ARTIGO
Mateus Pereira e Valdei Araujo, professores de História na Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP) em Mariana
Assim como o vírus da Covid-19 se infiltrou em nossos cotidianos, de maneira lenta e silenciosa até se tornar o assunto dominante, o bolsonarismo saiu de zonas cinzentas da sociedade brasileira, como que mercados Wuhan de ideias e comportamentos, para se tornar uma síndrome determinante de nossa vida política e social.
Mesmo que esse diário tenha sido motivado pela pandemia, nas condições atuais do Brasil somos obrigados a tratar do presidente como parte do problema. A pandemia parece ter tornado visível o parasita que ameaça a nossa existência como sociedade organizada. Quais as condições ambientais que permitiram o surto bolsonarista e como essas condições poderão ser afetadas pelas consequências da pandemia? E como a polêmica sobre o monitoramento de celulares se relaciona com isso?
Podemos definir os elementos desse ambiente de muitas formas, pois ele é dinâmico e nem todos os seus componentes são novos. Apenas para nos orientar, vamos listar alguns dos elementos que permitiram o surto bolsonarista:
- A ideologia neoliberal e seus magnatas-mecenas, que desde os anos 1970 financiam iniciativas cujo único objetivo é enfraquecer os estados-nacionais e facilitar a maior concentração de riquezas da história humana;
- O fracasso dos sistemas educacionais em oferecer ferramentas críticas que sejam capazes de proteger a cidadania das formas mais básicas de manipulação e propaganda;
- Uma cultura pública que continuamente celebra o individualismo e a competição como únicas formas legítimas de interação entre as pessoas (enquanto escrevemos estas linhas o assunto mais discutido no Brasil é a 20ª edição do Big Brother. Temporariamente, o Jornal Nacional passou a falar dos nomes de grandes empresas que estão fazendo doações para combater a epidemia em nome da solidariedade. Por essa lógica a solidariedade é sempre vista como caridade.
- A tolerância da sociedade e seus representantes com a manipulação da religião, em particular nas vertentes neopentecostais, que se tornaram verdadeiro projetos de poder que misturam fé, cultura, fundamentalismo, negacionismo, interesses corporativos-comerciais e política; e
- Por fim, mas sem querer esgotar a lista, as diversas ondas da revolução digital que desde os anos 1970 vêm se acelerando. A partir do novo milênio esse universo digital parece ter dado lugar a uma nova variedade de capitalismo que a socióloga Shoshana Zuboff tem chamado de capitalismo de vigilância.
Hoje trataremos deste último item!
O estudo conjunto da UFRJ-FespSP que apontou que 55% das postagens no Twitter a favor do presidente são feitas por robôs surpreendeu poucas pessoas. Desde a eleição de 2018 as denúncias de uso ilegal das redes sociais têm se multiplicado sem gerar grandes consequências legais ou políticas. Poucas grandes empresas, todas elas estadunidenses, controlam efetivamente a realidade digital. A Google, dona do Youtube e de uma máquina de anúncios baseados em dados dos seus usuários; Facebook, que também controla o Whatsapp e o Instagram, Twitter, Apple e Amazon. Pouco tem sido feito para limitar o uso abusivo de suas plataformas, aliás, elas mesmas têm sido acusadas de abusarem do enorme poder que acumulam.
Mas afinal, que poder é esse?
Shohana Zuboff, em seu livro “A era do capitalismo de vigilância”, afirma que 2008 foi o momento-chave da tomada de consciência de uma nova forma de dominação. Pressionadas pela recessão, as empresas de tecnologia precisavam provar que eram capazes de gerar os enormes lucros que prometiam. A saída encontrada pela Google foi relaxar suas políticas de privacidade, de modo que pudesse usar mais livremente o enorme volume de dados que coletava sobre o comportamentos de seus usuários.
Todos já devem ter lido alguma solicitação ao instalar um programa ou um novo recurso no computador, tablet ou celular, cujo teor promete que a cessão das informações teria como objetivo a melhoria do serviço. Esses contratos ficaram cada vez mais longos e ilegíveis, à medida em que foram sendo ampliados os direitos das empresas sobre as informações confidenciais que estavam autorizadas quando o usuário clicava “Eu concordo”.
