Território: nosso corpo, nosso espírito

‘A marcha ontem pra mim foi uma experiência e tanto porque pude notar que cada povo, com sua cultura e diversidade, estava unido. Cheguei até a chorar.’ – Daniela Patrícia, do povo Tucano, etnia Iabamansã, localizado no oeste do Amazonas, no caminho do rio Negro, tem 23 anos e é estudante de Estudos Literários na UNICAMP, além de comunicadora social na Rede de Comunicadores Indígenas do Rio Negro.

Essa foi a primeira vez dela na marcha, e veio até aqui por um motivo especial: ela e outros jovens comunicadores estão gravando um documentário para a Unicef sobre os jovens indígenas brasileiros, que provavelmente será lançado no dia 19 de agosto.

Daniela relatou que no decorrer do documentário eles visam mostrar que ‘saímos do nosso território em busca do que foi roubado da gente, mostrar que a gente não quer que nosso território se perca, que buscamos o que foi tomado da gente. Esse documentário vai trazer a visão do jovem; muitas vezes nos dizem que os jovens não tem uma visão completa, e assim a gente sempre fica a mercê dos outros: os outros falam pela gente, os outros fazem pela gente. A gente quer mostrar que a juventude tem voz.’

Sobre o caminho dela até a UNICAMP, nos disse que participou do primeiro vestibular indígena da universidade, que ocorreu no ano passado. Sua primeira opção de curso era Midialogia, porém conseguiu entrar na sua segunda opção, Estudos Literários. A Unicamp lançará em breve um documentário sobre o primeiro vestibular indígena, o caminho dos estudantes até a universidade.

Daniela enfatizou a importância do papel da Rede de Comunicadores Indígenas, que conseguiu  compartilhar a informação sobre o primeiro vestibular indígena na Unicamp, tanto que- ela observa-a maioria dos estudantes indígenas são de São Gabriel das Cachoeiras, cidade composta majoritariamente por povos nativos.

Para alguém que gosta de contar histórias, de fotografar, o curso de literatura está trazendo uma maior consciência sobre a sua própria história, sua cultura, seus saberes indígenas, nos contou a jovem:

‘Só porque a gente entrou em uma universidade não quer dizer que perdemos nossa cultura, nossos rituais, nossa comida. Todo o tempo estou em jejum de algumas comidas, a gente preza muito pelo nosso espírito.’

Nem tudo, porém, são flores. A Unicamp, ao contrário de outras universidades (como a UnB), não aplica o vestibular indígena para todos os cursos, muitos cursos de exatas, biológicas (medicina), e educação (educação física), não estão incluídos no vestibular. Para melhorar, são apenas 64 estudantes indígenas em toda a universidade.

O processo para que o vestibular indígena fosse aprovado na Unicamp começou em 2013, porém só em 2016, com alguns alunos acampando durante seis meses na reitoria, que o vestibular foi aprovado, e mesmo assim o primeiro vestibular foi só em 2018: ‘antes eram pessoas que lutavam pela gente, mas a agora a gente luta pela gente, e unimos forças com esses estudantes.’

Campinas foi a última cidade do Brasil a abolir a escravatura*, e história elitista da cidade se reflete também na melhor universidade da América Latina*, que até mesmo tem nome de Barão. A Unicamp, infelizmente, ainda não reflete a realidade da sociedade brasileira, que é diversa e plural.

Mépata, cujo nome em português é Lindalva, vem do povo Ticum, do Amazonas, e é estudante da UnB, no curso de medicina. Esse foi um sonho de menina realizado. Um sonho que, infelizmente, carrega uma triste história.

Quando Mépata tinha oito anos uma mulher de seu povo estava para dar a luz, mas não havia médicos nas redondezas. Ela foi com mais algumas mulheres em uma canoa, acompanhando a que iria dar a luz.

Elas tentaram chegar rápido a cidade, mas era muito longe. Por mais que remassem não havia como chegar a tempo, e a noite, na canoa, ela deu a luz: a criança morreu no meio da viagem.  Mépata conta que só conseguiram salvar a mãe.

Depois dessa experiência a menina de oito anos decidiu que queria ser médica, mas na sua aldeia eles não tinham ensino médio, só fundamental, e com professores indígenas que só tiveram formação até a quinta série. Ela ficou sem estudar por doze anos, nem ao menos sabia falar português quando saiu da aldeia em busca de seu sonho.

‘Eu preciso alcançar algo para meu povo, e fui.’- Aos 22 anos conseguiu terminar o ensino médio, fazer curso técnico. Mesmo depois de todo esse caminho ela voltou para a aldeia, e de lá fez vários vestibulares, em Manaus não conseguiu passar em nenhum. O último que tentou foi da UnB, onde entrou.

Sem dinheiro nenhum, com duas crianças, veio estudar medicina na UnB, onde até hoje se mantém dos artesanatos que faz e que traz da aldeia. Felizmente ela conseguiu um local para viver com os indígenas da região. O objetivo dela em fazer medicina é voltar para seu povo e fazer a diferença.

Com relação a sua participação no acampamento Terra Livre, disse que com a perda de direitos que está ocorrendo durante o governo Bolsonaro um ato como o acampamento não é uma ação que irá beneficiar somente as comunidades, mas todo o Brasil. Como estudante de medicina ela vê a situação da população carente do Distrito Federal, e a perda dos Mais Médicos, por exemplo, não é um benefício perdido apenas das comunidades indígenas, e sim de todos.

É dentro desse contexto, e com essas mulheres, que pela primeira vez no Brasil teremos uma Marcha Nacional das Mulheres Indígenas, que ocorrerá um dia antes da Marcha da Margarida. O objetivo é que depois possam se juntar a Marcha das Margaridas.

O tema da marcha foi decidido depois de muita discussão entre as mulheres de cada região, que se reuniram por quarenta minutos para criar um tema para a marcha e suas metas. Após as discussões os temas foram votados, e decidiram por Terra: nosso corpo, nosso espírito.

imagens por helio carlos mello – Jornalistas Livres

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