Travesti Roberta Nascimento, queimada viva: Uma homenagem

Queimar travestis vivas é uma prática que remete ao texto jurídico do Brasil Colônia, quando o destino prescrito para nossas ancestrais tratava-se da fogueira
Roberta Dias, travesti queimada viva
Roberta Dias, travesti queimada viva

Por Caia Maria Coelho*

Alguns meses atrás, Catarina Almanova, uma amiga travesti, me procurou ao acordar assustada e entristecida com um pesadelo. Ela queria saber se eu conhecia e tinha notícia de Crismilly Perola, a Piu Piu. Durante o sono, havia testemunhado o assassinato dessa outra travesti sem conseguir ajudá-la, embora tentasse. Naquele dia, Piu Piu estava bem, mas foi executada no último dia 5 de Julho. Os nossos piores pesadelos estão em vias de se tornar realidade, na medida que o transfemigenocídio negro avança.

Nove dias antes de Piu Piu ser assassinada pela brutalidade transfeminicida, a travesti Roberta Nascimento foi queimada viva por um adolescente no Cais de Santa Rita, importante terminal de ônibus do Recife. Ela, que estava em situação de rua quando sofreu a violência, ficou quinze dias internada no Hospital da Restauração. Tratada com pronomes masculinos pelas assistentes sociais, encaminhada à ala masculina, transferida para ala feminina, esperou dois dias por vaga na UTI, de onde saiu e voltou, intubada por duas vezes, amputou ambos os braços e morreu.

Queimar travestis vivas é uma prática que remete ao texto jurídico do Brasil Colônia, quando o destino prescrito para nossas ancestrais tratava-se da fogueira. O caso de Xica Manicongo se tornou, séculos depois, um símbolo decolonial. Ela precisou usar roupas masculinas até o fim da vida para escapar das chamas da Inquisição. A intenção com o uso do fogo declaradamente era transformar “o condenado em pó, para nunca de seu corpo e sepultura poder haver memória”. O transfemigenocídio negro e o apagamento são duas forças do mesmo projeto político.

As histórias de Xica e Roberta se conectam no fogo e no apagamento, com alguns séculos entre suas vidas. Pautar a mídia em Pernambuco, sobretudo pontuando que o caso de Roberta deveria ser enfatizado como uma tentativa de transfeminicídio, foi árduo para ativistas e grupos de militantes travestis/trans.

Acompanhei o caso de Roberta desde o início. Visitei o hospital, conversei com sua mãe e irmã. Exigi o uso dos pronomes adequados por parte dos profissionais de saúde, porteiros, servidores públicos da Prefeitura. Todos se recusaram. Representando a Nova Associação de Travestis e Transexuais de Pernambuco – Natrape, somei às frentes feministas e trans/travestis que começaram a se articular na cidade. Convocamos um ato contra o transfeminicídio (do qual uma das manifestantes saiu ameaçada de morte). Nos reunimos no gabinete do Secretário de Desenvolvimento Social, Criança e Juventude do estado. Pleiteamos uma reunião urgente com o Governador. Fomos ironizadas.

Em menos de 30 dias, Pernambuco – que no último ano foi o sétimo estado mais perigoso para travestis e mulheres trans viverem – matou 4 e ameaçou 5 delas. Diante disso, a Prefeitura do Recife criou um edital para a Casa de Acolhida LGBTQIA+, já batizada de Roberta Silva. Embora a medida seja importante e tenha sido conquistada pelos movimentos sociais, é fundamental ainda estabelecer um diálogo mais consistente e interiorizar a medida.

Ontem, em outra conversa com minha amiga Catarina Almanova, ela me lembrou: “as pessoas cis nos colocam no lugar de corajosas e isso me incomoda. Fico com a impressão que elas pensam isso porque jamais tomariam alguma atitude, como se fosse algo absurdo”. Embora a cisgeneridade pouco admita, precisa começar a se responsabilizar pelas nossas mortes e boas vidas.

Travestis e trans: solidariedade recíproca

Nos últimos dias, recebi muitas mensagens de amigos e familiares preocupados com minha segurança. Da mesma forma, enviei algumas para queridas amigas travestis e mulheres trans. Estamos protegendo umas às outras, abrindo rotas de fuga e inventando políticas de Nascimento. Nos recusamos a sucumbir ao medo e escolhemos acreditar que os melhores sonhos também vão se concretizar. Nossas mortas retornarão na realização dos seus sonhos e, neste dia, pá a pá, a transfobia será enterrada em solo infértil. Estamos aguerridas à vida como uma reivindicação constante, da qual não abriremos mão, pela extraordinária sensação de vitória experimentada ao olharmos umas às outras e podermos pensar: que bom te ver viva!


Desde o início da pandemia do coronavírus, a Nova Associação de Travestis e Transexuais de Pernambuco – Natrape – já doou centenas de cestas básicas para pessoas trans e travestis que, assim como Piu Piu e Roberta Nascimento, vivem em situação de vulnerabilidade alimentar. A ação atinge Recife e o interior do estado. Contribua com qualquer valor pelo pix: [email protected]

*Caia Maria Coelho é militante transfeminista há 10 anos, membro da diretoria da Natrape – Nova Associação de Travestis e Transexuais de Pernambuco, atuou no Movimento Ocupe Estelita pelo Direito à Cidade, é co-fundadora e pesquisadora dos sites Tela Trans e TransAdvocate Brasil, abolicionista penal, cineasta, travesti, gorda e bissexual.

COMENTÁRIOS

Uma resposta

  1. Texto impecável e ao mesmo tempo tão pesado. Descanse em paz Roberta e que seu nome nunca seja esquecido!

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