A suprema coerência do STF

Brasília - Marco Aurélio Mello e a presidente do STF, Cármen Lúcia durante sessão plenária, para julgar em definitivo a liminar que afastou o presidente do Senado, Renan Calheiros (Jose Cruz/Agência Brasil)

Por Ernesto Marques, especial para os Jornalistas Livres

Fosse o último lance do espetáculo de horrores inaugurado pelo senador tucano Aécio Neves, ainda na ressaca da derrota de 2014, a patuscada mais recente do STF seria só mais um lance do retorno do Brasil ao status de república de bananeiras. Mas ainda há muito trabalho sujo a ser feito, como a reforma da previdência, para ficar num único exemplo. Na escalada golpista em curso, a história haverá de registrar novos capítulos reveladores da natureza do Estado brasileiro a partir das decisões da nossa suprema corte. Afinal, é preciso dar verniz “constitucional” aos atos de um governo ilegítimo, como o próprio impeachment.

Filho legítimo não de Portugal, mas da escravidão, que aqui perdurou mais do que em qualquer parte do planeta, esse Estado se remodela em absoluta coerência com o seu código genético. A acelerada destruição dos direitos sociais conquistados após a redemocratização, o desmantelo da CLT e, logo adiante,a reforma da Previdência, reeditam, com ares de pretensa modernidade, a escravidão sem pelourinho – mas nem por isso, sem açoites.

Mudança tão profunda não seria possível sem o protagonismo do STF a rasgar, jocosamente, página por página do artigo 5º. (direitos e garantias individuais e coletivos) e de toda a Constituição que o Supremo teria a função de proteger. O arranjo medonho costurado no breu das tocas, num intervalo de poucas horas, entre a liminar de Marco Aurélio e sessão da tarde de quarta-feira escancara o pacto da elite da rapina, como bem define o sociólogo Jessé Souza. É só uma bofetada a mais nas pessoas de boa fé que vão às ruas vestidas com a camisa da impoluta CBF, protestar contra a corrupção. São consumidoras da informação de baixa qualidade produzida por uma mídia que, como disse o Papa Francisco em entrevista publicada no mesmo dia, cultua a coprofilia (excitação por excrementos).

Não se pode esperar outra coisa de um tribunal que desconheceu todos os escândalos de corrupção, desde a sua criação, até 2005, quando um juiz negro, guindado à suprema corte por um presidente operário, condenou, seletivamente, lideranças ligadas à luta dos trabalhadores. A expressão “enfeite institucional”, do historiador Ivan Furman, nunca caiu tão bem ao Supremo.

É o STF que mandou Olga Benário grávida para morrer num campo de concentração da Alemanha nazista. Não se pode esperar nada melhor do STF acoelhado de 1964, que deu posse ao minúsculo Ranieri Mazzili, então presidente da Câmara dos Deputados, para que ele legitimasse a quartelada de 1o. de abril, inaugurando 21 anos de trevas. Não surpreende, porque é o mesmo STF que se submeteu ao AI-1, mandando a Constituição de 1946 para as calendas, junto com mandatos e direitos políticos de quem achasse o golpe ruim. É o mesmo STF silencioso perante o AI-2, que acrescentou mais 5 ministros à corte, assegurando maioria aos ditadores.

A diferença em relação ao passado se limita às pessoas investidas no poder representado pela toga. No golpe de cinco décadas atrás, Victor Nunes Leal, Hermes Lima, Evandro Lins e Silva foram cassados por não dobrarem a espinha diante dos militares. Gonçalves de Oliveira, Lafayette de Andrada saíram por discordar das cassações e Adaucto Lúcio Costa saiu por discordar da lei de censura prévia. Relembrar a fibra destes dispensa qualquer comentário sobre as qualidades dos atuais ministros e ministras. Afinal, “desacato” continua a ser crime, ainda mais quando o acordo coprofágico de 7 de dezembro inclui manter intacto, o direito das “autoridade” usarem e abusarem do poder ratificado a cada quatro anos por um legislativo comprado pela rapina.

*Ernesto Marques é jornalista e vice-presidente da Associação Bahiana de Imprensa

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