TIRANDO DO BAÚ

Por Marcos Pereira Rufino, antropólogo.- Setembro de 2000

As eleições no Brasil – como todo evento multifacetado, misto de festa, acordo, combate e ritual – mobiliza os veículos de informação também pelo anedotário que produz. Curiosamente, a presença crescente dos índios no processo eleitoral nos é transmitida exatamente neste registro. De certo modo, a participação dos índios na disputa por vagas no poder legislativo e executivo é apresentada no mesmo tom de estranheza com que o jornalismo brasileiro descreve índios xinguanos paramentados com sandálias Havaianas e calções Adidas. É como se a candidatura indígena selasse, solenemente, a inexorável aculturação.

Para além deste anedotário há, de fato, muito o que refletirmos. Afinal, índios dos mais diversos povos estão lidando com as grandes instituições da sociedade branca e com processos políticos pertencentes a uma gramática social e simbólica que lhes é absolutamente estranha, ao menos na maneira como estamos acostumados a pensar.

A começar pela representação política, essa tão louvada instituição do Ocidente, originada entre os atenienses da Grécia antiga e, em sua forma mais contemporânea, na Revolução Francesa. A representação envolve, no mínimo, premissas e categorias mentais muito distintas aos modos nativos de fazer política. A idéia de delegar a um indivíduo o poder de atuar em nome do grupo em questões que lhe são vitais implica em muitas coisas, como, por exemplo, na criação de um mediador que se interpõe entre os índios e a tomada de decisões.

A política, que em muitas formulações nativas atravessa a vida social de maneira ampla articulando-se simultaneamente às regras do parentesco, ao complexo ritual e religioso, ao discurso cosmológico, passa então a circular em uma ordem específica, a ordem política, regida por uma racionalidade burocrática e fundamentada em valores que se pretendem universalmente válidos. Formas tradicionais de liderança política – como, por exemplo, aquela assumida pelo sábio ancião, com sua oratória sensível, seu zelo pela reatualização permanente do legado mitológico e da tradição, seu prestígio guerreiro – cedem lugar para uma nova forma de liderança, desta vez protagonizada por jovens talentosos, escolarizados, falantes do português, minimamente conhecedores dos códigos e peculiaridades do mundo dos brancos.

Se não bastasse tudo isso, a candidatura indígena deve lidar obrigatoriamente com a mecânica de funcionamento partidário. Como sabemos, o partido político é em si mesmo o resultado de compromissos, interesses e arranjos complexos. Com alguma freqüência a candidatura não pode se eximir de promover um projeto político que lhe ultrapassa em extensão, fazendo referência não apenas aos interesses da sociedade local envolvente como também às grandes questões nacionais. Por força de tais injunções o índio ganha ainda outras identidades: torna-se liberal ou socialista; e até mesmo outros lugares onde ficar: está na esquerda, na direita ou no centro.

Para alguns observadores, as diversas candidaturas indígenas reproduzem alguns arranjos que nos são conhecidos. Uns seriam representantes “legítimos” de seu povo, indicados ao pleito eleitoral diretamente pela decisão de suas comunidades ou de suas respectivas organizações indígenas. Outros seriam candidatos isolados, envolvidos em um projeto político próprio, determinados a atuar na vida pública. Os primeiros estariam ligados aos partidos que tradicionalmente situamos na esquerda política, os segundos estariam filiados aos partidos de perfil clientelista.

As relações de gênero também repercutem essas transformações. Se no âmbito do movimento indígena é cada vez mais freqüente a participação feminina e mesmo o surgimento de organizações indígenas de mulheres, a política local de alguns municípios começa a presenciar esse novo ator social. Nas eleições municipais do ano 2000 tivemos até uma candidata Kaingang à vice-prefeitura em um município do oeste catarinense.

Estas e muitas outras questões certamente não deixam os índios estáticos em contemplação, ou em elucubrações filosóficas sobre sua nova condição de sujeitos da “alta” política dos brancos. Ao que tudo indica muitos têm pressa. As eleições de 1996 contaram com pouco mais de 80 candidatos indígenas, entre vereadores e prefeitos. Em 1998, além do crescimento no número de candidatos o país assistiu à tentativa de David Terena de chegar ao governo do Distrito Federal. Nas eleições de 2000, foram mais de 350 índios pleiteando vagas nas eleições municipais – sendo 13 deles para prefeito – e 80 se elegeram. Na condição de eleitores os índios também não ficam atrás. Em simulações de votação realizados em Roraima, o presidente do TRE espantava-se com a velocidade do voto indígena na urna eletrônica: 22 segundos contra mais de um minuto de muito eleitor branco.

*imagens por Helio Carlos Mello©

Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Jornalistas Livres

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