Por Homero Gottardello, jornalista e bacharel em Direito
O fundamentalismo não é uma prerrogativa desta ou daquela religião. Mais do que uma prática adesiva islâmica, que nega a modernidade e o mundo contemporâneo, o fundamentalismo que conhecemos (e pelo qual nutrimos um verdadeiro e justificado temor) é uma franquia que nasce no protestantismo norte-americano, em 1910, no Seminário de Princeton – não confundir com a Universidade de Princeton, da mesma cidade. Do conceito original, que se assentava na infalibilidade da Bíblia, no nascimento virginal de Jesus e na morte do Cristo como expiação dos pecados da humanidade, na sua ressurreição e na veracidade de seus milagres, o fundamentalismo foi transfigurado politicamente por quem o criou e, hoje, é usado de má-fé para rotular apenas as milícias muçulmanas – se esquecendo da sua origem no protestantismo anglo-saxão.
Ao contrário do que a mídia hegemônica faz crer, o radicalismo islâmico não é só um movimento anticivilizatório, mas um aliado de outrora do imperialismo que, para ultrapassar a última barreira que o impede de espoliar a riqueza de nações como o Afeganistão e o Irã, não se importa de fomentar todo tipo de conflito interno, de conflagração, de enfrentamento. Só não estava nos planos do Tio Sam que este mesmo extremismo se travestiria na forma de autodeterminação que estes povos têm, hoje: na barbárie.
Pois bem, o Brasil está a um passo, ou melhor, a três semanas de mergulhar no caos de uma guerra religiosa, de uma espécie de Revolução dos Aiatolás às avessas. E só não enxerga isso quem é cego, surdo ou, apenas e tão somente, burro!
Ocorre que o neocolonialismo que se opera no Brasil, desde os anos 60, avançou para um novo estágio e, a partir do golpe jurídico-midiático-parlamentar de 2016, a estrutura de Estado é dilapidada da mesmíssima forma que aconteceu no Afeganistão, no Iraque, no Paquistão e na Síria, para citar apenas quatro países onde os Estados Unidos envenenaram a sociedade, patrocinaram a formação e o treinamento de milícias, implementando uma política de terra arrasada para, depois da devastação, surgir como salvador da pátria e reconduzir aqueles que assolou à democracia – ao seu modelo de democracia, é bom frisar. A primeira etapa do plano, que é a desindustrialização do Brasil, está em fase de conclusão: hoje, a indústria nacional não produz nem muletas, que vêm da China, o setor aeronáutico foi entregue a preço de banana para a Boeing e o automotivo vê fechar uma grande fábrica a cada dois meses; vide Ford, Audi e Mercedes-Benz. Para quem não sabe, já importamos esterco.
No campo político, o bolsonarismo não acabou, mas desestabilizou toda uma estrutura de Estado que levou pelo menos 200 anos para ser consolidada. O vampiro-golpista Michel Temer iniciou o processo, desmontando a regras trabalhistas e a Justiça do Trabalho, lançando milhões de pessoas ao subemprego e o país, de volta a uma economia de subsistência – um retrocesso de pelo menos três séculos, anterior ao Ciclo da Cana-de-Açúcar. Na sequência, o “neonazifacismo” pôs fim à segurança jurídica, ao mercado consumidor, às instituições de ensino e à organização política. Ao incentivar a desobediência às leis, ao matar a economia, desmoralizar a escola e enlamear os poderes, fazendo das Forças Armadas motivo de chacota, o bolsonarismo preparou o terreno para o surgimento, o crescimento e, a partir de setembro, o domínio pela violência de um grupo que, até agora, se contentava com uma vida de gado dentro dos templos: os fundamentalistas neopentecostais.
O discurso de ódio de “pastores” como Silas Malafaia, que nas últimas semanas partiram para a incitação desvelada da fúria de seus “talibãs”, é um indício claríssimo, cristalino, inequívoco de que há uma convergência de discursos, de forças, no sentido de uma revolução de radicais. Não é preciso ser um especialista em relações internacionais para saber que a instalação de uma teocracia neopentecostal, no Brasil, transformaria o país em um Afeganistão sul-americano e entregaria o poder a líderes como o próprio Malafaia.
