Vai demorar muito?

A coluna “Café com Muriçoca” é um espaço de compartilhamento literário dos Jornalistas Livres. O convidado de hoje é Nivaldo Brito, com a crônica "Vai demorar muito?".

Esse é tempo de partido,
tempo de homens partidos.

Em vão percorremos volumes,
viajamos e nos colorimos.
A hora pressentida esmigalha-se em pó na rua.
Os homens pedem carne. Fogo. Sapatos.
As leis não bastam. Os lírios não nascem
da lei. Meu nome é tumulto, e escreve-se
na pedra.

Carlos Drummond Andrade

“Tempo, não tenho certeza se és um senhor tão bonito quanto a cara do filho de Caetano. Sei que te enxergo em cada risada e mudança de meus erês. Dentre todos os deuses visíveis, você é o menos exibido, prefere se mostrar mais nas transformações, né?”

Por Nivaldo Brito

–Não dá pra colar. O jeito é esperar pra ver se o tempo conserta!

Poderia, mas não foi o cabeleireiro, a psicóloga nem o amigo-conselheiro quem disse isto. Falávamos ontem sobre as mudanças irreconciliáveis nas amizades (percebidas no retorno às aulas presenciais), quando Flora deu a letra. Daí lembrei de uma outra conversa que tivemos, em 2014:

– Cadê seu relógio, papai?

– Quebrou…

– Viva! Então você não vai mais trabalhar?

Tempo, não tenho certeza se és um senhor tão bonito quanto a cara do filho de Caetano. Sei que te enxergo em cada risada e mudança de meus erês. Dentre todos os deuses visíveis, você é o menos exibido, prefere se mostrar mais nas transformações, né?

Vai demorar muito?
Foto: Lucas Mansueto

Semana passada, durante uma aula de escrita, um menino perguntou quanto tempo eu gasto pra escrever um livro. Respondi de pronto: acho que levo uma vida toda! Percebi uma certa frustração nos olhos dele, talvez esperasse algo mais específico, menos longe. A verdade é que escrever demora, inclusive para quem improvisa nas batalhas de free style. Certas ideias, vivências e sensações podem ficar décadas incubadas em nosso corpo até tornarem-se palavras ou ações. Dizem que todo livro, seja de ficção ou não, é sobre o tempo, principalmente.

Difícil assinalar a alternativa correta – tempo é dinheiro ou tempo é vida – quando o Mapa da Desigualdade deste ano mostra que quem mora na Cidade Tiradentes vive, em média, 22 anos menos que alguém de Alto de Pinheiros. Difícil atravessar estes dias de retrocessos e desencontros.

Neste tempo político, dizem que demorar é privilégio, que pobre faz tudo no impulso, não sabe planejar nem mastigar 30 vezes antes de engolir. Sem espaço para praticar a paciência de Lenine, a pressa nos devora. Quem não sentiu culpa (ou perda) por tentar fazer as coisas em seu próprio tempo?

Postal poético de Nivaldo Brito

Numa vida que passa galopando diante de nossos presentes, aprendemos a chamar de correria o contínuo atraso para chegar às nossas próprias histórias. Ninguém nega que está cada vez mais complicado vencer os boletos e a procrastinação, preservar alguma calma e concentração, viver. Sem rodeio, há coisas que só se resolvem com o tempo e outras que só poderão melhorar com a queda do atual presidente e sua corja.


Nascido no verão de 85, em Acajutiba-BA, Nivaldo Brito acredita que poesia é o que a gente sente. O resto é literatura. Filho de pais semialfabetizados, resiste em São Paulo ilustrando, pesquisando e editando livros independentes feitos por gente livre.

Nivaldo nas redes:

@NiBrisant http://nibrisant.blogspot.com


LEIA TAMBÉM algumas das crônicas anteriores:
Eu pensei que os livros nem existiam mais
A cabeça sagrada de Zumbi

Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Jornalistas Livres

COMENTÁRIOS

4 respostas

  1. Como é difícil despedir o tempo de nossas vidas. Corremos contra ele e ao encontro dele o tempo todo.

  2. Nivaldo Brito é um ser plural, quase onipresente: está aqui, ali, acolá e vai seguindo com coragem. A mensagem da camiseta é trovão. Me lembra a hybris grega, essa coragem, esse entusiasmo que os homens não deveriam nunca almejar porque os deuses não estão preparados para ela. Palavra é coisa perigosa por demais. Abala estruturas, status quo e o que mais ficar na frente. O poeta/escritor/educador social/editor/e-é-uma-lista-que-não-acaba-nunca, navega mundo afora, tirando pessoas da letargia, empoderando todas. Sua é a doce palavra, essa que é capaz de ajudar a ganhar e/ou perder guerras, que pode levar mensageiros à exaustão, como o soldado ateniense, mas com dever cumprido. Sua é a palavra certa que perpassa uma crônica como esta, em que o Eu Lírico dialoga com o Eu Épico e tudo chega a um final apoteótico em que a palavra aponta o dedo em riste e cobra do leitor uma leitura outra.

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