No último dia 06 de janeiro, o presidente eleito dos EUA, Donald Trump, esteve em uma reunião com chefes da comunidade de inteligência americana (FBI, NSA, CIA, etc) para discutir relatórios já divulgados ao público atestando que a Rússia de Vladimir Putin interferiu no processo eleitoral americano. O relatório confirmava que agentes russos hackearam o Comitê Nacional do Partido Democrata, vazando e-mails de Hillary Clinton e seus coordenadores de campanha via WikiLeaks, além de coordenarem uma campanha de divulgação de notícias falsas via Facebook.
Pouco depois de tal reunião, Trump usou o Twitter para assegurar seus eleitores de que o relatório não confirmava que tais ações tiveram impacto real no resultado das eleições em si. “As urnas não foram tocadas”, escreveu o presidente eleito, subitamente ignorante à possibilidade de que uma campanha de desinformação poderia ser tão eficiente em influenciar os votos americanos quanto o ato de hackear as urnas. A preocupação com a semântica de Trump se tornaria o de menos, no entanto, na quarta-feira (10), quando um vazamento do supracitado relatório de inteligência revelou detalhes mais graves da história.
A CNN trouxe em primeira mão a notícia de que o relatório apresentado à Trump continha um resumo detalhado de uma série de documentos alegando que o governo russo tinha informação comprometedora sobre o novo presidente dos EUA, que pretendia usar (ou já esteve usando) para chantageá-lo. Entre as tais informações comprometedoras, conforme mais tarde revelado pelo Buzzfeed, um escandaloso relatório de que Trump teria contratado prostitutas para praticar o ato conhecido como “chuva dourada” a fim de “vandalizar” um quarto de hotel que o então candidato sabia ter sido ocupado anteriormente por Barack Obama.
Detalhes de transações ilegais da empresa multimilionária comandada por Trump também estariam nos relatórios russos, obtidos por um investigador do MI-6, agência de espionagem britânica. Tanto a reportagem da CNN quanto a do Buzzfeed admitem que, por hora, essas são apenas alegações, e usam fontes anônimas de dentro do governo americano, ainda comandado por Barack Obama (que, como atual presidente, teria recebido o mesmo relatório de inteligência que Trump), para tecer suas reportagens.
Comentando toda essa história em seu programa na tradicionalmente republicana Fox News, Bill O’Reilly finalmente fez a ligação que todos, dentro de suas cabeças, já estavam fazendo: “Desde Richard Nixon a imprensa americana não parece tão empenhada em derrubar um presidente”. Para O’Reilly, apoiador de Trump, essa comparação talvez tenha sido um tiro no pé – mas como detalhamos a seguir, ela não poderia ser mais apropriada.
Todos os Homens de Nixon
Na noite do sábado, 17 de junho de 1972, cinco homens foram presos ao tentar invadir o Comitê Nacional do Partido Democrata em Washington (EUA), em um complexo de prédios conhecido como Watergate. Na época, Richard Nixon, do partido republicano, estava preparado para derrotar o democrata George McGovern nas eleições e começar seu segundo mandato como presidente dos EUA. No final daquele mesmo ano, foi exatamente isso que ele fez – mas seu segundo termo como presidente não duraria muito.
O envolvimento da administração Nixon com a invasão e tentativa de grampeamento do comitê democrata acabou sendo a ponta do iceberg, revelando um leque de ações ilegais planejadas para sabotar o partido rival, incluindo fabricação de notícias (soa familiar?) e um fundo eleitoral totalmente dedicado a pagar os profissionais envolvidos nessas atividades. No primeiro julgamento da invasão à Watergate (em 30 de janeiro de 1973), apenas os cinco homens que foram pegos no edifício receberam condenação. Um ano e meio depois, em 8 de agosto de 1974, Richard Nixon renunciou ao cargo de presidente dos EUA.
O que aconteceu nesse meio período? Bob Woodward e Carl Bernstein. A epopeia dos dois jornalistas do The Washington Post está contada no filme Todos os Homens do Presidente (Alan J. Pakula, 1976), protagonizado por Robert Redford e Dustin Hoffman. O filme, vencedor de 4 Oscar, mostra como os dois repórteres utilizaram fontes difíceis, que quase nunca topavam ter seus nomes publicados por medo de retaliação, para construir sua investigação. O hoje célebre informante Garganta Profunda é apenas uma dessas fontes – por curiosidade, em 2005 foi revelado que se tratava de Mark Felt, que na época de Watergate era o segundo em comando no FBI.
Woodward e Bernstein não são perfeitos. Há de se argumentar que a forma como Felt eventualmente lhes cedeu informação vital foi mais baseada em interesse próprio do que patriotismo, e é interessante pensar na ética da publicação dessas informações. Todos os Homens do Presidente não finge que esse é o trabalho de jovens idealistas e heroicos – pelo contrário, é o trabalho de jornalistas ambiciosos e humanos, que cometem erros e buscam a história tanto pela justiça de sua publicação quanto pelo benefício profissional.
Jason Robards levou o Oscar por sua encarnação do ícone jornalístico americano Ben Bradlee, editor do Post na época. Seu personagem serve como uma espécie de termômetro para o filme, mostrando ao espectador as elasticidades do que é permitido ou não permitido dentro do jornalismo. O mito do jornalismo como ciência exata é destruído e sua edificação como exercício de ética e moralidade acontece simultaneamente durante o filme, mais encarnada em Robards do que em qualquer outra performance (por mais que Redford seja pra lá de agradável de se olhar).
Watergate 2?
Assistindo a Todos os Homens do Presidente, é fácil fazer uma ligação com a situação enfrentada pelos EUA agora que Donald Trump está prestes a assumir o cargo de maior poder do país. A desconfiança na mídia é talvez mais acentuada do que aquela que Woodward e Bernstein enfrentaram, mas o filme faz questão de mostrar que eles tiveram sua oposição também, em um país que apoiava Nixon de forma esmagadora.
O uso de fontes anônimas é o mesmo lá em Watergate e agora, com as alegações de interferência e chantagem russa pairando sobre Trump – a CNN e o Buzzfeed citam “vários oficiais do governo” (vejam bem, não só um) como os provedores de informação, assim como Woodward e Bernstein buscaram confirmação de múltiplas fontes anônimas para publicar aquilo que, essencialmente, já sabiam.
A falácia de perseguição da mídia, de que esse “não é um bom momento para desestabilizar o país”, é a mesma que a equipe de Nixon fez durante a década de 1970. De fato, desde aquela época a mídia não trabalhava tão duro para derrubar um oficial eleito de forma democrática, mas é preciso lembrar que, naquela vez, 40 anos atrás, a mídia estava certa. Se essas acusações forem abafadas e condenadas como “notícias falsas” ou “não substanciadas”, nunca saberemos se eles estão certos mais uma vez.
A questão que os americanos encaram é quase existencial: escapar de um novo Watergate, por mais profunda que seja a ferida política envolvida nesse caso, é mais importante do que impedir um homem chantageado por Vladimir Putin de chegar ao poder? Em um ambiente que colocou Donald Trump na Casa Branca para começo de conversa, é difícil de saber.
*Caio Coletti é um jornalista de Itatiba (SP), formado na PUC-Campinas. Colaborador do Taste of Cinema e do Jornalistas Livres.