A jornalista livre Raquel Wandelli Loth foi absolvida em segunda instância na ação por crime de injúria calúnia e difamação movida pelo ex-corregedor da Universidade Federal de Santa Catarina, Rodolfo Hickel do Prado, pela autoria da reportagem “Dossiê exclusivo: corregedor que entregou reitor à PF já foi processado por calúnia e difamação“. Publicada na edição dos Jornalistas Livres de 30 de outubro de 2017, a investigação revela os antecedentes criminais e as condenações do principal pivô da intriga que levou à prisão, banimento da universidade, humilhação e suicídio do reitor Luiz Carlos Cancellier de Olivo. O acórdão da 7ª Turma do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, dirigido pela desembargadora federal Cláudia Cristina Cristofani, rejeitou por unanimidade o recurso impetrado por Hickel contra a sentença em inicial que absolveu a jornalista dos crimes alegados. Na reportagem, a repórter apresenta um levantamento de fatos e antecedentes jurídicos, criminais e administrativos que mostram a conduta persecutória e agressiva do então corregedor. Afastado da UFSC pela Corregedoria Geral da União por desvios de conduta, Hickel do Prado persegue a jornalista há três anos, infringindo-lhe processos no BOPE de SC, Justiça Federal e Polícia Federal.
Hickel do Prado, inquisidor do reitor da UFSC, Luiz Carlos Cancellier. Bilhete de despedida deixa claro motivo do suicídio
O histórico de processos apresentado pelo dossiê configura uma prática reiterada de abuso de poder, calúnia e denúncias infundadas de obstrução à justiça, crime que imputou ao reitor e a duas vítimas anteriores: seu vizinho Flávio Cozzatti e o procurador catarinense Ricardo Francisco da Silveira, falecido na véspera de receber a indenização, no caso mais emblemático e mais parecido com o do reitor. Sob a falsa alegação de ameaça à mão armada, Hickel convocou, na condição de síndico do condomínio Forest Park, em Coqueiros, policiais do BOPE com metralhadoras para arrombar e invadir o apartamento de Cozzatti, professor de Administração da Universidade de São José.
Conforme os autos acrescentados ao processo e citados pela magistrada na decisão final, os policiais ameaçara e levaram preso o professor na frente da mulher, filhos e vizinhos. Ele e seu amigo procurador foram processado por Hickel sob acusação de roubo de sinal de TV a Cabo, depredação do patrimônio e desacato à autoridade policial. Ambos foram absolvidos e reverteram o processo contra Hickel, acusando-o de injúria, calúnia e difamação no condomínio, de acordo com a reportagem reproduzida nos autos. Hickel e os policiais também foram processados e condenados por abuso de poder, mas a sentença de Ricardo foi extinta com o seu falecimento.
A respeito desse caso, a desembargadora anotou, atestando que não houve por parte da jornalista dolo de difamar ou caluniar: “Há substrato que fundamenta a matéria jornalista adversada. Isso porque há documentos oficiais, extraídos de processos judiciais e de informação policial, que evidenciam que Rodolfo Hickel do Prado, na condição de síndico no prédio em que morava, teria “denunciado” Flávio Cozzati. A forma caluniosa pela qual ocorreu a referida denúncia foi reconhecida em sentença pelo juiz de direito Claudio Eduardo Regis Figueiredo e Silva. Com base nisso, sem que haja qualquer valoração deste juízo, a comparação da situação vivenciada por Flávio com a do Reitor encontra-se adstritiva ao exercício da liberdade de expressão, portanto”.