Legitimadas pela ideia da melhoria do serviço, as grandes corporações estavam, na verdade, acumulando um enorme “excedente comportamental”. Isto é, um volume maciço de dados sobre nossa intimidade, que pouco tinha a ver com os serviços, mas, sim, com a formatação de novos produtos para clientes corporativos e grupos políticos. A ponta desse iceberg ficou visível para todos no escândalo da Cambridge Analytics. Empresa quer roubou informações pessoais de mais de 87 milhões de usuários do Facebook e as usou para formular e direcionar propaganda política em eleições como a de Trump e o plebiscito que decidiu pela saída do Reino Unido da União Europeia, o chamado Brexit.
Em alguma medida a promessa de melhoria dos serviços tem sido cumprida, mas os dados que estamos constantemente cedendo para as empresas têm sido usados com outros objetivos. A Google descobriu e aperfeiçoou essa nova modalidade de capitalismo quando percebeu que poderia descobrir os estados emocionais das pessoas a partir de erros ortográficos e outros detalhes, quando os usuários digitam termos de pesquisa em seu serviço de busca. Esse processo foi aprofundado com a criação do Gmail em 1º de abril de 2004, que permite a coleta de dados pessoais e a personalização de anúncios eletrônicos. A venda de anúncios com base nesses dados logo passaria a ser a principal fonte de lucro da empresa.
Zuboff nos dá um exemplo de como passamos rapidamente da utopia para a distopia digital. No ano 2000 foi lançado um experimento chamado “Aware Home” (Lar Consciente), que acoplava um conjunto de sensores a aparelhos e moradores de uma determinada residência em uma rede local. Era um experimento de computação omnipresencial que antecipava o que depois ficou conhecido como internet das coisas.
Em 2018, o mercado das chamadas casas inteligentes foi avaliado em 36 bilhões de dólares. Ele envolve assistentes de voz, como o Google Home, e o Alexa, da Amazon, ambos já envolvidos em denúncias de invasão de privacidade, mas, também, uma infinidade de aparelhos inteligentes, como interruptores, lâmpadas e câmeras de vigilância, tudo 24 horas online.
Mas havia uma diferença ética e política fundamental no experimento do ano 2000: todos os dados gerados sobre cada um dos moradores estava disponível apenas para eles mesmos. O que temos chamado até aqui de capitalismo de vigilância é uma situação idêntica a da “Aware Home”, com a grande diferença de que os dados coletados e seu processamento em tempo real, por Inteligências Artificiais, estão, em sua maior parte, inacessíveis para nós mesmos e sob controle exclusivo das corporações ou dos hackers e empresas que conseguem burlar seus sistemas de proteção. As grandes corporações usam essa avalanche de dados, em tempo real, processados por um gigantesco poder computacional, para antecipar e induzir comportamentos.
Enquanto o capitalismo clássico estaria assentado em vários níveis de reciprocidade com a sociedade, inclusive certa ligação com instituições liberais-democráticas, o capitalismo de vigilância teria quebrado essas reciprocidades. A ideologia neoliberal que se expandiu a partir dos anos 1970 contribuiu para alimentar esse divórcio, dando lugar ao que Zuboff chama de mutação espúria do capitalismo.
Não queremos concluir aqui que o Bolsonarismo é um agente infiltrado do capitalismo de vigilância, apenas que ele parasita esse ambiente de modo bem sucedido, sem ameaçar o hospedeiro. Até certo ponto essa relação tem sido simbiótica, beneficiando os dois em algum sentido.
A adesão e agitação digital promovidas pelo bolsonarismo expande os bancos de dados das empresas do capitalismo de vigilância que, por sua vez, são bastantes permissivas com os pequenos abusos cometidos por seus usuários poderosos.
No caso do bolsonarismo, percebemos que ele cresceu desde 2014, no início dos trabalhos da Comissão Nacional da Verdade, a partir e no interior de uma comunidade de memória de negação do passado autoritário. E nunca nada foi feito para conter apologias e mentiras sobre a ditadura, por exemplo. Empresas como Facebook têm resistido a regular o uso de sua plataforma para a disseminação de fake news por grandes agentes políticos da nova direita global, como pode ser lido na matéria do The Guadian de dezembro de 2019.
