Solidariedade e luta contra a opressão em Brasília

Brasília, 29/11/2016. Foto: Maxwel Vilela

Saímos de Campina Grande, Paraíba no domingo, dia 27. Éramos três professores: um do IF e dois da UEPB, e os demais 42 eram estudantes secundaristas e universitários. No dia da nossa chegada, nos concentramos na UNB.

No dia seguinte, fomos ao local das atividades. Após concentração e distribuição do almoço no MEC, assistimos a fala da Maria Lúcia Fatorreli.

Em seguida, caminhamos para a concentração no Museu e de lá caminhamos em direção ao Senado. Nunca tinha visto tanta gente na rua lutando pela mesma causa. Não sou a melhor pessoa para números, mas acredito que tínhamos 50.000 pessoas na rua. A energia era forte, uma mistura de determinação e esperança. Nosso grupo rapidamente chegou ao gramado que antecede o espelho d’água. Sem identificação aparente, os policiais já estavam posicionados para nos receber. Até então não houvera nenhum tipo de embate, apenas algumas pessoas dentro da água. Do lado oposto, uma mulher dizia algo para os policiais. Nesse momento tive a idéia de abrir a bolsa e pegar o celular. Nessa fração de segundo ouvi uma vaia generalizada e levantei os olhos: a mulher estava inerte na água. Todos se revoltaram com o fato do policial jogar spray de pimenta algumas vezes e ela não recuar. No entanto, a maior revolta foi a agressão física que a fez desmaiar na água: enquanto jogava o spray, ele a chutou no rosto. Lembrem- se que ela estava no nível mais baixo ( na água) e ele no terraço do Senado. Sim, a polícia provocou e começou as agressões. Aí, tudo virou um caos. Um grupo virou um carro branco, acendeu o fogo e em seguida o empurrou em direção aos policiais, numa espécie de barricada para tentar resgatar a moça. Outras pessoas foram de mãos para cima para tentar negociar a retirada garota, mas também levaram spray de pimenta.  Nesse momento, as bombas de gás lacrimogêneo começaram a cair por todos os lados. Uma caiu na nossa frente, saímos de lá com aquela sensação de queimor insuportável, mas, ao mesmo tempo, já estávamos com pequenas quantidades de vinagre (como o leite de magnésio, vinagre é eficaz para os sintomas causados pelo gás). Todas essas recomendações recebemos e propagamos na viagem, bem como as estratégias de rota de fuga ( com uma montagem de um mapa do plano piloto) em caso de embate com a polícia, dispersão ou desencontro.

A medida em que recuávamos, a polícia avançava. Ela não poupava ninguém. Quando o protesto começava a tomar corpo, já se aproximava do fim o expediente dos trabalhadores. Ninguém foi poupado. Vi idosos, mulheres com crianças, e nós, os militantes, apanharmos muito. O desespero era fugir do gás e, simultaneamente, retirar quem estivesse atingido ao lado: foi a maior lição de solidariedade que vivi.

Nossa janela de fuga (sim, porque 95% das pessoas que lá estavam não foram preparadas para uma guerrilha urbana) foi proporcionada pelos Black Blocks. Eles retardaram o avanço da polícia e criaram, junto com alguns militantes mais experientes, barricadas para conter o avanço policial. Eles também apanharam muito. Carros foram queimados para distrair atenção dos agressores, painéis e alguns prédios de ministérios foram quebrados na tentativa de diminuir as agressões e salvar as pessoas feridas.

Nesse momento percebemos os helicópteros (contei 4 diferentes). No início eu achei que era apenas para acompanhamento da movimentação da massa. Já no início da noite, algumas aeronaves começaram a fazer voos mais baixos, logo seguidos do estouro de uma nova bomba. Não vi cair nenhuma bomba dos helicópteros, mesmo porque o inferno estava no solo, mas a polícia estava muito longe para que as bombas chegassem a nós. O pior aconteceu quando a cavalaria entrou em ação. O pânico tomou conta. As pessoas corriam enlouquecidas com medo de serem pisoteadas pelos cavalos. E o confronto seguiu nesse terror. Estávamos assustados demais para reagir e, em nosso grupo, a prioridade era proteger os alunos já que a maioria deles nunca tinham presenciado embates tão duros. Hoje percebo que o país inteiro não tinha vivido tão recentemente tamanha truculência.