Dossiê mostra conduta persecutória e caluniadora do corregedor que intrigou e incriminou Cancellier com aparatos federais
Acompanhando a decisão da juíza Michele Pólipo, em primeira instância na Justiça Federal, o colegiado acatou a Exceção da Verdade, uma peça de 1.700 páginas aferindo que todas as afirmações sobre a conduta e antecedentes de Hickel contestadas na ação penal por crimes contra a honra e no recurso impetrado por ele como fantasiosas e caluniosas foram exaustivamente comprovadas por documentos jurídicos, administrativos, policiais, testemunhos, depoimentos dos autos e entrevistas. “Não caracteriza fato típico a publicação de matéria jornalística que narre fatos verídicos ou verossímeis, embora eivados de opiniões severas, irônicas ou impiedosas, sobretudo quando trate de pessoa pública que exerça atividades relevantes na comunidade, e a notícia e crítica referirem-se a fatos de interesse geral relacionados à atividade pública desenvolvida pela pessoa noticiada”, atestou a desembargadora Cláudia Cristofani.
Para sustentar que a reportagem não é fantasiosa, nem movida por injúria, como alega o querelante (Hickel), no longo parecer que justifica o voto, Cristofani examina e copia trechos de todos os processos judiciais e administrativos citados, como crimes de injúria, difamação e calúnia; crimes de trânsito com direção perigosa e agressão física; violência contra mulheres; abuso de poder e conduta persecutória, nos quais o corregedor se envolveu. Como exemplo, cita um crime de trânsito cometido no Continente, que aparece como condenação na Certidão de Antecedentes Criminais com trânsito julgado em 26/03/2012, pouco antes de assumir o cargo na UFSC envolvendo agressão física dentro da Delegacia Policial com lesão do motorista e da autoridade policial, que a desembargadora cita em detalhes. Para mostrar a veracidade das informações da reportagem, a relatora do acórdão também copia vários trechos das ações requeridas pela defesa em juízo movidas por sua ex-esposa, que sofreu um aborto após seguidos episódios de agressões físicas e morais, e a namorada, com quem mantinha um relacionamento da mesma forma abusivo e concomitante, sem que uma soubesse da existência da outra. Desta vez
A relatora apontou que o principal objetivo do dossiê veiculado no site dos Jornalistas Livres “direcionou-se para o seguinte questionamento: quem é a pessoa que ocupava o cargo de corregedor da Universidade Federal de Santa Catarina?” Sob esse aspecto, a relatora afirma que não reconhece “qualquer afronta ao direito de personalidade do querelante”. E ainda afirma que “na condição de servidor público ou no exercício de função pública relevante, o questionamento é constante e, inclusive, exigível”.
APELAÇÃO DO CORREGEDOR AJUDOU DEFESA A EXPOR NOVAS PROVAS
A queixa-crime apresentada em 4 de abril de 2018 e o recurso impetrado pelo corregedor em 1° de abril de 2019, logo após a absolvição da acusada em primeira instância fez com que o acusador tivesse os seus maus feitos ainda mais expostos. Assumida voluntariamente pelo Coletivo Advogados e Adovgadas pela Democracia, a defesa da repórter pôde requerer em juízo várias ações inacessíveis ou por serem mantidas em sigilo ou estarem prescritas, que alargaram e deram ainda mais fundamento aos fatos discorridos no dossiê. Entre eles se destaca a Sindicância Investigativa da Corregedoria Geral da União, até então mantida em sigilo, que apurou desvios de conduta no relacionamento de Hickel com estudantes, professores e técnicos administrativos da universidade e fundamentou o seu afastamento definitivo do cargo de corregedor. Conforme a juíza, referendada pela desembargadora, “esses indícios apurados pela sindicância, tais como, coação e ameaças a servidores, assédio moral e insubordinação administrativa” são “incompatíveis com o exercício da função de corregedor”.
Nessa segunda fase, a defesa descobriu novos crimes e novos processos judiciais e administrativos movidos contra o corregedor que aprofundaram ainda mais o retrato da sua conduta. Um deles largamente citado pela desembargadora é o de crime de trânsito ocorrido no Continente. A defesa da repórter em primeira e segunda instância foi realizada representados por Ruy da Silva dos Santos Júnior e Tânia Mara Mandarino, do Coletivo Advogados e Advogadas pela Democracia, com apoio, na primeira audiência, da advogada Nívea Maria Dondoerfer, que atuou também na defesa do reitor, e de Guilherme Querne, do Sindicato dos Trabalhadores da UFSC.