Em 29 de março de 2020 toda a imprensa noticiou a decisão do Twitter de apagar duas postagens do perfil pessoal de Jair Bolsonaro, alegando que o conteúdo contrariava orientações das autoridades de saúde no combate à covid-19. Nenhum poder público havia solicitado a ação, mas, ainda assim, a empresa decidiu agir: uma gota no oceano de notícias e perfis falsos que infestam o Twitter, como mostrou a pesquisa que citamos no começo do artigo. Longe de representar um avanço, a decisão legitima a demanda das grandes corporações acerca de sua autorregulação e oculta os abusos em massa que toleram. O cenário não é diferente no Youtube, no Facebook ou Whatsapp. O Youtube tem sido amplamente condenado por usar um mecanismo de seleção de vídeos que reforça a polarização, tudo isso em nome de maiores lucros.
Como retomar o controle de nossa própria vida, de assumir de volta os projetos de futuro que teriam sido substituídos pelos planejamentos corporativos, em sua cruzada anti-política e pelas expectativas atualistas de que devemos deixar as decisões coletivas para as máquinas inteligentes? A União Europeia e os estado da Califórnia aprovaram leis de proteção aos dados pessoais que são um passo importante em uma longa batalha.
Antes que pudéssemos avançar muito nesta direção, a pandemia nos tornou ainda mais dependentes das armadilhas da jaula digital. Como na fotografia de Victor Moriyama, a privacidade do lar ao qual fomos confinados é o grande laboratório do capitalismo de vigilância. Do dia para a noite ficou visível que, em alguma medida, somos todos membros involuntários de um Big Brother global do qual não conhecemos bem a audiência.
O direito à privacidade, e a própria existência de uma mente individual inviolável foram condições para as liberdades políticas conquistadas nos últimos séculos. Então nos perguntamos: o que vai acontecer quando a mente e a intimidade estiverem em tempo real monitoradas e condicionadas pelas grandes corporações ou pelos estados de vigilância no modelo chinês?
Essa nova e súbita demanda por digitalização tem ampliado o interesse de grupos que até então mantinham-se a uma distância segura das redes sociais. Quem sabe se dessa nova onda de interesse não possa também surgir uma consciência mais aguda das reformas que precisamos fazer?
Quem herdará as estruturas do capitalismo de vigilância que estão sendo aperfeiçoadas para o combate da pandemia?
Ao longo de março e abril, vários países, inclusive o Brasil, em parte, inspirados no modelo chinês e sul coreano, montavam e ampliavam as suas estratégias de combate à crise a partir de práticas de vigilância digital, por exemplo, em relação à mobilidade, ao controle da temperatura corporal, dos movimentos, dos batimentos cardíacos, e também dos sinais de celular e dos acessos virtuais, entre outras ações. O Estado de São Paulo, recentemente, anunciou um acordo com as quatro grandes operadoras locais para produzir mapas das concentrações de pessoas pela cidade. No dia seguinte, o governo federal desistia de iniciativa semelhante, ao que tudo indica, por decisão direta do presidente, embora essa posição parece mudar com a indicação de um nome de confiança do bolsonarismo para o Ministério da Saúde. O novo ministro, com fortes ligações com Fábio Wajngarten, chefe da Secretaria Especial de Comunicação Social (SECOM)l, já deu sinais de que conta com os sistemas de vigilância para combater a pandemia.
Essas estruturas de vigilância ficarão cada vez mais disponíveis aos Estados após a pandemia, independentemente do tipo de governo, pois não se trata aqui de pensar a eficiência no controle da pandemia a partir da dicotomia entre ditaduras e democracias. Se a China parece ter sido bem sucedida utilizando-se de seu imenso controle social, a Coreia do Sul também tem sido um exemplo bem sucedido em uma ambiente mais aberto e democrático. A dimensão da tragédia americana e, possivelmente, a brasileira, se relaciona, diretamente, com a ineficiência de seus governantes.
Enquanto fechamos este artigo, recebemos de um amigo, no Whatsapp, um vídeo em que Flávio Bolsonaro divulga a ideia da TV Bolsonaro. Através de um aplicativo, promete superar as limitações que o Facebook estaria impondo aos bolsonaristas. Mais um lance em um jogo de xadrez cuja complexidade cresce a cada dia.
Fontes jornalísticas citadas:
https://www.theguardian.com/technology/2019/dec/02/mark-zuckerberg-facebook-policy-fake-ads
https://www.bbc.com/portuguese/brasil-52101240