O que surpreende é que, neste caso, muito se fala em um ato de violência, quando, na verdade, temos pelo menos dois. Três, se analisarmos mais a fundo a questão.
Três tipos de violência
A violência de Smith é física. Tátil. Chocante em sua explicitude. Mas a violência cometida por Chris Rock – sim, pois é dele o primeiro ato de violência – se é mais sutil, em nada fica a dever quanto ao poder de ferir, em comparação à agressão física de Smith. O tapa ressoou, sonoro, na face de Chris Rock, à vista de milhares de pessoas pelo mundo afora. Já a chacota desprezível de Chris Rock chegou com a sutileza de um soco diretamente aos ouvidos de Jada e Will.
a violência cometida por Chris Rock, porque é covarde, se esconde atrás do lugar comum do “mas foi apenas uma brincadeira”.
E por ser mais sutil, é também mais aviltante a violência cometida por Chris Rock, porque é covarde, se esconde atrás do lugar comum do “mas foi apenas uma brincadeira”. É muito fácil mostrar a brutalidade de uma agressão física, mas é infinitamente difícil e frustrante tentar demostrar a crueldade de uma violência velada – pelo menos, para quem não é diuturnamente afetado por ela – como era o caso de Jada Smith, alvo de inúmeras outras “sutilezas” de Chris Rock.
E não podemos esquecer do terceiro ato de violência. O da Academia. Sim, porque enquanto Hollywood pune abertamente o agressor físico, silencia em relação à agressão perversa de Rock. E a conivência, ainda mais por parte de quem teria o poder de censurá-la, é, sem sombra de dúvidas, a mãe de todas as violências.
Violência relativizada?
E porque se diz que a violência aqui, é relativizada? Porque enquanto Will Smith vê a carreira como um dos mais brilhantes atores de Hollywood literalmente dissolver diante dos olhos, as vendas para a turnê de stand-up de Chris Rock disparam para 25 vezes mais que a média diária, e o ingresso, que custava cerca de 46 dólares, subiu para espantosos 1.341 dólares – ou seja, 7 vezes mais. A violência de Rock não recebeu o repúdio do grande público. Pelo contrário, o mesmo grande público que baniu Will Smith se apressou em lotar as fileiras do show de Chris Rock, pagando um preço absurdamente mais alto. Para Rock, o tapa que levou parece ter sido, literalmente, um excelente negócio.
No Brasil, a violência contra aqueles que carregam na pele a cor preta
E quanto a Gustavo e Luiz? Vítimas da mesma violência que só enxerga uma única cor, da violência que algema e leva encarcerados dois jovens, unicamente porque estavam encostados em um veículo roubado, e foram “reconhecidos” pelas vítimas. O que não se diz é que foram reconhecidos por aquele único defeito que tiveram a infelicidade de carregar na pele: a cor preta. Sim, porque mais que a violência, a marca em comum entre os dois eventos é, nada mais, nada menos, que a cor. Em ambos os casos, a culpa estava gravada na pele, com tinta negra. E essa culpa não se lava facilmente.
Seja no entreveiro hollywoodiano, seja no barzinho paulista, a cor preta sinalizou, de imediato, a culpa dos envolvidos, mais do que qualquer outro juízo. É de se perguntar qual seria a reação da Academia caso a família Smith fosse branca. Chris Rock receberia sua conivência? Porque as ofensas anteriores de Rock a Jada eram de conhecimento público, inclusive da Academia, e ainda assim ele foi convidado a apresentar o evento. Ou melhor: Rock se atreveria a expressar um comentário de tamanho mau gosto, caso a cabeça sem cabelos fosse de uma mulher branca? Se a sua vítima fosse branca, seus shows explodiriam em popularidade, por indivíduos ávidos por dar o seu aval ao negro que fez chacota com um branco?
De outro lado, é de se perguntar, também, se a polícia prenderia tão prontamente dois jovens, caso fossem dois jovens brancos na porta de uma boate de luxo na zona nobre paulistana. Se não haveria espaço para maiores indagações. Na verdade, para grandes hesitações. Para ter prudência frente à possibilidade de um engano. Se as câmeras locais não seriam imediatamente averiguadas, caso os alvos jovens alegassem sua inocência, como o fizeram inutilmente os negros. Se os rapazes que não tinham a pele maculada pela cor da culpa penariam um mês de cadeia, à espera de que a justiça deliberasse sobre provas evidentes de sua inocência obtidas pela própria família, e não pela polícia investigativa, a quem caberia, por função, tal mister.
E, infelizmente, a resposta para todas essas indagações é um sonoro “não”. Porque, em se tratando da cor preta, a violência é como um tubarão branco, que consegue captar uma única gota de sangue a quilômetros de distância. E se tem uma ferida que sangra, e sangra pra valer, são as feridas na pele preta. Porque são invisíveis, porque são aceitas socialmente, porque não doem na pele branca daqueles que veem graça nos “Chris Rock” da vida, ou que acham que é justificável confundir preto com bandido. Elza Soares afirmou, com conhecimento de causa, que a carne mais barata do mercado é a carne negra. Vinte anos depois, infelizmente, Elza continua certíssima, porque essa carne ainda carrega um defeito insanável: nas palavras da brilhante Ana Maria Gonçalves, um gravíssimo defeito de cor.
(*) Pollyana Martins Santos possui graduação em Direito, Mestrado e Doutorado em Economia Doméstica pela Universidade Federal de Viçosa (2020). Tem experiência nas áreas de Sociologia e Direito Ambiental, atuando principalmente nos seguintes temas: licenciamento ambiental, conflitos ambientais, justiça e injustiça ambiental, redes sociais. Atualmente, é servidora pública do Ministério Público do Estado de Minas Gerais junto à Promotoria de Meio Ambiente da Comarca de Viçosa.
2 respostas
Brilhante explanação.
Perfeito! Permita-me apenas uma ressalva. Embora a incomparável interpretação de Elza Soares, ela, a divindade em forma de voz, tenha eternizado a canção, sua autoria é de Seu Jorge, Ulises Capelleti e Marcelo Fontes do Nascimento, vulgo Marcelo Yuka.