“Fatos verídicos ou verossímeis”
Jornalista absolvida por unanimidade: Raquel Wandelli: defesa à liberdade de imprensa
Em recurso dirigido ao TRF4, o ex-corregedor, defendido por seu filho Rodolfo Macedo do Prado, retomou os argumentos da ação penal, qualificando a matéria de fantasiosa, mentirosa e movida por animusdifamandi, quando há intenção de caluniar e difamar. Na ação ele pede a condeção, prisão da autora e pagamento de indenização de no mínimo R$ 40 mil por crime de honra. Em seu extenso voto, após analisar detalhadamente todos os argumentos lançados por ambas as partes, a desembargadora Cláudia Cristina Cristofani recusa de modo contundente esse juízo, considerando a relevância e o caráter público da denúncia:
“No princípio da liberdade de expressão e liberdade de imprensa, compreendendo o direito à informação, à opinião e à crítica jornalística, entendo que não resta caracterizada a calúnia ou a difamação denunciada pelo querelante (Hikel). A publicação da matéria jornalística em apreço versou sobre fatos verídicos ou, no mínimo, verossímeis que, embora contaminados por opiniões severas e impiedosas, envolviam pessoa pública (corregedor da UFSC, à época), relevante naquela comunidade acadêmica. A matéria e a crítica, bem se viu, referiam-se a fatos de interesse geral relacionados à atividade desenvolvida pelo querelante e ao caso que provocou a comoção daquela sociedade. Nesse caso, segundo os precedentes antes citados, a liberdade de expressão e a liberdade de imprensa são prevalentes, atraindo verdadeira excludente anímica, a afastar o intuito doloso de ofender a honra da pessoa a que se refere a reportagem.”
“Dentro dos limites do exercício da liberdade de expressão”
Desembargador Cláudia Cristofani segue juíza Micheli Polippo: “Não houve calúnia e difamação: os fatos são verídicos “
Em primeira instância, a juíza Micheli Pólippo, do Juizado Especial Criminal da 7ª Vara Federal de Florianópolis, já havia deferido em 7 de fevereiro de 2019, uma sentença exemplar no sentido de afastar o caráter fantasioso da reportagem e atestar sua veracidade. “Além de todo o exposto, a exceção da verdade encontra-se instruída também com outros documentos, extraídos de processos judiciais, informações policiais e processos administrativos. Há comprovação de que a matéria jornalística foi embasada em documentos oficiais e verdadeiros.Portanto, não é possível reconhecer o caráter inverídico ou fantasioso das informações que conferem substrato à opinião retratada na notícia. Reconheço, assim, a procedência da exceção da verdade, de modo que afasto a materialidade do crime de calúnia”.
Na mesma linha, a juíza já havia afastado também o crime de difamação, legitimando a tarefa do jornalismo de investigar fatos e expressar indignação dentro dos limites da liberdade de expressão: “Embora seja possível aferir um certo grau de excesso de linguagem, ele não é suficiente para o reconhecimento do dolo específico, que se mostra necessário para a configuração da conduta. Vale ressaltar que é da natureza da atividade jornalística a investigação, o questionamento e, a depender do veículo de comunicação, a exposição de sentimentos demonstrados pela sociedade em determinado momento. Com base nos documentos que foram devidamente apresentados pela querelada, sopesado o contexto trágico anteriormente destacado, a morte do Reitor, a notícia relatou fatos e expressou indignação, o que a preserva dentro dos limites do exercício da liberdade de expressão.“
Agentes públicos são sujeitos a críticas em Estado Democrático e de Direito
Citando precedentes do Superior Tribunal de Justiça (STJ), a magistrada ressalta que “um dos corolários da atuação dos agentes públicos é a sujeição a críticas – por vezes desarrazoadas, intempestivas, é certo – mas sem perder de vista que proferidas no seio de um Estado Democrático de Direito, cuja análise, por isso, deve ser realizada à luz da proporcionalidade e em harmonia com todo um sistema de garantias individuais e coletivas asseguradas constitucionalmente”.