O que impressiona é o fato de todos os elementos para isso já estarem postos e ninguém se dar conta: a evasão do capital internacional, o fechamento de multinacionais, a precarização do trabalho, a destituição da Justiça como mediadora dos conflitos, o desmonte das universidades, a destruição do sistema de saúde pública e, a partir de novembro, os cortes no fornecimento de água e energia elétrica. Nós estamos a três semanas de termos nossas vidas completamente transformadas por “jihadistas” que nos levarão de volta à era das cavernas, “em nome de Jesus”, e ninguém se dá conta!
Quem assistiu as cenas do povão invadindo a pista do aeroporto de Cabul, da multidão se dependurando nas pontes de embarque (‘fingers’) para conseguir um assento em um voo para qualquer destino, vê o desespero da população. E, ali, não são os trabalhadores da construção civil, os operários das fábricas ou os comerciários que aparecem, uns pisando sobre os pescoços dos outros. São a “elite” afegã – equivalem aos nossos supermercadistas, nossos empresários, nossos promotores de justiça, nossos executivos.
Depois de 7 de Setembro, não nos restará mais do que aquela mesma agonia, aquela descrença, aflição e, quando muito, uma disposição para abandonar tudo e fugir. E se o leitor duvida disso, basta observar um dado muito objetivo: nos 20 anos de presença militar britânica e norte-americana no Afeganistão, cerca de 200 mil pessoas foram mortas – cerca de 3 mil militares da coalizão, mais 60 mil homens da forças de segurança locais e 120 mil civis. Em menos de dois anos, só a pandemia já matou quase 600 mil brasileiros!
Por fim, é preciso deixar claro que o Talibã afegão começou, em 1994, com 40 estudantes patchuns, grupo etnolinguístico que representava menos de 40% da população do país, e estes poucos cooptaram milhares de milicianos violentíssimos. Também é necessário frisar que os talibãs originais foram financiados, armados e treinados – alguma semelhança com o que vem se operando, no Brasil, só que com milícias digitais? – pela Agência Central de Inteligência (CIA) norte-americana, que fez deste grupo um dos mais ferozes do planeta. Durante o período de ocupação soviética, entre 1979 e o final dos anos 80, a injeção de dinheiro da CIA chegou a 800 milhões de dólares – o equivalente a mais de R$ 1,52 bilhão – e, logo que os ‘jihadistas’ venceram a guerra civil, seu governo de lei e ordem islâmicas foi comemorado pela segurança que, em princípio, trouxeram de volta. Só que, a exemplo que ocorre por aqui, lá ninguém se deu conta de que o interesse norte-americano não tinha nada a ver com democracia ou religião: era o petróleo que os Estados Unidos cobiçavam. E aí, deu no que deu…
Portanto, minimizar o que está em curso, no Brasil, é uma omissão que vai custar caríssimo a todos nós. Isso porque da mesma forma que a vitória dos talibãs, no Afeganistão, não significa a derrota do imperialismo – pelo contrário, o triunfo do imperialismo se dá pelo esfacelamento, pela fragmentação dos estados, que abre caminho para sua reocupação – os ataques às instituições, por aqui, só têm por objetivo o enfraquecimento de nossa sociedade, a nossa desagregação. Lembrando ainda que, diante da iminência de vitória dos talibãs, o presidente afegão, Ashraf Ghani, foi o primeiro a fugir e que seus sequazes o seguiram na debandada. Então, ninguém deve se espantar quando o primeiro escalão brasileiro (os figurões dos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário) for, também, o primeiro a desertar, na hora que a sublevação que o bolsonarismo incitou se tornar incontrolável.
Daí, restaremos nós e o caos: a anarquia do fanatismo, a selvageria das milícias, a desordem e os estupros, a balbúrdia dos saques, o patrimônio assolado. Reagir, agora, é uma questão de sobrevivência!
Obs. A ilustração de abertura é de Paulo Victor Magno