Conseguimos enviar boa parte do grupo para o ônibus, mas ainda tínhamos que pegar os outros no nosso ponto de fuga. Criou-se assim uma espécie de equipe de resgate. Nesse momento trocamos de blusas, tiramos botons/adesivos e jogamos as bandeiras fora. O mais importante era restabelecer em segurança o grupo. As bombas continuavam a cair. Um dos impactos que a bomba causa é o impacto psicológico: elas têm um som ensurdecedor e treme o chão quando toca o solo. Ainda assim, depois de juntarmos quase todos e o clima aparentemente ter acalmado, ainda tínhamos os desaparecidos. Só tínhamos duas alternativas: hospital ou cadeia. A ajuda dos companheiros que não estavam no protesto foi fundamental. Eles nos ajudaram a localizar várias pessoas, entre elas, nossa companheira desaparecida que estava no hospital da UNB. Ela foi socorrida por uma enfermeira que tinha na mão o magnésio e a achou desacordada debaixo de uma árvore. Não sabemos seu nome, apenas que salvou nossa aluna. Para esta pessoa os meus mais sinceros agradecimentos. Não são todos que se dispõem a salvar a vida do outro, colocando a sua própria em jogo. Não podemos esquecer da equipe médica que a atendeu. Não tenham dúvidas de que foi um belíssimo trabalho, já que nossa aluna possuía uma fragilidade pulmonar que complicou os sintomas do gás em seu corpo. Obrigada equipe médica da UNB.

Ao acordar, nossa aluna conseguiu passar as informações para o pessoal do hospital, que entraram em contato com familiares e professores de sua unidade de ensino que, por sua vez, entraram em contato conosco. Ela nos relatou que o hospital estava cheio e que, em sua maioria, mulheres eram as principais vítimas, sobretudo as que estavam com os seios desnudos. Impossível não fazer um leitura sociológica desse fenômeno.  Ela também nos relatou um caso de uma criança que aparentava 10 anos. Ela e sua mãe estavam muito machucadas: a mãe com marcas roxas pelo corpo causado pelo cacetete, a criança com 15 pontos na boca, em direção às maçãs do rosto. A mãe foi buscá-la na escola vestindo uma camisa do “Fora Temer” e, por azar, estava no olhou do furação. A mãe foi agredida pelo policial que, não satisfeito com o espancamento, partiu para agredir a criança.

Pude perceber que existia prazer em alguns policiais em agredir as pessoas, outros, nos indicavam com um olhar uma rota de fuga. Pessoas e pessoas.

Não posso deixar de mencionar o papel de alguns cidadãos de Brasília. Mesmo não estando no protesto, eles nos indicavam os possíveis caminhos para fugir daquela insanidade. Muito obrigada.

Já passava das 21h e ainda tínhamos alunos desaparecidos. Ficamos sabendo que a polícia tinha fechado a rodoviária e estava prendendo militantes dentro dos ônibus estacionados nas imediações da rodoviária. Ao mesmo tempo, dois dos nosso alunos estavam em outra localidade com uma delegação diferente. Decidimos pegar um táxi e entrar na rodoviária para procurarmos o último desaparecido. Para nossa sorte, recebemos mensagem de que ele tinha encontrado nosso transporte e estava a salvo. Assim retornamos ao ônibus e saímos de Brasília naquele mesmo momento.

Sentimos falta da presença da CUT e MST.  Acredito que se eles estivessem lá o resultado poderia ser diferente. No entanto, as entidades que estavam, nos deram maior apoio possível, inclusive, de ordem tática. Não foi a toa que a polícia deu voz de prisão aos manifestantes que estavam no alto do trio elétrico chamando a militância a resistir ao avanços dos policiais.

Acredito que o protesto de ontem e seus desdobramentos deram início a outro momento na história do país. E o protagonismo será da juventude. Cabe a nós, os professores, o papel de elaborar proteger, orientar, salvar, zelar e agir por nosso jovens.

Desculpem-me eventuais erros e equívocos, mas ainda estamos na estrada rumo ao nosso destino.  Neste momento, 20:56 do dia 30/11/16, em algum lugar desta enorme Bahia, a caminho de casa, decidi escrever esse texto como forma de informação, mas também de expurgo para a compreensão geral dos chocantes acontecimentos de ontem.

É impressionante o crescimento individual deste grupo de alunos. Eles estão mais coesos e solidários. No início da viagem houve pequenos ruídos por causa dos posicionamentos de um grupo de alunos com outro grupo que tinha orientação LGBT. Neste exato momento estou sentada entre dois grandes grupos que estão debatendo questões específicas. Os rapazes mais conservadores estão discutindo gênero com parte do grupo LGBT e o outro discutindo formas de exploração do trabalho. Se tornaram homens e mulheres, literalmente, do dia pra noite. Eu apenas os observo, afinal quem mais está aprendendo aqui sou eu. E meu coração está inundando de amor e felicidade.

A PEC passou e irá passar. Mas o sentimento de que fiz (fizemos) tudo que estava ao meu (nosso) alcance me conforta, mas não me resigna. Saio mais convicta da necessidade da luta.

*Mauriene Freitas é professora do Departamento de Letras e Humanidades da Universidade Estadual da Paraíba.

Brasília, 29/11/2016. Foto: Maxwel Vilela
Brasília, 29/11/2016. Foto: Maxwel Vilela

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