“Nessa senda, o Superior Tribunal de Justiça e o Supremo Tribunal Federal registram julgados em que, no tocante aos crimes contra a honra, reconhecem uma limitação do núcleo essencial da intimidade e da vida privada da pessoa pública, principalmente quando confrontados com o exercício da liberdade de imprensa, baseado em levantamentos de fatos de interesse público, cuja gravidade ostenta ampla repercussão social., registra a desembargadora federal.
Reitor foi preso e morreu em função de notícia-crime dada por pessoa sem credibilidade
Manifestação do dia 18 de dezembro, no aniversário da UFSC, em homenagem ao reitor suicidado
As denúncias infundadas de tentativa de obstrução de investigação judicial e de desvio de verbas do Programa Universidade Aberta incriminaram o reitor Cancellier com órgãos federais da Polícia, Justiça e Ministério Público. Embora as irregularidades no Educação a Distância não se referissem ao período de gestão do reitor, o conduziram à sua prisão espetacularizada na manhã bem cedo do dia 14 de setembro de 2017, em casa e enrolado numa toalha de banho, por 120 agentes policiais, no âmbito da Operação Ouvidos Moucos, comandada pela delegada federal Érika Marena.
Levado algemado nas mãos e acorrentado nos pés à ala de segurança máxima da Penitenciária Estadual de Florianópolis, o reitor foi obrigado a se despir em frente a outros presos e a fazer revista íntima. Só ao final do dia seguinte, foi solto sob habeas corpus, mas banido da direção da universidade e das salas de aula. Acusado de roubo de R$ 500 milhões (valor estapafúrdio divulgado pela operação, que correspondia ao orçamento do programa inteiro em 10 anos), passou ainda pelo linchamento moral nos meios de comunicação e mídias sociais. Esses eventos levaram o reitor, homem de origem muito humilde e réu primário, que nunca respondeu um único processo administrativo, ao gesto máximo de desespero. Na manhã do dia 2 de outubro, o corpo do jurista de 59 anos tombou fazendo um grande estrondo no vão do Shopping Beira Mar, em Florianópolis, com um bilhete no bolso: “Minha morte foi decretada no dia em que fui banido da universidade”. O alegado desvio de verbas e o envolvimento de Cancellier em qualquer irregularidade nunca foram comprovados pela Ouvidos Moucos.
A defesa da jornalista argumentou que sua atuação encontra-se resguardada pela liberdade de imprensa e que o “querelante busca é impor constrangimento por meio do processo penal, criando uma ameaça para todos os demais jornalistas, cerceando temerariamente a liberdade de imprensa no preciso momento em que sua afirmação é vital para a democracia brasileira”. Acrescentou que o interesse público está acima dos dissabores pessoais do querelante e que “a matéria jornalística tenta jogar luz no fato de que uma pessoa morreu em função de uma notícia crime, esta dada por uma pessoa cuja credibilidade deveria ter sido levada em conta, mas ao contrário, uma pessoa foi presa, humilhada e proibida de voltar ao seu meio ambiente de trabalho por conta das tidas investigações do corregedor”.
Recurso criminal em sentido estrito número 5000096-11.2020.4.04.7200/SC
Até hoje parece um pesadelo.
Conheçi o Cao criança, de uma família simples, Excelente pais, muito amorosos, sempre presente na vida dos filhos.
Sinto saudades da nossa infância em Tubarão SC.
Maria da Glória Antunes Guimarães
05/06/20 at 23:47
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Sinto saudades da nossa infância em Tubarão SC.
Paula Duarte da Silva
07/06/20 at 14:10
Obrigada por divulgarem esta informação. Só enfatizando que a triste morte de Chancellier ocorreu no Shopping Beiramar.